MINHA VIDA COM LIBERACE (Behind the candelabra, 2013, HBO Films, 118min) Direção: Steven Soderbergh. Roteiro: Richard LaGravenese, livro de Scott Thorson, Alex Thorleifson. Fotografia: Peter Andrews (Steven Soderbergh). Montagem: Mary Ann Bernard (Steven Soderbergh). Figurino: Ellen Mirojnick. Direção de arte/cenários: Howard Cummings/Barbara Munch Cameron. Produção executiva: Jerry Weintraub. Produção: Susan Ekins, Gregory Jacobs, Michael Polaire. Elenco: Michael Douglas, Matt Damon, Scott Bakula, Rob Lowe, Debbie Reynolds, Cheyenne Jackson, Dan Ayckroyd, Paul Reiser. Estreia: 21/5/13 (Festival de Cannes)
Vencedor de 2 Golden Globes: Melhor Filme ou Minissérie para TV; Melhor Ator de Filme ou Minissérie para TV (Michael Douglas)
Quando o projeto de "Minha vida com Liberace" foi anunciado, em 2008, houve uma surpresa generalizada com o fato de, mesmo com a direção do consagrado Steven Soderbergh e com a presença de astros do calibre de Michael Douglas e Matt Damon - todos os três já premiados com o Oscar - o filme fosse ser produzido pela HBO e lançado como filme para a televisão. Foi o próprio cineasta quem explicou o motivo da recusa de todos os grandes estúdios de Hollywood: considerada gay demais até mesmo para o público que havia feito de "O segredo de Brokeback Mountain" um inesperado sucesso de bilheteria, a história real do mais famoso e extravagante pianista americano do século XX e de seus segredos mais bem escondidos (ao menos para a maioria de fãs femininas que lotavam seus concertos em Las Vegas) estava ameaçada de não sair das páginas do livro de seu ex-amante Scott Thorson e do roteiro do igualmente respeitado Richard LaGravenese (indicado ao Oscar por "O pescador de ilusões"). A decisão da HBO - conhecida pela alta qualidade de seus filmes, séries e minisséries - porém, não foi capaz de solucionar outro problema surgido logo à frente, mais grave e preocupante: a saúde debilitada de Michael Douglas, diagnosticado com câncer assim que o projeto foi anunciado. Filmagens adiadas, mas não canceladas. Felizmente recuperado, Douglas encarnou com maestria um de seus mais desafiadores papéis - e o filme, depois de uma estreia com pompa e circunstância no Festival de Cannes, tornou-se uma das produções mais elogiadas da temporada, com direito a lançamento internacional com o tratamento de uma produção para as telonas. Nada mais justo, já que é um dos melhores filmes de Soderbergh.
Vindo de um período ultra-prolífico mas pouco interessante - em que intercalava filmes medianos como "Terapia de risco" e outros simplesmente ruins, como "Magic Mike" - Soderbergh parecia ter perdido a mão, entregando ao público filmes que, mesmo quando faziam sucesso de bilheteria, jamais traíam a inteligência e o talento de obras como "Irresistível paixão" e "Traffic", que chegou a lhe render um Oscar de melhor diretor. Desacreditado junto à crítica e aos cinéfilos mais exigentes, ele acabou surpreendendo justamente onde ninguém levava muita fé: em um projeto para a televisão, um veículo que, a despeito do preconceito de que sempre foi vítima na comunidade cinematográfica, tornou-se, aos poucos, refúgio de muitos talentos e laboratório para as ousadias narrativas que a busca desesperada pela bilheteria da indústria sepultou sem dó nem piedade. Sem demonstrar qualquer tipo de descaso pelo novo veículo, Soderbergh acabou por voltar à sua melhor forma: "Minha vida com Liberace" é um belo trabalho: sério mas dotado de senso de humor, ousado na temática mas discreto na realização, respeitoso com o protagonista mas nunca condescendente e, mais do que tudo, com uma direção de atores que explica porque Julia Roberts e Benicio Del Toro foram premiados com o Oscar sob o comando do cineasta.
Mais velho do que o próprio artista estava quando morreu - vítima de complicações ligadas ao vírus da AIDS - mas totalmente convincente no papel que lhe rendeu o Golden Globe e o Emmy, Michael Douglas deita e rola: não apenas cria um Liberace egocêntrico a ponto de obrigar o amante a fazer uma plástica facial para ficar parecido com ele como mostra à plateia seu lado carente e generoso (ainda que tal generosidade seja discutível, como mostra o desfecho da história). Quando retrata o Liberace ídolo - adorado por fãs e admirado pela indústria do entretenimento - fica ainda melhor: suas apresentações abarrotadas de casacos de pele, candelabros e brilhos dos mais diversos são o ponto alto do filme, quando Douglas deixa de lado a persona viril que vinha imprimindo à sua carreira até então para se jogar em uma atuação divertida e leve - mas que jamais escorrega para a caricatura, o que seria o caminho mais fácil quando se trata de um personagem tão excêntrico. O respeito de Douglas pelo material é perceptível (até porque seu pai, Kirk Douglas, era amigo de Liberace) e a falta de vaidade com que se entrega a cenas difíceis e delicadas é admirável. Felizmente ele tem a seu lado um Matt Damon igualmente dedicado, em um duelo de gerações que só faz aumentar a qualidade geral da produção.
Na verdade, Damon é o real protagonista de "Minha vida com Liberace": ele vive Scott Thorson, o rapaz tímido e com problemas com os pais que vê sua vida totalmente transformada quando se torna amante e companheiro de Liberace, um dos maiores ídolos do país e que o insere em um universo repleto de luxos e competições internas. Ingênuo até certo ponto, ele demora a perceber que seu valor dentro da mansão do músico está intimamente ligado à sua juventude e sua beleza e, quando isso acontece, entra em rota de colisão com toda a equipe do artista, acostumada com as oscilações dos afetos do patrão. Até que ponto as lembranças de Scott são verdadeiras ou fruto do final amargo de seu relacionamento com Liberace é uma questão que o filme não tenta responder, apesar de seu roteiro jamais por em dúvida as declarações do rapaz. O que o filme mostra é seu ponto de vista, mas, a julgar pelo silêncio que se fez em relação aos fatos (não houve nenhum tipo de desmentido desde a estreia), se não é tudo verdade, boa parte é.
O que importa, no fim das contas, é que "Minha vida com Liberace" devolveu o crédito a Steven Soderbergh, proporcionou a Michael Douglas um retorno triunfal com direito a prêmios e elogios entusiasmados, recolocou Debbie Reynolds na mídia - irreconhecível como a mãe do pianista - e mostrou que não é mais preciso que os grandes estúdios invistam para que filmes de qualidade cheguem aos fãs. É o futuro mostrando seu rosto.
Filmes, filmes e mais filmes. De todos os gêneros, países, épocas e níveis de qualidade. Afinal, a sétima arte não tem esse nome à toa.
segunda-feira
domingo
INSIDE LLEWYN DAVIS - BALADA DE UM HOMEM COMUM
INSIDE LLEWYN DAVIS - BALADA DE UM HOMEM COMUM (Inside Llewyn Davis, 2013, CBS Films/StudioCanal, 104min) Direção e roteiro: Ethan Coen, Joel Coen. Fotografia: Bruno Delbonnel. Montagem: Roderick Jaynes. Figurino: Mary Zophres. Direção de arte/cenários: Jess Gonchor/Susan Bode Tyson. Produção executiva: Olivier Courson, Robert Graf, Ron Halpern. Produção: Ethan Coen, Joel Coen, Scott Rudin. Elenco: Oscar Isaac, Carey Mulligan, Justin Timberlake, Ethan Phillips, Max Casella, Adam Driver, John Goodman, Garrett Hedlund, F. Murray Abraham. Estreia: 19/5/13 (Festival de Cannes)
2 indicações ao Oscar: Fotografia, Mixagem de Som
Não adianta. Entra ano e sai ano, os irmãos Coen continuam sendo uma voz única (por mais paradoxal que seja a afirmação, uma vez que eles são dois) dentro da mesmice do cinema americano. Mesmo que por vezes aceitem fazer o jogo da indústria - com filmes mais comerciais, como "O amor custa caro" e "Queime depois de ler", que ainda assim tem um quê de rebeldia disfarçada pelos elencos estelares - eles nunca abrem mão de imprimir em cada trabalho uma personalidade que os diferenciam do mainstream. Mais uma prova disso - se é que precisa de mais uma - é o melancólico "Inside Llewyn Davis, balada de um homem comum", injustamente ignorado pela mesma Academia que encheu de louvores o fraco e previsível "Clube de compras Dallas". Repleto das qualidades que fazem da filmografia dos Coen uma das mais consistentes do cinema ianque desde sua estreia com a revisita ao filme noir "Gosto de sangue" (84), a odisseia do músico folk do título, vivido com intensidade crua pelo ótimo Oscar Isaac, é uma pérola de sensibilidade, humor negro e boa música, capaz de envolver a audiência sem precisar de grandes eventos dramáticos para isso.
