terça-feira

NINA


NINA (Nina, 2004, Branca Filmes/Fábrica Brasileira de Imagens/Gullane, 90min) Direção: Heitor Dhalia. Roteiro: Marçal Aquino, Heitor Dhalia. Fotografia: José Roberto Elieser. Montagem: Estevan Santos. Música: Antonio Pinto. Figurino: Verônica Julian, Juliana Prysthon. Direção de arte: Guta Carvalho, Akira Goto. Produção executiva: Caio Gullane, Fabiano Gullane. Produção: Akira Goto, Fabiano Gullane. Elenco: Guta Stresser, Myrian Muniz, Wagner Moura, Guilherme Weber, Selton Mello, Lázaro Ramos, Matheus Nachtergaele, Aílton Graça, Renata Sorrah, Juliana Galdino, Sabrina Greve, Milhem Cortaz, Abrahão Farc. Estreia: 05/11/2004

É preciso coragem para mexer em "Crime e castigo", clássico absoluto da literatura russa e uma das mais emblemáticas obras do escritor Fiódor Dostoiévski. Mas é justamente isso que o paulista Heitor Dhalia faz em "Nina", seu primeiro longa-metragem: inspirado (nem tão livremente assim) no livro publicado em 1866, o filme estrelado por Guta Stresser (então no auge da popularidade graças à série "A grande família") mistura elementos do romance, linguagem de quadrinhos e um visual de estética gótica para contar uma história de solidão, desespero e culpa. Nem sempre atinge todos os seus objetivos - e nem sempre é fiel à sua fonte -, mas merece aplausos por sua ousadia narrativa e pela busca em romper com os padrões narrativos do cinema nacional. Contando com participações luxuosas - e em algumas vezes quase imperceptíveis de nomes consagrados como Renata Sorrah, Lázaro Ramos, Matheus Nachtergaele e Selton Mello -, "Nina" surgiu como um estranho no ninho dentro da filmografia brasileira de 2004, que apostou em cinebiografias ("Cazuza: o tempo não para" e "Olga"), comédias com elencos globais ("Sexo, amor e traição", "Como fazer um filme de amor"; "A dona da história") e documentários ("Pelé eterno"; "Entreatos").  Pode não ter se tornado um sucesso de bilheteria, mas foi o pontapé inicial na carreira de Dhalia, que em poucos anos chegaria a Hollywood com seu "12 horas" (2012).

Em uma atuação cujos excessos servem com perfeição ao visual estilizado proposto pelo conceito original, Guta Stresser vive a personagem-título, uma jovem atormentada por pesadelos e traumas de infância que alivia seu sofrimento mental através de seu talento como desenhista. Sobrevivendo aos trancos e barrancos em empregos nos quais se sente explorada, Nina passa as noites em festas regadas à álcool, drogas e sexo fácil, como forma de aguentar um dia-a-dia sufocante e opressivo. Ela aluga um quarto no amplo apartamento de Eulália (Myrian Muniz) e sofre com a falta de dinheiro que a faz ser constante humilhada. Mesquinha e cruel, Eulália não pensa duas vezes em trancar a geladeira, violar sua correspondência e até obrigá-la a fazer a pesada limpeza da casa como pagamento. Com a mente cada vez mais desestabilizada, Nina começa a ter pensamentos violentos - e uma tragédia a joga inexoravelmente no caminho da loucura.

 
 
Se utilizando de desenhos de Lourenço Mutarelli para ilustrar a mente em turbilhão de sua protagonista e de uma fotografia que retrata com precisão a atmosfera claustrofóbica da narrativa, "Nina" mergulha o espectador em um pesadelo sensorial, explicitada por ângulos de câmera inusitados, uma trilha sonora distorcida, personagens que flertam com o bizarro e uma edição intrincada, sempre a um passo do caos. O roteiro, por vezes superficial (até mesmo por sua estrutura episódica) retrata também o cotidiano de sua torturada personagem central, perdida em um comportamento errático e de relacionamentos superficiais - como o cego interpretado por Wagner Moura, em uma sequência de soluções visuais interessantes e criativas -, mas falha em conectá-la com o espectador. Mesmo que exista a empatia em relação às maldades de Eulália, é incômodo perceber seu viés maniqueísta, que reforça a impressão de uma produção audiovisual com alma de história em quadrinhos. Se encanta em termos estéticos e artísticos, é frágil quanto dramaturgia - apesar do desempenho memorável da veterana Myrian Muniz em seu primeiro trabalho no cinema, e do esforço de Guta Stresser em ser maior do que os clichês da caracterização de sua Nina.

Vencedor de quatro estatuetas do Prêmio Guarani - distribuídos aos destaques do cinema nacional - e homenageado com o prêmio da crítica no Festival de Moscou, "Nina" é um filme atípico dentro da filmografia brasileira, tanto por sua temática quanto por seu conceito. Feito para um público disposto a experimentar novos formatos e realizado quase como uma ação entre amigos - o que fica claro com as participações muito especiais que se espalham pelos noventa minutos de duração -, é uma das produções mais interessantes do começo dos anos 2000, mesmo com todos os pecadilhos que o impedem de ser completamente satisfatório.

 

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