terça-feira

DESERTO PARTICULAR


DESERTO PARTICULAR (Deserto particular, 2021, Fado Filmes/Anacoluto/Grafo Audiovisual, 121min) Direção: Aly Muritiba. Roteiro: Aly Muritiba, Henrique dos Santos. Fotografia: Luis Armando Arteaga. Montagem: Patricia Saramago. Música: Felipe Ayres. Figurino: Isbella Brasileiro. Direção de arte/cenários: Fabiola Bonofiglio, Marcos Pedroso. Produção executiva: Vasco Esteves, João Fonseca, Raiane Rodrigues, Chris Spode. Produção: Gonçalo Galvão Teles, Luis Galvão Teles, Antonio Gonçalves Júnior, Aly Muritiba. Elenco: Antonio Saboia, Pedro Fasanaro, Thomas Aquino, Laila Garin, Zezita Matos, Flávio Bauraqui. Estreia: 02/9/2021 (Festival de Veneza)

É difícil falar sobre "Deserto particular" sem tropeçar em spoilers. Por mais que o filme se sustente independentemente da reviravolta que acontece em sua metade - o que fica nítido em uma revisão - e se mantenha como um dos exemplares mais empolgantes do cinema brasileiro das últimas décadas, é crucial que se mantenha em segredo um dos pontos vitais de seu roteiro, sob pena não de estragar a experiência, mas de privar o espectador do prazer de descoberta que tanto nos emociona quanto eletriza.

É difícil falar de "Deserto particular" sem elogiar o roteiro enxuto, por vezes claustrofóbico, de Aly Muritiba e Henrique dos Santos, que mergulha o público em uma narrativa quase seca, que vai se expandindo até quase irromper em uma enxurrada de sensações conflitantes. Ao contrapor masculino/feminino, sudeste/nordeste, força/fragilidade, os autores - merecidamente premiados com o Grande Prêmio do Cinema Brasileiro de 2022 - abraçam sem medo as dicotomias que regem o país, retratando-as em relações interpessoais jamais previsíveis e calcadas em um suspense psicológico dos mais admiráveis. Criando personagens verossímeis e nada óbvios, Muritiba e Henrique fogem do maniqueísmo ao dotar seus protagonistas tanto de qualidades quanto de defeitos e aproximá-los da plateia mesmo quando cometem erros quase imperdoáveis.

 


É difícil falar de "Deserto particular" sem aplaudir seu elenco. Se o estreante Pedro Fasanaro quase rouba a cena com uma atuação corajosa que escapa com louvor das armadilhas a que poderia ser submetido com seu surpreendente Robson, seu entorno é igualmente impecável - desde Thomas Aquino como seu fiel escudeiro Fernando, dono de alguns diálogos impagáveis, até a ótima Zezita Matos como sua imprevisível avó. E qualquer elogio que se faça a Antonio Saboia por seu desempenho como o protagonista Daniel provavelmente será insuficiente para dimensionar a extensão de sua façanha. Em duas horas de duração, Saboia transita - muitas vezes sem qualquer aviso prévio - por uma vasta gama de sentimentos, intercalando momentos de fúria, dor, amor, solidão, frustração e tesão com a segurança de um grande (e ainda subestimado) ator. Sua construção de Daniel -um policial afastado da corporação depois de um episódio de violência - envolve desde a expressão corporal exemplar (não apenas sua musculatura, mas também sua postura fala mais do que qualquer monólogo) até a atenção a seu semblante (normalmente sisudo mas capaz do mais apaixonado sorriso quando necessário).

É difícil falar de "Deserto particular" sem admirar a direção inteligente de Aly Muritiba. Ao equilibrar seu cuidado com os atores com o senso estético que remete a road movies célebres como "Paris, Texas" (1984), o cineasta, responsável pelos premiados "Ferrugem" (2018) e "Jesus Kid" (2021) constrói uma atmosfera repleta de sensualidade e tensão, onde cada cena, cada sequência, cada linha de diálogo levam a um estado de completo envolvimento da plateia, a quem não resta alternativa senão entregar-se completamente a uma história de amor, obsessão e tolerância contada com, acima de tudo, respeito por seus protagonistas: como uma testemunha neutra dos acontecimentos, sua câmera praticamente lê a alma dos personagens, atormentados por suas paixões irreparáveis e medos irreprimíveis. Não bastasse tudo isso, Muritiba ainda encerra seu filme com um hino pop capaz de entusiasmar o mais renitente espectador:é impossível ficar incólume a "Total eclipse of the heart", que, na voz rouca de Bonnie Tyler, ilustra com perfeição os meandros da história de amor entre Daniel e Sara.

Por fim, é impossível falar de "Deserto particular" sem lamentar que não tenha chegado a figurar entre os indicados ao Oscar de melhor filme internacional, vaga que tentou depois de selecionado pelo comitê responsável. Ao falar sobre amor e tolerância em um período tão lúgubre na cultura nacional, teria sido um alento - e um justo reconhecimento a suas qualidades - vê-lo disputando a estatueta da Academia. Como nem só de prêmios e reconhecimentos internacionais, porém, "Deserto particular" se mantém como uma obra fundamental da arte brasileira. Bravo!

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