Llewyn Davis, o protagonista, é um cantor folk sem lar, sem lenço e sem documento que transita pelo Greenwich Village de 1961, buscando uma chance de firmar-se na carreira depois do suicídio do parceiro artístico. Seguindo o vento, ele conta com a ajuda dos amigos para sobreviver sem um endereço fixo - mesmo que em várias ocasiões surjam conflitos sérios entre eles, especialmente com Jean (Carey Mulligan, mais uma vez ameaçando roubar a cena), namorada e parceira musical do talentoso Jim (o cantor Justin Timberlake acertando mais uma vez em sua carreira cinematográfica), que lhe revela estar grávida depois de um rápido e traumático caso. Sua vida itinerante o faz questionar frequentemente sua opção em tentar a vida artística, mas seu amor pela música sempre fala mais alto, mesmo quando tudo parece lhe gritar o contrário. Solitário e melancólico, ele vaga sem destino pelas ruas de Nova York - e Chicago - acompanhado apenas por um gato do qual nem sabe o nome e de seu violão, sua arma contra a mediocridade e a agressividade de um mundo hostil à sua presença quase invisível.
Tendo sua trajetória ilustrada pela excepcional trilha sonora supervisionada por T Bone Burnett (que fez o mesmo com "Coração louco", que deu o Oscar de melhor ator a Jeff Bridges em 2010) e iluminada magistralmente pela câmera do francês Bruno Delbonnell (merecidamente indicada a uma estatueta da Academia), que transforma cada cena em uma pequena obra de arte que reflete seu estado de espírito atormentado mas sempre inquebrantável, Llewyn Davis é mais um anti-heroi criado pelos irmãos Coen, um homem que, conforme destaca o desnecessário subtítulo nacional, é comum em seus sentimentos mas brilhante em sua tenacidade artística. Seus expressivos silêncios, seu olhar triste e a força de sua música - passional e potente - falam mais do que seus diálogos, repletos de um desamparo e de uma desesperança que contrastam com sua resiliência. Exímios roteiristas, os irmãos Coen preenchem seu filme ora com ataques agressivos ao protagonista - em especial quando se trata de Jean e sua metralhadora de ofensas - ora com um senso de humor negro sutil e inteligente. Em uma jogada de mestre, eles ainda dão a seu protagonista uma revelação bombástica, que pode (ou não) mudar drasticamente seu destino e fazem a escolha certa em relação à sua decisão de encará-la.
Brilhantemente interpretado por Oscar Isaac - ator nascido na Guatemala e que já foi visto mas pouco notado em filmes como "Drive" (onde fazia o marido de Carey Mulligan) e "W/E, o romance do século" (dirigido por Madonna) - Llewyn Davis passa o filme inteiro lutando contra os obstáculos de um cotidiano opressor e preto-e-branco contando apenas com sua quase implacável confiança em seu talento quase nunca devidamente reconhecido (e é diferente na vida real?). Passando por momentos ora surreais - como a carona com um desagradável John Goodman, colaborador habitual dos cineastas - ora de um tristeza quase tangível, o filme conquista pela sofisticação de sua narrativa e pela delicadeza estonteante de seu visual. É um pequeno grande filme que merece ser reconhecido como tal - nem que seja para provar que nem só de elaborados efeitos especiais vive o cinema americano.
2 indicações ao Oscar: Fotografia, Mixagem de Som
Não adianta. Entra ano e sai ano, os irmãos Coen continuam sendo uma voz única (por mais paradoxal que seja a afirmação, uma vez que eles são dois) dentro da mesmice do cinema americano. Mesmo que por vezes aceitem fazer o jogo da indústria - com filmes mais comerciais, como "O amor custa caro" e "Queime depois de ler", que ainda assim tem um quê de rebeldia disfarçada pelos elencos estelares - eles nunca abrem mão de imprimir em cada trabalho uma personalidade que os diferenciam do mainstream. Mais uma prova disso - se é que precisa de mais uma - é o melancólico "Inside Llewyn Davis, balada de um homem comum", injustamente ignorado pela mesma Academia que encheu de louvores o fraco e previsível "Clube de compras Dallas". Repleto das qualidades que fazem da filmografia dos Coen uma das mais consistentes do cinema ianque desde sua estreia com a revisita ao filme noir "Gosto de sangue" (84), a odisseia do músico folk do título, vivido com intensidade crua pelo ótimo Oscar Isaac, é uma pérola de sensibilidade, humor negro e boa música, capaz de envolver a audiência sem precisar de grandes eventos dramáticos para isso.
Llewyn Davis, o protagonista, é um cantor folk sem lar, sem lenço e sem documento que transita pelo Greenwich Village de 1961, buscando uma chance de firmar-se na carreira depois do suicídio do parceiro artístico. Seguindo o vento, ele conta com a ajuda dos amigos para sobreviver sem um endereço fixo - mesmo que em várias ocasiões surjam conflitos sérios entre eles, especialmente com Jean (Carey Mulligan, mais uma vez ameaçando roubar a cena), namorada e parceira musical do talentoso Jim (o cantor Justin Timberlake acertando mais uma vez em sua carreira cinematográfica), que lhe revela estar grávida depois de um rápido e traumático caso. Sua vida itinerante o faz questionar frequentemente sua opção em tentar a vida artística, mas seu amor pela música sempre fala mais alto, mesmo quando tudo parece lhe gritar o contrário. Solitário e melancólico, ele vaga sem destino pelas ruas de Nova York - e Chicago - acompanhado apenas por um gato do qual nem sabe o nome e de seu violão, sua arma contra a mediocridade e a agressividade de um mundo hostil à sua presença quase invisível.
Tendo sua trajetória ilustrada pela excepcional trilha sonora supervisionada por T Bone Burnett (que fez o mesmo com "Coração louco", que deu o Oscar de melhor ator a Jeff Bridges em 2010) e iluminada magistralmente pela câmera do francês Bruno Delbonnell (merecidamente indicada a uma estatueta da Academia), que transforma cada cena em uma pequena obra de arte que reflete seu estado de espírito atormentado mas sempre inquebrantável, Llewyn Davis é mais um anti-heroi criado pelos irmãos Coen, um homem que, conforme destaca o desnecessário subtítulo nacional, é comum em seus sentimentos mas brilhante em sua tenacidade artística. Seus expressivos silêncios, seu olhar triste e a força de sua música - passional e potente - falam mais do que seus diálogos, repletos de um desamparo e de uma desesperança que contrastam com sua resiliência. Exímios roteiristas, os irmãos Coen preenchem seu filme ora com ataques agressivos ao protagonista - em especial quando se trata de Jean e sua metralhadora de ofensas - ora com um senso de humor negro sutil e inteligente. Em uma jogada de mestre, eles ainda dão a seu protagonista uma revelação bombástica, que pode (ou não) mudar drasticamente seu destino e fazem a escolha certa em relação à sua decisão de encará-la.
