FELICIDADE (Happiness, 1998, Good Machine, 134min) Direção e roteiro: Todd Solondz. Fotografia: Maryse Alberti. Montagem: Alan Oxman. Música: Robbie Kondor. Figurino: Kathryn Nixon. Direção de arte/cenários: Thérèse DePrez/Nick Evans. Produção executiva: David Linde, James Schamus. Produção: Ted Hope, Christine Vachon. Elenco: Philip Seymour Hoffman, Lara Flynn Boyle, Jane Adams, Dylan Baker, Ben Gazzarra, Cynthia Stevenson, Camryn Manheim, Jon Lovitz, Molly Shannon. Estreia: 16/10/98
Um ano antes que Sam Mendes conquistasse o Oscar pelo excepcional "Beleza americana", um cineasta americano independente e corajoso havia ousado retratar os podres da tradicional família ianque em uma comédia de humor negro que abismou a crítica e chocou sua (pequena) audiência. Ao se enfronhar por debaixo da aparente normalidade dos subúrbios e da instituição familiar em "Felicidade", Todd Solondz foi ainda mais longe do que Mendes e o roteiro premiado de Alan Ball, narrando sem nenhuma espécie de julgamento um grupo de personagens cuja "amoralidade" tem apenas um objetivo: a luta pela felicidade do título. Mais do que um inventário de desvios sexuais, o filme de Solondz é um poderoso estudo sobre a solidão humana.
Solondz utiliza a estrutura em voga no final dos anos 90 (narrar várias histórias aparentemente independentes que se entrecruzam) para analisar a maneira com que pessoas de diferentes estilos de vida lidam com a falta de sentido e amor em suas existências. De certa forma, se existe uma protagonista, ela é a frágil e sensível Joy (nome cuja tradução é "alegria", em uma das várias ironias do roteiro). Vivida com delicadeza quase patética por Jane Adams, Joy é uma música frustrada, solteira e infeliz que é o principal centro de preocupações de sua família. Tímida, ela tenta encontrar um sentido para sua vida começando a trabalhar como professora de inglês para estrangeiros e se apaixona por um aluno russo não exatamente honesto. Sua irmã do meio, Helen (Lara Flynn Boyle) é uma escritora bem-sucedida que reclama do fato de não ter problemas sérios o bastante para inspirá-la em seus novos livros e, sem saber, desperta o intenso desejo do vizinho Allen (Phillip Seymour Hoffman), que vive de passar trotes de enfoque sexual para mulheres desconhecidas e se envolve em uma amizade triste com Kristina (Camryn Manheim), que mora em seu prédio e tem um segredo a respeito da morte do porteiro. E seus pais, Mona (Louise Lasser) e Lenny (Ben Gazzarra) estão passando por uma grave crise no casamento, o que acarreta um início de depressão em sua mãe, que não sabe como ter uma vida sem o marido e as filhas.
E a irmã mais velha de Joy é Trish (Cynthia Stevenson), bem-casada com o terapeuta Bill Maplewood (Dylan Baker) e mãe de uma família de comercial de margarina. No entanto, é na casa de Trish (em meio a uma decoração típica de classe média) que a trama de "Felicidade" enconde seu maior trunfo polêmico. Pai de família exemplar, Bill é um pedófilo que não hesita em violentar os amigos do filho mais velho, envolvendo a audiência em seu drama sem jamais parecer um tarado psicopata. É o trabalho excepcional de Baker, aliado ao roteiro cru mas nunca apelativo do diretor que afasta essa subtrama tão controversa de ser apenas mais uma tentativa de Hollywood em discutir o de maneira paternal ou permissiva. Logicamente Solondz não quer justificar as atitudes da personagem, mas tampouco o crucifica ou o trata de forma maniqueísta. Perigosamente, inclusive, a audiência chega a simpatizar com ele (mas sem, porém, torcer para que seus intentos sejam atingidos).
"Felicidade" é, também, um retrato delicado sobre as relações interpessoais tão frias e distantes em uma época tão afoita a tecnologias e tão indiferente aos problemas da casa ao lado. Suas personagens são tão bem construídas e soam tão verdadeiras que é difícil não simpatizar e/ou torcer pela resolução de seus problemas (com a possível exceção de Helen, cujos dramas não parecem tão interessantes em comparação com os demais). Jane Adams está perfeita como Joy, transmitindo com exatidão todas as nuances de sua personagem, assim como o fazem Philip Seymour Hoffman e Camryn Manheim, donos de uma das cenas mais tocantes do filme, quando dançam em um bar de quinta categoria e depois dormem ao lado um do outro sem nenhuma intenção sexual. Retrato mais acurado da solidão no fim do milênio é impossível.
Longe de tentar ser um filme edificante ou comovente - nem muito menos uma comédia rasgada ou histérica - "Felicidade" é um dos mais consistentes dramas humanos dos anos 90. Pode ser desagradável e chocante em alguns momentos, mas jamais apela para o mau-gosto (sua direção de arte propositalmente plástica é outro destaque) para atingir sua audiência. É um programa obrigatório para todos aqueles que se encantam com dramas psicológicos que desmascaram as alegrias de aparência. E ainda acaba com Michael Stipe (da banda REM) entoando a inédita canção "Happiness".... Excelente!
Filmes, filmes e mais filmes. De todos os gêneros, países, épocas e níveis de qualidade. Afinal, a sétima arte não tem esse nome à toa.
quarta-feira
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2 comentários:
Seu texto é perfeito, o filme é ótimo em retratar personagens comuns cheios de imperfeições que escondem segredos.
O elenco é ótimo, principalmente a interpretação de Dylan Baker.
Abraço
Eu adorei esse longa-metragen.
O filme de Solondz realmente é um poderoso estudo sobre a solidão humana.
Adorei tanto essa produção que me desesperei para assistir suas outras obras:
- Bem Vindo a Casa de Bonecas - outro ótimo filme
- Histórias Proibidas - acho que ele perdeu a mão nessa produção.
Recentemente assisti A vida durante a guerra - continuação de Felicidade, onde ele, em minha visão, novamente errou na produção.
Mas, voltando ao filme que você comentou, de forma espetacular diga-se de passagem, só posso dizer que realmente é um ótimo retrato da "familia".
Gostei de Beleza Americana. Porém, Felicidade consegue ser mais cruel, realista e imparcial do que todos os outros filmes sobre o assunto.
Parabéns pelo texto e pela escolha do filme para comentar.
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