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SNOWDEN: HERÓI OU TRAIDOR

SNOWDEN: HERÓI OU TRAIDOR (Snowden, 2016, Endgame Entertainment/Vendian Entertainment/KrautPack Entertainment, 134min) Direção: Oliver Stone. Roteiro: Oliver Stone, Kieran Fitzgerald, livro de Anatoly Kucherena e Luke Harding. Fotografia: Anthony Dod Mantle. Montagem: Alex Marquez, Lee Percy. Música: Craig Armstrong. Figurino: Bina Daigegler. Direção de arte/cenários: Mark Tildesley/Véronique Melery. Produção executiva: Max Averlaiz, Michael Bassick, Olivier Cottet-Puinel, Douglas Hansen, José Ibañez, Peter Lawson, Romain Le Grand, Bahman Naraghi, Tom Ortenberg, Jérôme Seydoux, James Stern, Christopher Woodrow. Produção: Moritz Borman, Eric Kopeloff, Philip Schulz-Deyle, Fernando Sulichin. Elenco: Joseph Gordon-Levitt, Melissa Leo, Zachary Quinto, Shailene Woodley, Nicolas Cage, Rhys Ifans, Tom Wilkinson, Joely Richardson, Logan Marshall-Green, Timothy Olyphant, Ben Chaplin, Scott Eastwood. Estreia: 21/7/16

Se existe um cineasta certo para contar a história de Edward Snowden nas telas de cinema, esse cineasta é Oliver Stone. Politicamente ativo e pouco dado a sutilezas, Stone ganhou dois Oscar de direção por cutucar o governo americano a respeito da guerra do Vietnã (por "Platoon", de 1986, e "Nascido em 4 de julho", de 1989) e nunca mediu palavras - ou imagens - para deixar bem claras suas posições liberais e democratas. Há muito tempo sem um grande sucesso de bilheteria - seu último trabalho a fazer barulho comercialmente foi "JFK", em 1991 - e massacrado impiedosamente pela crítica por seus trabalhos mais recentes, como "As Torres Gêmeas" (2006) e "Selvagens" (2012), Stone encontrou na trajetória arriscada e corajosa do jovem informante a matéria-prima para uma produção não apenas contundente e atual, mas extremamente necessária. Como era de se esperar, o filme fracassou comercialmente - nos EUA rendeu pouco mais da metade de seu orçamento, estimado em 40 milhões de dólares - e dividiu a crítica, mas é inegável que é o melhor Stone desde "Assassinos por natureza" (94), o que é ainda mais admirável quando se percebe que é também um dos filmes de narrativa mais acessível da carreira do diretor.

Dispensando os cacoetes visuais e artifícios narrativos que vem marcando sua carreira desde a década de 90, Oliver Stone faz de "Snowden: herói ou traidor" uma obra linear e quase convencional, que aposta muito mais no roteiro quase didático do que no visual exuberante - é a primeira vez que o cineasta se utiliza de câmeras digitais sem que seja em um documentário. Apesar da edição continuar sendo um dos destaques (aqui a cargo de Alex Marquez e Lee Percy), Stone abre mão de suas manias de despejar diante da audiência imagens em ritmo alucinante e quase esquizofrênico: a história é, sim, contada em duas linhas de tempo distintas, mas sem que uma atropele a outra e sem que o público perca o fio da meada diante do excesso de informações. O roteiro, baseado no livro "Time of the Octopus" do advogado russo Anatoly Kucherena - tratado como ficção mas amplamente baseado em entrevistas com Snowden -, é a força motriz do filme, a base sobre a qual o diretor constrói uma severa crítica ao modo como os governos Bush e Obama lidaram com espionagem em grande escala e nas graves consequências de tais atos. Com imagens reais de governos atingidos pelo escândalo - incluindo o Brasil - e sem medo de apontar dedos, "Snowden" é surpreendentemente sóbrio e honesto. Stone parece dizer, com sua direção discreta, que a história (forte, assustadora, chocante) é maior do que qualquer tentativa de manipulação artística.


O filme começa em junho de 2013, quando o jovem Edward Snowden (Joseph Gordon-Levitt) se encontra com o jornalista Glenn Greenwald (Zachary Quinto) e a documentarista Laura Poitras (Melissa Leo) em um hotel de Hong Kong - Greenwald mais tarde seria um dos mais ferrenhos opositores ao golpe parlamentar que destitui a presidente Dilma Roussef, e Proitas ganharia o Oscar de documentário por "Cidadãoquatro" (2014), justamente sobre o escândalo denunciado por Snowden. O encontro entre os três tem uma razão muito simples, ainda que potencialmente explosiva: o rapaz, ex-funcionário da CIA e da NSA, tem documentos que comprovam sem espaço para quaisquer dúvidas, de que o governo norte-americano, em nome da defesa nacional, tem acesso irrestrito a informações pessoais e confidenciais de todo o planeta - e que as utiliza sem nenhum critério ético ou moral. A partir daí, o roteiro intercala as reuniões do grupo (que contam ainda com o repórter do jornal "The Guardian", Ewen MacAskill (Tom Wilkinson)) com a trajetória do rapaz dentro das agências de segurança do país. Com inteligência acima da média e digno da confiança de seus colegas e superiores, Snowden aos poucos vai tomando conhecimento do absurdo que é a rede de espionagem que ele mesmo criou (com objetivos outros, menos invasivos). Ao lado da namorada, Lindsay (Shailene Woodley), ele entra em uma severa crise de consciência até que resolve expor toda a verdade ao mundo.

Um thriller político da mais alta qualidade - que consegue equilibrar com maestria tanto o suspense quanto a crítica ao governo -, "Snowden" comprova que Oliver Stone é, apesar de alguns exageros de sua carreira, um dos cineastas mais instigantes de Hollywood. Destemido e feroz em suas declarações cinematográficas, é também um contador de histórias nato, convincente e quase diabólico em suas tentativas de vender seu peixe. Além do mais, é um excelente diretor de atores: se todo o elenco de "Snowden" é homogeneamente competente (incluindo uma pequena participação de Nicolas Cage), a composição de Joseph Gordon-Levitt é impressionante. Mesmo sem ter semelhanças físicas com o protagonista, quando está em cena o jovem ator simplesmente se transforma no personagem: a voz, o gestual e a forma de falar engolem Levitt e fazem surgir um Edward Snowden irretocável, capaz de confundir aos desavisados - tal similaridade física fica evidente na última cena, em que o verdadeiro Snowden faz uma aparição rápida e marcante. Injustamente esquecido pelo Oscar - que desde "Nixon", de 1995, nunca mais indicou filmes de Stone em nenhuma categoria - e por outras cerimônias de premiação (apenas o Satellite Awards lhe deu uma indicação), Gordon-Levitt comprova ser um dos mais talentosos e versáteis atores de sua geração, capaz de encarar desafios sem medo e sem se repetir. Se "Snowden: herói ou traidor" é tão bom, pode-se dizer que é devido à união perfeita entre diretor, tema, roteiro e ator principal. Um dos grandes filmes de 2016.

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