Brilhantemente interpretado por Oscar Isaac - ator nascido na Guatemala e que já foi visto mas pouco notado em filmes como "Drive" (onde fazia o marido de Carey Mulligan) e "W/E, o romance do século" (dirigido por Madonna) - Llewyn Davis passa o filme inteiro lutando contra os obstáculos de um cotidiano opressor e preto-e-branco contando apenas com sua quase implacável confiança em seu talento quase nunca devidamente reconhecido (e é diferente na vida real?). Passando por momentos ora surreais - como a carona com um desagradável John Goodman, colaborador habitual dos cineastas - ora de um tristeza quase tangível, o filme conquista pela sofisticação de sua narrativa e pela delicadeza estonteante de seu visual. É um pequeno grande filme que merece ser reconhecido como tal - nem que seja para provar que nem só de elaborados efeitos especiais vive o cinema americano.
sábado
UM ESTRANHO NO LAGO
UM ESTRANHO NO LAGO (L'inconnu du lac, 2013, Les Films du Worso/Arte France Cinéma, 100min) Direção e roteiro: Alain Guiraudie. Fotografia: Claire Mathon. Montagem: Jean-Christophe Hym. Direção de arte: Roy Genty, François Labarthe, Laurent Lunetta. Produção executiva: Benoit Quainon. Produção: Sylvie Pialat. Elenco: Pierre Delandonchamps, Christophe Paou, Patrick D'Assumçao, Jérôme Chappatte, Mathieu Vervisch. Estreia: 17/5/13 (Festival de Cannes)
Vencedor de 2 prêmios no Festival de Cannes 2013: Queer Palm (Filmes com Temática Homossexual) e Melhor Diretor (Alain Guiraudie) na Mostra "Um certo olhar"
Para se ter uma vaga ideia do quão explícitas são as cenas de sexo entre os personagens do francês "Um estranho no lago", basta dizer que seu diretor e roteirista Alain Guiraudie considerou contratar atores pornô para os papéis centrais do filme - ideia logo descartada para que ele pudesse contar com atores de verdade, que dessem consistência dramática à história. Realmente algumas sequências são bem fortes a quem está acostumado à pasteurização do sexo no cinema comercial (em especial no americano), mas o filme de Guiraudie é bem mais do que uma sucessão de momentos quentes entre homens à procura de sexo sem compromisso. Suspense psicológico construído aos poucos, que privilegia o clima à violência gráfica e não tem medo de desafiar as regras do gênero, "Um estranho no lago" pode não agradar a todo mundo, mas é um trabalho acima da média, que ousa sem fazer alarde e conquista o público sem fazer concessões ao politicamente correto.
Duplamente premiado no Festival de Cannes 2013 - melhor filme de temática gay (Queer Palm) e melhor diretor da mostra "Un certain regard" - e indicado a 8 César (o Oscar francês) - do qual Pierre Deladonchamps saiu vitorioso como melhor promessa masculina - "Um estranho no lago" também foi muito bem-recebido pela crítica mundial, que percebeu que ele, mais do que simplesmente um filme gay, é um interessante estudo sobre como o amor/obsessão pode muitas vezes suplantar a racionalidade, mesmo quando o preço pode ser a própria vida. Pintando um retrato imparcial sobre um estilo de vida muitas vezes criticado e incompreendido, Guiraudie conta sua história sem sobressaltos, optando por um viés contemplativo e delicado que contrasta violentamente com o teor da trama, um enredo policial simples mas bastante eficiente em seu objetivo de prender a atenção até o último minuto de projeção - ainda que o final tenha sérias possibilidades de desagradar boa parte da plateia.
A história se passa dentro de um período de dez dias bem marcados pela edição concisa - que resumiu a primeira metragem de 2h18 finalizada pelo cineasta - e narra, a princípio, o dia-a-dia de homossexuais masculinos que frequentam um bucólico e tranquilo lago que serve também como local para encontros sexuais anônimos e efêmeros. O protagonista é Franck (Pierre Deladonchamps), um jovem que há alguns anos tem o costume de passar seus verões aproveitando a tranquilidade do cenário, bem como procurando o prazer rápido e descompromissado das relações fugazes proporcionadas pelo clima de liberdade. Sua rotina é alterada quando ele passa a sentir-se fortemente atraído pelo charmoso Michel (Christophe Paou), de quem nunca consegue aproximar-se o bastante devido à presença constante de um outro rapaz com quem ele parece ter um relacionamento quase fixo. Em um final de tarde, porém, Franck testemunha Michel matar seu parceiro afogado no lago. Ao invés de afastar-se, no entanto, ele passa a sentir-se cada vez mais atraído e os dois acabam se envolvendo. Apaixonado, Franck passa a viver um misto de amor e medo, principalmente quando a polícia, na figura do Inspetor Damroder (Jérôme Chappatte) começa a fechar o cerco em relação a ambos.
Centrando seu foco na sensação de desejo/medo de Franck - que investe em Michel mesmo sabendo de suas tendências homicidas, sublinhadas por seu jeito fechado e misterioso - o roteiro de "Um estranho no lago" acerta em deixar claro, desde o início, a culpa de Michel, evitando, assim, os clichês que acompanham boa parte dos filmes policiais, que centram sua narrativa na tentativa de descobrir quem é o culpado pelos crimes. A história que Guiraudie quer contar é outra, e ele deixa bem clara essa opção assim que mostra o assassinato e passa a dedicar-se ao dilema enfrentado pelo protagonista, dividido entre denunciar o homem por quem é apaixonado ou viver uma história de amor que pode acabar com sua vida. Sem preocupar-se em mostrar a vida dos personagens fora do cenário natural onde se passa toda a trama - não se sabe nada a respeito de ninguém quando saem do lago - ele deixa o espectador tão perdido quanto o inspetor e até mesmo os envolvidos na história, o que inclui o solitário Henri (Patrick D'Assumçao), que se torna amigo de Franck e, em seu silêncio, sabe mais do que aparenta a princípio. Essa ideia de negar a seus personagens uma vida além de sua sexualidade, apesar de parecer um tanto preconceituosa em um primeiro olhar - homens gays sem identidade em busca unicamente de sexo - acaba por ser um ponto de verdade muito bem-vindo. Sem julgamentos morais, o cineasta/roteirista mostra uma realidade comum à comunidade gay - vale lembrar que ele tentou situar a história em um universo heterossexual, mas percebeu que a essência da trama não se encaixava em outro ambiente que não o altamente erotizado mostrado em seu filme.
Mantendo o tom de suspense psicológico até seus derradeiros (e polêmicos) minutos finais, "Um estranho no lago" tem ainda o mérito de tirar o cinema gay do nicho das histórias de amor condenadas pelo preconceito (um clichê já desgastado mas que, em alguns casos ainda funciona) e jogá-lo em outro gênero. Só por essa lufada de ar fresco - sintomaticamente vinda do cinema não-hollywoodiano - já merece ser conhecido e aplaudido, mesmo que seu desfecho corra o risco de deixar muita gente decepcionada (outra ousadia de um diretor que ainda pode surpreender muito no futuro).
Vencedor de 2 prêmios no Festival de Cannes 2013: Queer Palm (Filmes com Temática Homossexual) e Melhor Diretor (Alain Guiraudie) na Mostra "Um certo olhar"
Para se ter uma vaga ideia do quão explícitas são as cenas de sexo entre os personagens do francês "Um estranho no lago", basta dizer que seu diretor e roteirista Alain Guiraudie considerou contratar atores pornô para os papéis centrais do filme - ideia logo descartada para que ele pudesse contar com atores de verdade, que dessem consistência dramática à história. Realmente algumas sequências são bem fortes a quem está acostumado à pasteurização do sexo no cinema comercial (em especial no americano), mas o filme de Guiraudie é bem mais do que uma sucessão de momentos quentes entre homens à procura de sexo sem compromisso. Suspense psicológico construído aos poucos, que privilegia o clima à violência gráfica e não tem medo de desafiar as regras do gênero, "Um estranho no lago" pode não agradar a todo mundo, mas é um trabalho acima da média, que ousa sem fazer alarde e conquista o público sem fazer concessões ao politicamente correto.
Duplamente premiado no Festival de Cannes 2013 - melhor filme de temática gay (Queer Palm) e melhor diretor da mostra "Un certain regard" - e indicado a 8 César (o Oscar francês) - do qual Pierre Deladonchamps saiu vitorioso como melhor promessa masculina - "Um estranho no lago" também foi muito bem-recebido pela crítica mundial, que percebeu que ele, mais do que simplesmente um filme gay, é um interessante estudo sobre como o amor/obsessão pode muitas vezes suplantar a racionalidade, mesmo quando o preço pode ser a própria vida. Pintando um retrato imparcial sobre um estilo de vida muitas vezes criticado e incompreendido, Guiraudie conta sua história sem sobressaltos, optando por um viés contemplativo e delicado que contrasta violentamente com o teor da trama, um enredo policial simples mas bastante eficiente em seu objetivo de prender a atenção até o último minuto de projeção - ainda que o final tenha sérias possibilidades de desagradar boa parte da plateia.
