O mundo do cinema não vive sem uma polêmica, especialmente quando um filme se propõe a retratar uma história baseada em fatos reais: não há obra que consiga escapar incólume aos puristas, que fazem questão de encontrar sempre algum motivo para questionar as escolhas dos produtores e dos diretores. Em alguns casos a gritaria é compreensível - escalar uma atriz chinesa para protagonizar "Memórias de uma gueixa", uma história passada no Japão, por exemplo, foi uma prova inconteste da miopia generalizada sofrida pela indústria de Hollywood, que não deve enxergar diferença entre os países asiáticos quando se trata de seus astros. Essa mesma dificuldade americana em perceber as diferenças culturais alheias acabou por tornar-se alvo de críticas ferozes quando aconteceu a estreia de "Quebrando a banca", baseado em um livro do mesmo Ben Mezrich que veria seu "Bilionários por acaso" - a história do Facebook - ser adaptado por David Fincher no elogiado "A rede social", de 2010: ao transformar os protagonistas (asiáticos) da história verdadeira de um grupo de estudantes, gênios da Matemática que fizeram fortuna nos cassinos de Las Vegas entre 1979 e 1994 em caucasianos (apenas dois sobreviveram com sua origem intocada), o filme de Robert Luketic foi violentamente atacado e criticado pelas mudanças. No fim das contas, porém, a gritaria apenas ajudou na bilheteria: com mais de 80 milhões arrecadados somente nos EUA, "Quebrando a banca" nem se incomodou com o celeuma. Nem deveria.
Mesmo baseado em uma história verídica, o roteiro do filme de Luketic - que assinou também o sucesso "Legalmente loira", que deu o empurrão definitivo na carreira de Reese Witherspoon - toma inúmeras liberdades com o material original, alterando não apenas a origem dos protagonistas mas também o período de tempo em que se passa a história (quinze anos se transformaram em cerca de apenas um) e o número de estudantes que fizeram parte do esquema milionário (cerca de 80 jovens foram substituídos por cinco, uma quantidade bem mais administrável dentro de um roteiro). Licenças poéticas absolutamente compreensíveis e que não atrapalham em nada o verdadeiro objetivo do filme: entreter a plateia com uma trama que, apesar de ter a Matemática como pano de fundo, jamais se torna hermética ou condescendente. Dirigido com leveza e editado com agilidade e inteligência, "Quebrando a banca" é diversão garantida, amparada por mais uma bela atuação de Kevin Spacey - também creditado como produtor - e pelo talento juvenil de Jim Sturgess, recém-saído do elogiado musical "Across the universe", uma história de amor embalada pelas canções dos Beatles.
Sturgess - inglês, mas falando com impecável sotaque americano - é o protagonista da trama, Ben Campbell, um inteligentíssimo estudante que batalha para juntar o dinheiro necessário para cursar a faculdade de Medicina de Harvard. De origem simples, ele vê a chance de sua vida quando é procurado pelo professor Micky Rosa (Kevin Spacey) com uma proposta irrecusável: fazer parte de um esquema para ganhar milhares de dólares nos cassinos de Las Vegas, junto com um grupo seleto de alunos tão brilhantes quanto ele. A princípio ferido em sua ética, Ben acaba aceitando o convite quando percebe que não há trapaça ou nada ilegal no plano de Rosa, que se utiliza de matemática pura e simples para contar as cartas do blackjack e, assim, quebrar as bancas dos cassinos. Ao lado de Choi (Aaron Yoo), Kianna (Liza Lapira), Fisher (Jacob Pitts) e da bela Jill (Kate Bosworth) - por quem sente uma atração nada discreta - Ben descobre um novo mundo, repleto de luxo, diversão e muito dinheiro. Logo seu plano de abandonar o grupo ao atingir o montante necessário para pagar sua faculdade é alterado - mas o rompimento com Rosa e a perseguição de Cole Williams (Laurence Fishburne), chefe de segurança de um dos cassinos, mudam radicalmente sua trajetória.
Mesmo que por vezes caia no clichê - Ben acaba descobrindo uma valiosa lição de moral no final do filme, quando percebe que afastou-se dos melhores amigos e de sua ética - o roteiro de "Quebrando a banca" tem o mérito de não tentar inventar a roda: é simples e direto, jamais perdendo de vista a razão principal de sua existência: a diversão do público. Mesmo que as técnicas empregadas pelo grupo para contar as cartas não seja exatamente fácil para a maior parte da audiência, elas servem apenas como instrumento para a narrativa - ágil, moderna, fluída - e a forma com que os personagens criam um código próprio para utilizá-las sublinha o tom de entretenimento do filme, que se equilibra entre a leveza de uma aventura juvenil e o peso de um drama de suspense que surge sempre que Laurence Fishburne entra em cena com seu personagem. A matiz sombria da segunda metade do filme, ao contrário do que poderia acontecer, não prejudica sua identidade, lhe proporcionando uma camada a mais que apenas sublinha o talento de seus atores centrais, que tiram de letra os desafios que tal mudança de enfoque lhes oferece.
Se Kevin Spacey não precisa provar nada a ninguém há um bom tempo - não é todo mundo que tem no currículo dois Oscar e ao menos dois personagens antológicos do cinema moderno, como o John Doe, de "Seven, os sete crimes capitais" e o Verbal Kint, de "Os suspeitos" - Jim Sturgess sai-se bastante bem como Ben Campbell, um rapaz dividido entre a moral familiar e os prazeres do dinheiro fácil. Mostrando mais nuances do que em seu trabalho em "Across the universe", o jovem ator consegue a façanha de não ser ofuscado por Spacey e ainda conquista a simpatia da plateia ao evitar tanto o coitadismo exagerado quanto a arrogância exarcebada. Com seu trabalho exemplar, ele consegue até mesmo disfarçar a apatia de Kate Bosworth - que também desfilou sua falta de carisma no papel de Lois Lane no fracassado "Superman, o retorno", onde Spacey viveu Lex Luthor. No papel crucial do interesse romântico do protagonista, Bosworth não ultrapassa as limitações de sua personagem - uma prova viva dos limites de seu talento.
Divertido, inteligente e simpático, "Quebrando a banca" é um entretenimento dos bons. Vale uma espiada sem compromisso.
Nenhum comentário:
Postar um comentário