Alçado ao posto de rei dos filmes B graças a seu seminal "A noite dos mortos-vivos" (68), o cineasta Roger A. Romero fez sua carreira investindo em produções quase indigentes, que conquistavam o público justamente pela falta de sofisticação e pelo tom apocalíptico. Diretor, roteirista e produtor respeitado e admirado, Romero finalmente rendeu-se ao poder dos estúdios de Hollywood no final da década de 80, quando assinou contrato com a Orion Pictures para adaptar o romance "Monkey shines", de Michael Stewart. Com um orçamento (generoso para seus padrões) de 7 milhões de dólares, ele experimentou, pela primeira vez, a sensação de ter que dar satisfação de cada centavo gasto - além de ter de brigar para fazer o filme da maneira que havia imaginado. O resultado desse conflito - o meio-termo entre o produto comercial desejado pelo estúdio e o filme concebido pela imaginação criativa e um tanto doentia de seu diretor - é "Instinto fatal", um suspense intrigante e violento que une o talento de Romero em criar sequências aterrorizantes às regras do cinema mainstream. Por uma fina ironia, porém, o público deu a entender nas bilheterias que prefere a versão menos refinada de seu ídolo: com menos de 5 milhões de dólares arrecadados nos cinemas americanos, o filme traumatizou Romero - que só voltou a realizar um filme dentro dos padrões hollywoodianos cinco anos mais tarde (com a adaptação de "A metade negra", de Stephen King).
Na verdade, "Instinto fatal" tem todos os ingredientes para agradar aos fãs da filmografia trash de Romero e ao público em geral - seu fracasso comercial foi absolutamente injusto. Mesmo que a trama seja menos tosca do que a média (o livro de Stewart se aproveita de uma base científica para criar uma história repleta de surpresas quase críveis), Romero mantém intocada a aura rude de seus filmes mais conhecidos, evitando ao máximo o polimento excessivo que fatalmente limitaria sua assinatura tão reconhecida. No papel principal, por exemplo, não há um astro com apelo popular, e sim o (bom) ator Jason Beghe, que dá conta muito bem de todas as armadilhas do roteiro e de quebra tem o porte físico ideal para interpretar o protagonista - ator que dedicou grande parte da carreira a participações em séries de TV, ele cai como uma luva na pele do anti-heroi de Romero, um homem torturado por suas emoções e sentimentos de mágoa e raiva. Com direito até mesmo a cenas de sexo - fato raro quando se trata de personagens fisicamente limitados -, Beghe só não rouba o filme inteiro para si porque contracena com a grande estrela do projeto: a macaquinha Ella, "interpretada" pela expressiva (sim, expressiva) Boo.
Logo nas primeiras cenas o espectador é apresentado à rotina do jovem atleta Allan Mann: dedicado e esforçado, ele tem um futuro promissor pela frente, até que, ainda nos créditos de abertura tal futuro é abortado violentamente com um atropelamento. Tetraplégico e relegado a uma cadeira de rodas, o talentoso corredor se vê abandonado até pela namorada, Linda (Janine Turner), e conta apenas com o apoio da mãe, Dorothy (Joyce Van Patten), e do melhor amigo, o cientista Geoffrey Fisher (John Pankow). E é justamente Geoffrey que será o responsável por uma importante reviravolta na vida do amigo, ao apresentar-lhe à Ella, uma simpática e prestativa macaquinha treinada exatamente para servir de companhia e enfermeira. Porém, o que Allan não sabe é que a aparente inteligência de Ella faz parte de uma série de experiências científicas de Geoffrey - experiências estas ainda não totalmente encerradas e que podem ter consequências desastrosas. Com o passar dos dias, Ella não apenas se torna indispensável para Allan - para desgosto de sua enfermeira - como parece adivinhar seus pensamentos e compartilhar de seus sentimentos mais profundos. Quando desafetos do rapaz começam a ser violentamente atacados, a única (apesar de bizarra) explicação tem a ver com o fato do animalzinho servir como instrumento para castigar a todos que tiveram alguma participação no destino triste do jovem atleta.
Apesar da premissa um tanto fantasiosa, o roteiro de Romero não subestima a inteligência da plateia, estabelecendo com cuidado todas as regras do jogo para então partir para a violência explícita. O terço final da narrativa, quando toda a sutileza é deixada de lado em nome de um clímax o mais violento possível - e nisso está clara a influência de seu diretor - o filme até descamba para o exagero, com cenas longas e desnecessariamente sangrentas, mas mesmo assim não deixa de ser coerente com a filmografia anterior de Romero. Equilibrado com as pretensões de um estúdio cioso de suas finanças, "Instinto fatal" é um filme que não chega a ser completamente característico do cineasta, mas tampouco é um produto típico do cinemão comercial americano. É um saudável meio-termo, capaz de agradar aos fãs do gênero e não decepcionar o séquito de admiradores do conjunto da obra de um dos mais ousados criadores do terror moderno. Um filme digno de seu diretor e que consegue atingir também até àqueles que nunca ouviram falar de suas travessuras independentes.
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