A história se passa dentro de um período de dez dias bem marcados pela edição concisa - que resumiu a primeira metragem de 2h18 finalizada pelo cineasta - e narra, a princípio, o dia-a-dia de homossexuais masculinos que frequentam um bucólico e tranquilo lago que serve também como local para encontros sexuais anônimos e efêmeros. O protagonista é Franck (Pierre Deladonchamps), um jovem que há alguns anos tem o costume de passar seus verões aproveitando a tranquilidade do cenário, bem como procurando o prazer rápido e descompromissado das relações fugazes proporcionadas pelo clima de liberdade. Sua rotina é alterada quando ele passa a sentir-se fortemente atraído pelo charmoso Michel (Christophe Paou), de quem nunca consegue aproximar-se o bastante devido à presença constante de um outro rapaz com quem ele parece ter um relacionamento quase fixo. Em um final de tarde, porém, Franck testemunha Michel matar seu parceiro afogado no lago. Ao invés de afastar-se, no entanto, ele passa a sentir-se cada vez mais atraído e os dois acabam se envolvendo. Apaixonado, Franck passa a viver um misto de amor e medo, principalmente quando a polícia, na figura do Inspetor Damroder (Jérôme Chappatte) começa a fechar o cerco em relação a ambos.
Centrando seu foco na sensação de desejo/medo de Franck - que investe em Michel mesmo sabendo de suas tendências homicidas, sublinhadas por seu jeito fechado e misterioso - o roteiro de "Um estranho no lago" acerta em deixar claro, desde o início, a culpa de Michel, evitando, assim, os clichês que acompanham boa parte dos filmes policiais, que centram sua narrativa na tentativa de descobrir quem é o culpado pelos crimes. A história que Guiraudie quer contar é outra, e ele deixa bem clara essa opção assim que mostra o assassinato e passa a dedicar-se ao dilema enfrentado pelo protagonista, dividido entre denunciar o homem por quem é apaixonado ou viver uma história de amor que pode acabar com sua vida. Sem preocupar-se em mostrar a vida dos personagens fora do cenário natural onde se passa toda a trama - não se sabe nada a respeito de ninguém quando saem do lago - ele deixa o espectador tão perdido quanto o inspetor e até mesmo os envolvidos na história, o que inclui o solitário Henri (Patrick D'Assumçao), que se torna amigo de Franck e, em seu silêncio, sabe mais do que aparenta a princípio. Essa ideia de negar a seus personagens uma vida além de sua sexualidade, apesar de parecer um tanto preconceituosa em um primeiro olhar - homens gays sem identidade em busca unicamente de sexo - acaba por ser um ponto de verdade muito bem-vindo. Sem julgamentos morais, o cineasta/roteirista mostra uma realidade comum à comunidade gay - vale lembrar que ele tentou situar a história em um universo heterossexual, mas percebeu que a essência da trama não se encaixava em outro ambiente que não o altamente erotizado mostrado em seu filme.
Mantendo o tom de suspense psicológico até seus derradeiros (e polêmicos) minutos finais, "Um estranho no lago" tem ainda o mérito de tirar o cinema gay do nicho das histórias de amor condenadas pelo preconceito (um clichê já desgastado mas que, em alguns casos ainda funciona) e jogá-lo em outro gênero. Só por essa lufada de ar fresco - sintomaticamente vinda do cinema não-hollywoodiano - já merece ser conhecido e aplaudido, mesmo que seu desfecho corra o risco de deixar muita gente decepcionada (outra ousadia de um diretor que ainda pode surpreender muito no futuro).
sexta-feira
O GRANDE GATSBY
O GRANDE GATSBY (The Great Gatsby, 2013, Warner Bros/Village Roadshow Pictures, 143min) Direção: Baz Luhrmann. Roteiro: Baz Luhrmann, Craig Pearce, romance de F. Scott Fitzgerald. Fotografia: Simon Duggan. Montagem: Jason Ballantine, Jonathan Redmond, Matt Villa. Música: Craig Armstrong. Figurino: Catherine Martin. Direção de arte/cenários: Catherine Martin/Beverley Dunn, Eva Starlite. Produção executiva: Bruce Berman, Shawn "Jay Z" Carter, Barrie M. Osborne. Produção: Lucy Fisher, Catherine Knapman, Baz Luhrmann, Catherine Martin, Douglas Wick. Elenco: Leonardo DiCaprio, Carey Mulligan, Tobey Maguire, Joel Edgerton, Isla Fischer, Jason Clarke. Estreia: 01/5/13
Vencedor de 2 Oscar: Figurino, Direção de Arte/Cenários
Quem conhece o cinema do australiano Baz Luhrmann sabe exatamente o que esperar de sua adaptação do clássico americano "O grande Gatsby", de F. Scott Fitzgerald. Deixando de lado a suntuosidade discreta e fleumática da versão de Jack Clayton, lançada em 1974 e estrelada por Robert Redford e Mia Farrow - e vencedora do Oscar de figurino - o homem que deu ao mundo obras que são um louvor incontestável ao kitsch, como "Vem dançar comigo" e "Moulin Rouge, o amor em vermelho", reitera suas convicções estéticas ao compor uma sinfonia de cores e opulência que, ao contrário do que se poderia esperar, casa perfeitamente com a história do romance de Fitzgerald. Se o filme de Clayton é considerado quase unanimemente chato pela crítica e pelo público por seguir fielmente o livro, a obra de Luhrmann irradia luz, calor e paixão na medida certa - ainda que, como sempre acontece com seus trabalhos, carregue nas tintas em seu começo, para somente depois envolver a plateia na história.
Tendo em vista seu currículo - onde o luxo e a efervescência cultural são ingredientes indispensáveis - é quase impossível pensar em outro diretor mais capaz do que Luhrmann de traduzir em imagens as palavras clássicas do homem que é também o criador do inesquecível Benjamin Button. Fotografada com precisão pelo neozelandês Simon Duggan, a recriação da Long Island dos anos 20 é perfeita em sua concepção: a ideia do diretor e de seus fieis colaboradores (entre eles a sua mulher, Catherine Martin, responsável pelo desenho de produção e pelos figurinos, ambos premiados com o Oscar) não é ser fiel à realidade, e sim, às memórias de quem narra a estória, no caso, o escritor Nick Carraway (vivido com a habitual falta de entusiasmo por Tobey Maguire). Com sua visão de literato, Carraway não deixa de misturar ao real uma pitada bastante grande de poesia e ludicidade. Os olhos da audiência são os olhos de Carraway, e essa liberdade de ponto de vista é que transforma "O grande Gatbsy" via Luhrmann em, mais do que uma história de amor, um espetáculo de forma, cor e o sempre bem-vindo anacronismo musical que faz a delícia de seus fãs.
Se em "Moulin Rouge" o cineasta contou uma história passada no final do século XIX utilizando como trilha sonora nomes tão aparentemente incongruentes como Madonna, Nirvana, Paul McCartney e David Bowie, dessa vez ele conta com Beyoncé, Lana Del Rey e Florence Welch como moldura para suas insanidades visuais. Porém, aqui a música não é o prato principal, e sim um acompanhamento de luxo a uma trama de amor desesperado, contada com a sensibilidade e o ritmo do século XXI. Para tal, Luhrmann volta a contar com Leonardo DiCaprio, a quem ajudou a transformar em ídolo adolescente em 1996, com sua versão psicodélica de "Romeu e Julieta". DiCaprio - ainda tentando livrar-se da eterna imagem juvenil - vive o personagem-título, Jay Gatsby, um milionário conhecido por oferecer festas gigantescas em sua mansão em Long Island e que desperta a curiosidade de seu jovem vizinho, um aspirante a escritor que se vê envolvido no mundo alucinante e festivo dos anos 20. Não demora muito, porém, para que as razões que levam Gatsby a ser o anfitrião mais conhecido das redondezas sejam conhecidas: apaixonado por uma antiga namorada, ele vê nessa vida de pompa e circunstância a oportunidade de reencontrá-la. O escritor não demora também a descobrir que tal namorada é sua prima, a bela Daisy Buchanam (Carey Mulligan), casada com o infiel e pouco dado a delicadezas Tom (Joel Edgerton). O triângulo amoroso, potencializado pelo caráter violento de Tom e pela impossibilidade de Daisy em abdicar de sua vida familiar, acaba banhando o belo litoral em sangue e lágrimas (sempre iluminados com um capricho arrebatador, dessa vez filmado em 3D).
Se Leonardo DiCaprio não consegue fazer de seu Jay Gatsby uma figura potente e carismática a ponto de justificar o título do filme - chegando a ser irritante em alguns importantes momentos - e Tobey Maguire nunca ultrapassa o seu nível tradicional de interpretação, é inegável que Baz Luhrmann tem em mãos dois trunfos absolutos em termos dramáticos: Carey Mulligan e Joel Edgerton. O ator - que esteve em filmes elogiados como "Reino animal" e "Guerreiro", mas ainda não teve o devido reconhecimento - encontra o tom perfeito para seu Buchanan, roubando todas as cenas em que aparece. E Mulligan - que dispensa maiores comentários - cria uma Daisy etérea, delicada e frágil na medida certa, valorizada pelo figurino impecável e por seu talento imenso. Se o visual acachapante criado por Luhrmann é o corpo de "O grande Gatsby", Carey é sua alma, mesmo tendo em suas mãos uma personagem nem sempre amável ou de atitudes compreensíveis. O olhar de Mulligan, expressivo e melancólico, é a tradução perfeita da ressaca que veio depois dos esfuziantes anos 20 retratados por Fitzgerald. Um acerto gigantesco na escolha do elenco e que faz do filme um programa obrigatório.
Vencedor de 2 Oscar: Figurino, Direção de Arte/Cenários
Quem conhece o cinema do australiano Baz Luhrmann sabe exatamente o que esperar de sua adaptação do clássico americano "O grande Gatsby", de F. Scott Fitzgerald. Deixando de lado a suntuosidade discreta e fleumática da versão de Jack Clayton, lançada em 1974 e estrelada por Robert Redford e Mia Farrow - e vencedora do Oscar de figurino - o homem que deu ao mundo obras que são um louvor incontestável ao kitsch, como "Vem dançar comigo" e "Moulin Rouge, o amor em vermelho", reitera suas convicções estéticas ao compor uma sinfonia de cores e opulência que, ao contrário do que se poderia esperar, casa perfeitamente com a história do romance de Fitzgerald. Se o filme de Clayton é considerado quase unanimemente chato pela crítica e pelo público por seguir fielmente o livro, a obra de Luhrmann irradia luz, calor e paixão na medida certa - ainda que, como sempre acontece com seus trabalhos, carregue nas tintas em seu começo, para somente depois envolver a plateia na história.
Tendo em vista seu currículo - onde o luxo e a efervescência cultural são ingredientes indispensáveis - é quase impossível pensar em outro diretor mais capaz do que Luhrmann de traduzir em imagens as palavras clássicas do homem que é também o criador do inesquecível Benjamin Button. Fotografada com precisão pelo neozelandês Simon Duggan, a recriação da Long Island dos anos 20 é perfeita em sua concepção: a ideia do diretor e de seus fieis colaboradores (entre eles a sua mulher, Catherine Martin, responsável pelo desenho de produção e pelos figurinos, ambos premiados com o Oscar) não é ser fiel à realidade, e sim, às memórias de quem narra a estória, no caso, o escritor Nick Carraway (vivido com a habitual falta de entusiasmo por Tobey Maguire). Com sua visão de literato, Carraway não deixa de misturar ao real uma pitada bastante grande de poesia e ludicidade. Os olhos da audiência são os olhos de Carraway, e essa liberdade de ponto de vista é que transforma "O grande Gatbsy" via Luhrmann em, mais do que uma história de amor, um espetáculo de forma, cor e o sempre bem-vindo anacronismo musical que faz a delícia de seus fãs.
Se em "Moulin Rouge" o cineasta contou uma história passada no final do século XIX utilizando como trilha sonora nomes tão aparentemente incongruentes como Madonna, Nirvana, Paul McCartney e David Bowie, dessa vez ele conta com Beyoncé, Lana Del Rey e Florence Welch como moldura para suas insanidades visuais. Porém, aqui a música não é o prato principal, e sim um acompanhamento de luxo a uma trama de amor desesperado, contada com a sensibilidade e o ritmo do século XXI. Para tal, Luhrmann volta a contar com Leonardo DiCaprio, a quem ajudou a transformar em ídolo adolescente em 1996, com sua versão psicodélica de "Romeu e Julieta". DiCaprio - ainda tentando livrar-se da eterna imagem juvenil - vive o personagem-título, Jay Gatsby, um milionário conhecido por oferecer festas gigantescas em sua mansão em Long Island e que desperta a curiosidade de seu jovem vizinho, um aspirante a escritor que se vê envolvido no mundo alucinante e festivo dos anos 20. Não demora muito, porém, para que as razões que levam Gatsby a ser o anfitrião mais conhecido das redondezas sejam conhecidas: apaixonado por uma antiga namorada, ele vê nessa vida de pompa e circunstância a oportunidade de reencontrá-la. O escritor não demora também a descobrir que tal namorada é sua prima, a bela Daisy Buchanam (Carey Mulligan), casada com o infiel e pouco dado a delicadezas Tom (Joel Edgerton). O triângulo amoroso, potencializado pelo caráter violento de Tom e pela impossibilidade de Daisy em abdicar de sua vida familiar, acaba banhando o belo litoral em sangue e lágrimas (sempre iluminados com um capricho arrebatador, dessa vez filmado em 3D).
Se Leonardo DiCaprio não consegue fazer de seu Jay Gatsby uma figura potente e carismática a ponto de justificar o título do filme - chegando a ser irritante em alguns importantes momentos - e Tobey Maguire nunca ultrapassa o seu nível tradicional de interpretação, é inegável que Baz Luhrmann tem em mãos dois trunfos absolutos em termos dramáticos: Carey Mulligan e Joel Edgerton. O ator - que esteve em filmes elogiados como "Reino animal" e "Guerreiro", mas ainda não teve o devido reconhecimento - encontra o tom perfeito para seu Buchanan, roubando todas as cenas em que aparece. E Mulligan - que dispensa maiores comentários - cria uma Daisy etérea, delicada e frágil na medida certa, valorizada pelo figurino impecável e por seu talento imenso. Se o visual acachapante criado por Luhrmann é o corpo de "O grande Gatsby", Carey é sua alma, mesmo tendo em suas mãos uma personagem nem sempre amável ou de atitudes compreensíveis. O olhar de Mulligan, expressivo e melancólico, é a tradução perfeita da ressaca que veio depois dos esfuziantes anos 20 retratados por Fitzgerald. Um acerto gigantesco na escolha do elenco e que faz do filme um programa obrigatório.
quinta-feira
OS AMANTES PASSAGEIROS
OS AMANTES PASSAGEIROS (Los amantes pasajeros, 2013, El Deseo, 96min) Direção e roteiro: Pedro Almodóvar. Fotografia: Jose Luis Alcaine. Montagem: José Salcedo. Música: Alberto Iglesias. Figurino: Davidelfin, Tatiana Hernández. Direção de arte/cenários: Antxón Gómez/Clara Notari. Produção: Agustin Almodovar, Esther García. Elenco: Antonio Banderas, Penelope Cruz, Javier Camara, Cecilia Roth, Lola Dueñas, Antonio de la Torre, Raul Arévalo, Carlos Areces, Hugo Silva, Miguel Ángel Silvestre, Laya Martí, Paz Vega, Blanca Suárez. Estreia: 08/3/13
Depois de aventurar-se pelo lado negro da alma humana no denso "A pele que habito", Pedro Almodovar parece ter voltado às origens transgressoras e debochadas do início de sua carreira com "Os amantes passageiros". Despretensioso e abertamente escrachado, seu filme mostra que aquele senso de humor que era a essência de obras como "Labirinto de paixões" e "Pepi, Luci, Bom" continua intacto debaixo do verniz de cineasta sério e consagrado com dois Oscar. Centrado quase que exclusivamente em um único cenário - um avião com uma pane que ameaça a todos os tripulantes e passageiros - o roteiro de Almodovar usa e abusa de diálogos surreais, personagens ensandecidos (por nascimento ou pelo abuso de álcool e drogas) e atores velhos conhecidos do diretor, como Cecilia Roth, Lola Dueñas e Javier Camara - até mesmo Antonio Banderas e Penélope Cruz participam da brincadeira, em uma participação especial nos primeiros minutos de projeção.
Conforme o próprio trailer já deixava antever, "Os amantes passageiros" não se leva a sério - e nem pede à audiência que o faça. A começar pelo trio de protagonistas - comissários de bordo gays vividos por Javier Camara, Raúl Arévalo e Carlos Areces em atuações pra lá de inspiradas - tudo no filme pede que o público esqueça qualquer preconceito e se entregue sem medidas às loucuras do roteiro. Só mesmo assim - com total consciência da real essência do diretor - é que a experiência se torna ainda mais divertida. O Almodovar de "Os amores passageiros" está muito mais para o diretor trash e criativo de "Maus hábitos" e "O que fiz eu para merecer isto?" do que para o bem mais comportado (mas nem por isso menos genial) criador de "Tudo sobre minha mãe" e "Fale com ela". Estão em cena situações bizarras que combinam muito mais com a primeira fase de sua carreira - em que desafiava com humor e ironia o governo franquista - do que com seu momentos mais reflexivos, que lhe tornaram o cineasta espanhol mais respeitado desde Buñuel. É esse Almodovar original que consegue fazer com que o absurdo se torne crível, como nos melhores momentos de sua filmografia.
A trama começa com uma sequência aparentemente sem importância que reúne Antonio Banderas e Penélope Cruz como um casal de namorados que trabalha para uma companhia aérea e que, felizes com a notícia de uma gravidez, não percebe que falhou em um dos procedimentos de segurança antes do próximo voo. Tal erro só é percebido tarde demais, quando o avião já está a caminho da Cidade do México, com passageiros e tripulação a bordo e descobrindo, aos poucos, que podem estar em seus últimos momentos. Para aliviar a tensão, os comissários Joserra (Javier Camara), Fajas (Carlos Areces) e Ulloa (Raúl Arévalo) fazem o possível, dopando a segunda classe e promovendo shows de dublagem para os demais passageiros. Entre eles, inclui-se Norma Boss (Cecilia Roth), uma ex-atriz, hoje empresária no ramo da prostituição de luxo que está na mira de um assassino de aluguel, Ricardo Galán (Guilermo Toledo), um ator dividido entre duas mulheres, e Sr. Más (José Luís Torrijo), o presidente de um banco envolvido em um escândalo financeiro - além de um noivo (Miguel Ángel Silvestre, que depois faria sucesso na série "Sense8") que está em lua-de-mel e é cobiçado pela sensitiva Bruna (Lola Dueñas), que quer perder a virgindade antes de morrer, e pelo comissário Fajas. Enquanto os pobres passageiros não sabem, a princípio, o tamanho do perigo que correm, os pilotos estão mais preocupados com seus problemas conjugais e sexuais do que com a possibilidade de espatifar seu avião.
Livre da pressão de realizar mais um filme para agradar aos festivais de cinema e à crítica intelectualoide que tornou-o hype, Almodovar fez, com "Os amantes passageiros", o que há muito tempo seu público fiel vinha desejando: um trabalho anárquico, sem amarras e sem preocupações que não a de fazer rir. Talvez isso decepcione quem espera algo mais impactante, mas sem dúvida agrada a quem sabe quem realmente o realizador é. O humor de seu novo filme brinca com a sexualidade, com a religião, com drogas, com redes sociais e com a família com o mesmo cáustico senso de humor que vinha sendo deixado de lado há bons anos. É iconoclasta, é cafona, é gay ao extremo - que o diga a sequência musical onde os comissários dublam a canção "I'm so excited" (título do filme para o mercado de língua inglesa). Mas é, também, engraçadíssimo, leve, despretensioso e Almodovar na veia. Não é nem de longe seu melhor trabalho, mas é infinitamente superior a qualquer comédia que se pretende engraçada mas tem medo de ousadias.
Depois de aventurar-se pelo lado negro da alma humana no denso "A pele que habito", Pedro Almodovar parece ter voltado às origens transgressoras e debochadas do início de sua carreira com "Os amantes passageiros". Despretensioso e abertamente escrachado, seu filme mostra que aquele senso de humor que era a essência de obras como "Labirinto de paixões" e "Pepi, Luci, Bom" continua intacto debaixo do verniz de cineasta sério e consagrado com dois Oscar. Centrado quase que exclusivamente em um único cenário - um avião com uma pane que ameaça a todos os tripulantes e passageiros - o roteiro de Almodovar usa e abusa de diálogos surreais, personagens ensandecidos (por nascimento ou pelo abuso de álcool e drogas) e atores velhos conhecidos do diretor, como Cecilia Roth, Lola Dueñas e Javier Camara - até mesmo Antonio Banderas e Penélope Cruz participam da brincadeira, em uma participação especial nos primeiros minutos de projeção.
Conforme o próprio trailer já deixava antever, "Os amantes passageiros" não se leva a sério - e nem pede à audiência que o faça. A começar pelo trio de protagonistas - comissários de bordo gays vividos por Javier Camara, Raúl Arévalo e Carlos Areces em atuações pra lá de inspiradas - tudo no filme pede que o público esqueça qualquer preconceito e se entregue sem medidas às loucuras do roteiro. Só mesmo assim - com total consciência da real essência do diretor - é que a experiência se torna ainda mais divertida. O Almodovar de "Os amores passageiros" está muito mais para o diretor trash e criativo de "Maus hábitos" e "O que fiz eu para merecer isto?" do que para o bem mais comportado (mas nem por isso menos genial) criador de "Tudo sobre minha mãe" e "Fale com ela". Estão em cena situações bizarras que combinam muito mais com a primeira fase de sua carreira - em que desafiava com humor e ironia o governo franquista - do que com seu momentos mais reflexivos, que lhe tornaram o cineasta espanhol mais respeitado desde Buñuel. É esse Almodovar original que consegue fazer com que o absurdo se torne crível, como nos melhores momentos de sua filmografia.
A trama começa com uma sequência aparentemente sem importância que reúne Antonio Banderas e Penélope Cruz como um casal de namorados que trabalha para uma companhia aérea e que, felizes com a notícia de uma gravidez, não percebe que falhou em um dos procedimentos de segurança antes do próximo voo. Tal erro só é percebido tarde demais, quando o avião já está a caminho da Cidade do México, com passageiros e tripulação a bordo e descobrindo, aos poucos, que podem estar em seus últimos momentos. Para aliviar a tensão, os comissários Joserra (Javier Camara), Fajas (Carlos Areces) e Ulloa (Raúl Arévalo) fazem o possível, dopando a segunda classe e promovendo shows de dublagem para os demais passageiros. Entre eles, inclui-se Norma Boss (Cecilia Roth), uma ex-atriz, hoje empresária no ramo da prostituição de luxo que está na mira de um assassino de aluguel, Ricardo Galán (Guilermo Toledo), um ator dividido entre duas mulheres, e Sr. Más (José Luís Torrijo), o presidente de um banco envolvido em um escândalo financeiro - além de um noivo (Miguel Ángel Silvestre, que depois faria sucesso na série "Sense8") que está em lua-de-mel e é cobiçado pela sensitiva Bruna (Lola Dueñas), que quer perder a virgindade antes de morrer, e pelo comissário Fajas. Enquanto os pobres passageiros não sabem, a princípio, o tamanho do perigo que correm, os pilotos estão mais preocupados com seus problemas conjugais e sexuais do que com a possibilidade de espatifar seu avião.
Livre da pressão de realizar mais um filme para agradar aos festivais de cinema e à crítica intelectualoide que tornou-o hype, Almodovar fez, com "Os amantes passageiros", o que há muito tempo seu público fiel vinha desejando: um trabalho anárquico, sem amarras e sem preocupações que não a de fazer rir. Talvez isso decepcione quem espera algo mais impactante, mas sem dúvida agrada a quem sabe quem realmente o realizador é. O humor de seu novo filme brinca com a sexualidade, com a religião, com drogas, com redes sociais e com a família com o mesmo cáustico senso de humor que vinha sendo deixado de lado há bons anos. É iconoclasta, é cafona, é gay ao extremo - que o diga a sequência musical onde os comissários dublam a canção "I'm so excited" (título do filme para o mercado de língua inglesa). Mas é, também, engraçadíssimo, leve, despretensioso e Almodovar na veia. Não é nem de longe seu melhor trabalho, mas é infinitamente superior a qualquer comédia que se pretende engraçada mas tem medo de ousadias.
quarta-feira
CAMILLE CLAUDEL 1915
CAMILLE CLAUDEL 1915 (Camille Claudel 1915, 2013, 3B Productions/Arte France Cinéma, 95min) Direção: Bruno Dumont. Roteiro: Bruno Dumont, cartas de Camille Claudel e Paul Claudel. Fotografia: Guillaume Deffontaines. Montagem: Basile Belkhiri, Bruno Dumont. Figurino: Alexandra Charles, Brigitte Massay-Sersour. Direção de arte: Laurent Dupire-Clément. Produção: Rachid Bouchareb, Jean Bréhat, Muriel Merlin. Elenco: Juliette Binoche, Jean-Luc Vincent, Robert Leroy, Marion Keller, Emmanuel Kauffman. Estreia: 12/02/13 (Festival de Berlim)
Em 1990, Isabelle Adjani concorreu ao Oscar de melhor atriz por seu intenso desempenho em "Camille Claudel", de Bruno Nuytten, onde interpretava com corpo e alma a brilhante escultora francesa que foi aluna e amante de Rodin e que acabou seus dias presa em um sanatório para doentes mentais. O filme também foi indicado na categoria de produção estrangeira e é, até hoje, o poderoso retrato de uma mulher apaixonada por sua arte e por um homem que acabou por ser o responsável por seu declínio. "Camille Claudel 1915", dirigido por Bruno Dumont e lançado no Festival de Berlim de 2013 pode ser considerado - sem que haja demérito nessa afirmação - uma continuação da história contada por Nuytten. Enquanto a produção estrelada por Adjani acabava com sua internação, o filme de Dumont se concentra em um período específico da vida da artista - justamente o inverno de 1915 citado no título - para mostrar sua triste rotina como interna em uma instituição no sul da França. Contando com mais uma arrebatadora atuação de Juliette Binoche, ele pode não ter conseguido a mesma potência dramática no todo, mas seu filme serve para jogar um pouco mais de luz na celebrada figura de Claudel.
Em um filme de momentos, cujo roteiro baseia-se nas cartas escritas por Camille e seu irmão, o poeta Paul Claudel - um dos responsáveis por sua internação - Dumont conduz sua narrativa com uma placidez que contrasta violentamente com o turbilhão emocional da protagonista, pontuando-a com silêncios contemplativos e alguns (poucos) longos diálogos que iluminam muitos dos demônios que afastavam Camille de sua família e do convívio social. Com alto grau de paranoia, a escultora acreditava (hoje sabe-se que não tão erroneamente assim) que Rodin e seus alunos tinham por objetivo apossar-se de sua arte sem dar-lhe o devido crédito e, na tentativa de se fazer ouvir, encontrava resistência no cristianismo exarcebado de seu irmão, que o filme evita de apontar como vilão ou outra vítima da história. Em uma tentativa honesta de mostrar os dois lados da questão, o roteiro de Dumont dá espaço para as dúvidas de Paul Claudel tanto quanto para o desespero de sua irmã. Mas é impossível não sensibilizar-se bem mais com a solidão de Camille.
Com uma interpretação avassaladora, Juliette Binoche transmite, pelo simples olhar, toda uma vasta gama de emoções, em cenas de extrema simplicidade que se transformam, graças a seu talento, em grandes momentos dramáticos. É assim, por exemplo, quando ela esculpe um pássaro com a lama que junta do chão da floresta que circunda sua "prisão" e principalmente quando cai em prantos ao assistir ao ensaio de uma versão amadora - feita por suas colegas de reclusão - de "Don Juan": quando o diálogo que fala de amor e casamento cai em seus ouvidos, é impossível segurar as lágrimas, e com Binoche (e Claudel), o público se comove sem que uma única frase a respeito de sua situação seja dita. Sua explosão emocional - seguida de um acesso de fúria arrepiante - mostra tanto a imensidão da solidão e da tristeza da personagem quanto do talento de sua intérprete, em mais um grande momento da carreira.
Contando com pacientes reais como elenco de apoio - o que explica a sensação palpável de um confinamento em uma instituição psiquiátrica - Bruno Dumont fez de seu "Camille Claudel 1915" uma espécie de documentário dramático, uma homenagem delicada e ao mesmo tempo devastadora a uma das maiores artistas plásticas da história. Pode não ter tido o mesmo impacto do filme estrelado por Isabelle Adjani - também um belo espetáculo - mas merece aplausos pela coragem e sensibilidade. E nunca é perda de tempo testemunhar mais um desempenho irretocável de Juliette Binoche.
Em 1990, Isabelle Adjani concorreu ao Oscar de melhor atriz por seu intenso desempenho em "Camille Claudel", de Bruno Nuytten, onde interpretava com corpo e alma a brilhante escultora francesa que foi aluna e amante de Rodin e que acabou seus dias presa em um sanatório para doentes mentais. O filme também foi indicado na categoria de produção estrangeira e é, até hoje, o poderoso retrato de uma mulher apaixonada por sua arte e por um homem que acabou por ser o responsável por seu declínio. "Camille Claudel 1915", dirigido por Bruno Dumont e lançado no Festival de Berlim de 2013 pode ser considerado - sem que haja demérito nessa afirmação - uma continuação da história contada por Nuytten. Enquanto a produção estrelada por Adjani acabava com sua internação, o filme de Dumont se concentra em um período específico da vida da artista - justamente o inverno de 1915 citado no título - para mostrar sua triste rotina como interna em uma instituição no sul da França. Contando com mais uma arrebatadora atuação de Juliette Binoche, ele pode não ter conseguido a mesma potência dramática no todo, mas seu filme serve para jogar um pouco mais de luz na celebrada figura de Claudel.
Em um filme de momentos, cujo roteiro baseia-se nas cartas escritas por Camille e seu irmão, o poeta Paul Claudel - um dos responsáveis por sua internação - Dumont conduz sua narrativa com uma placidez que contrasta violentamente com o turbilhão emocional da protagonista, pontuando-a com silêncios contemplativos e alguns (poucos) longos diálogos que iluminam muitos dos demônios que afastavam Camille de sua família e do convívio social. Com alto grau de paranoia, a escultora acreditava (hoje sabe-se que não tão erroneamente assim) que Rodin e seus alunos tinham por objetivo apossar-se de sua arte sem dar-lhe o devido crédito e, na tentativa de se fazer ouvir, encontrava resistência no cristianismo exarcebado de seu irmão, que o filme evita de apontar como vilão ou outra vítima da história. Em uma tentativa honesta de mostrar os dois lados da questão, o roteiro de Dumont dá espaço para as dúvidas de Paul Claudel tanto quanto para o desespero de sua irmã. Mas é impossível não sensibilizar-se bem mais com a solidão de Camille.
Com uma interpretação avassaladora, Juliette Binoche transmite, pelo simples olhar, toda uma vasta gama de emoções, em cenas de extrema simplicidade que se transformam, graças a seu talento, em grandes momentos dramáticos. É assim, por exemplo, quando ela esculpe um pássaro com a lama que junta do chão da floresta que circunda sua "prisão" e principalmente quando cai em prantos ao assistir ao ensaio de uma versão amadora - feita por suas colegas de reclusão - de "Don Juan": quando o diálogo que fala de amor e casamento cai em seus ouvidos, é impossível segurar as lágrimas, e com Binoche (e Claudel), o público se comove sem que uma única frase a respeito de sua situação seja dita. Sua explosão emocional - seguida de um acesso de fúria arrepiante - mostra tanto a imensidão da solidão e da tristeza da personagem quanto do talento de sua intérprete, em mais um grande momento da carreira.
Contando com pacientes reais como elenco de apoio - o que explica a sensação palpável de um confinamento em uma instituição psiquiátrica - Bruno Dumont fez de seu "Camille Claudel 1915" uma espécie de documentário dramático, uma homenagem delicada e ao mesmo tempo devastadora a uma das maiores artistas plásticas da história. Pode não ter tido o mesmo impacto do filme estrelado por Isabelle Adjani - também um belo espetáculo - mas merece aplausos pela coragem e sensibilidade. E nunca é perda de tempo testemunhar mais um desempenho irretocável de Juliette Binoche.
terça-feira
INSTINTO MATERNO
INSTINTO MATERNO (Pozitia copiulu/Child's pose, 2013, Parada Film/Hai Hui Entertainment, 112min) Direção: Calin Peter Netzer. Roteiro: Razvan Radulescu, Calin Peter Netzer. Fotografia: Andrei Butica. Montagem: Dana Bunescu. Figurino: Irina Marinescu. Direção de arte/cenários: Malina Ionescu/Ana Gabriela Lenmaru. Produção: Calin Peter Netzer, Ada Solomon. Elenco: Luminita Gheorghiu, Bogdan Dumitrache, Natasa Raab, Ilinca Goia, Florin Zamfirescu. Estreia: 11/02/13 (Festival de Berlim)
O cinema romeno não é tão reconhecido internacionalmente como o francês, o italiano, o iraniano e o chinês, mas a julgar pelo que é mostrado em "Instinto materno", que teve sua estreia mundial no Festival de Berlim de 2013, está a caminho de tornar-se mais uma cinematografia a encher os olhos e o coração dos cinéfilos. Ao contar uma história de aparente simplicidade dramática - mas que esconde grande força por debaixo do claramente perceptível - o filme do cineasta Calin Peter Netzer carrega o público à uma espiral de corrupção e ressentimentos familiares que demonstra, sem espaço para dúvidas, que o ser humano, independente de sua nacionalidade ou status social, é feito quase sempre do mesmo material.
A protagonista do filme é Cordelia Keneres (Luminita Gheorghiu), arquiteta bem-sucedida que tem uma relação complicada com o único filho, Barbu (Bogdan Dumitrache) e com a nora, Olga (Natasa Raab), que vem de outro casamento. As dificuldades de relacionamento são postas de lado, porém, quando Barbu, em excesso de velocidade, atropela e mata um menino de 14 anos e foge da cena do acidente. Ciente de que o filho irá enfrentar um julgamento por homícidio doloso, Cordelia aciona todas as suas influentes conexões políticas e começa um jogo sujo que inclui suborno, alteração de provas e altas doses de oportunismo. Enquanto mantém sua missão como prioridade, ela tenta aproximar-se do rapaz, utilizando-se da situação para afastá-lo da esposa e retomar seu lugar de mãe.
Representante oficial da Romênia na busca por uma indicação ao Oscar 2014 de filme estrangeiro, "Instinto materno" acabou ficando de fora da lista, mas isso não o impediu de ficar com um prêmio especial no Festival de Berlim, de onde saiu elogiadíssimo pela crítica. Motivos não faltaram: além do roteiro repleto de subtextos, que mescla com sutileza drama familiar, crítica social e uma pesada e contundente denúncia sobre a corrupção dos mais ricos, a direção de Netzer é sutil e delicada, dando atenção especial à cada nuance de seus atores, todos em grande sintonia. Luminita Gheorghiu, em especial, é um show à parte: sua Cordelia Keneres começa a trama como uma mulher fria e calculista, capaz de subornar discretamente a diarista para descobrir detalhes sobre a vida conjugal do filho, passa à uma avassaladora mãe coragem em defesa do rebento (ainda que com métodos condenáveis) e termina sua trajetória como uma mulher digna de pena e que mostra um lado até então escondido pelas roupas caras e pelo caráter um tanto dúbio, e a atriz está estupenda em todos os momentos. Discreta e de grande força no olhar, ela carrega o filme nas costas (apesar da qualidade de seus colegas de cena).
Mesmo que mude o tom da narrativa em sua metade final, substituindo a denúncia pelo drama e enfraquecendo sua potência inicial, "Instinto materno" se mantém como uma grata surpresa. Não apenas prende a atenção do público do princípio ao fim, como o faz sem apelar para clichês ou drama fácil. É um filme que faz pensar sem ser didático, emociona sem exagerar e apresenta ao público uma personagem riquíssima em nuances, interpretada por uma atriz espetacular. Se os próximos filmes romenos forem nesse nível, que sejam muito bem-vindos.
O cinema romeno não é tão reconhecido internacionalmente como o francês, o italiano, o iraniano e o chinês, mas a julgar pelo que é mostrado em "Instinto materno", que teve sua estreia mundial no Festival de Berlim de 2013, está a caminho de tornar-se mais uma cinematografia a encher os olhos e o coração dos cinéfilos. Ao contar uma história de aparente simplicidade dramática - mas que esconde grande força por debaixo do claramente perceptível - o filme do cineasta Calin Peter Netzer carrega o público à uma espiral de corrupção e ressentimentos familiares que demonstra, sem espaço para dúvidas, que o ser humano, independente de sua nacionalidade ou status social, é feito quase sempre do mesmo material.
A protagonista do filme é Cordelia Keneres (Luminita Gheorghiu), arquiteta bem-sucedida que tem uma relação complicada com o único filho, Barbu (Bogdan Dumitrache) e com a nora, Olga (Natasa Raab), que vem de outro casamento. As dificuldades de relacionamento são postas de lado, porém, quando Barbu, em excesso de velocidade, atropela e mata um menino de 14 anos e foge da cena do acidente. Ciente de que o filho irá enfrentar um julgamento por homícidio doloso, Cordelia aciona todas as suas influentes conexões políticas e começa um jogo sujo que inclui suborno, alteração de provas e altas doses de oportunismo. Enquanto mantém sua missão como prioridade, ela tenta aproximar-se do rapaz, utilizando-se da situação para afastá-lo da esposa e retomar seu lugar de mãe.
Representante oficial da Romênia na busca por uma indicação ao Oscar 2014 de filme estrangeiro, "Instinto materno" acabou ficando de fora da lista, mas isso não o impediu de ficar com um prêmio especial no Festival de Berlim, de onde saiu elogiadíssimo pela crítica. Motivos não faltaram: além do roteiro repleto de subtextos, que mescla com sutileza drama familiar, crítica social e uma pesada e contundente denúncia sobre a corrupção dos mais ricos, a direção de Netzer é sutil e delicada, dando atenção especial à cada nuance de seus atores, todos em grande sintonia. Luminita Gheorghiu, em especial, é um show à parte: sua Cordelia Keneres começa a trama como uma mulher fria e calculista, capaz de subornar discretamente a diarista para descobrir detalhes sobre a vida conjugal do filho, passa à uma avassaladora mãe coragem em defesa do rebento (ainda que com métodos condenáveis) e termina sua trajetória como uma mulher digna de pena e que mostra um lado até então escondido pelas roupas caras e pelo caráter um tanto dúbio, e a atriz está estupenda em todos os momentos. Discreta e de grande força no olhar, ela carrega o filme nas costas (apesar da qualidade de seus colegas de cena).
Mesmo que mude o tom da narrativa em sua metade final, substituindo a denúncia pelo drama e enfraquecendo sua potência inicial, "Instinto materno" se mantém como uma grata surpresa. Não apenas prende a atenção do público do princípio ao fim, como o faz sem apelar para clichês ou drama fácil. É um filme que faz pensar sem ser didático, emociona sem exagerar e apresenta ao público uma personagem riquíssima em nuances, interpretada por uma atriz espetacular. Se os próximos filmes romenos forem nesse nível, que sejam muito bem-vindos.
segunda-feira
TERAPIA DE RISCO
TERAPIA DE RISCO (Side effects, 2013, Endgame Entertainment/FilmNation Entertainment/Di Bonaventura Pictures, 106min) Direção: Steven Soderbergh. Roteiro: Scott Z. Burns. Fotografia: Peter Andrews (Steven Soderbergh). Montagem: Mary Ann Bernard (Steven Soderbergh). Música: Thomas Newman. Figurino: Susan Lyall. Direção de arte/cenários: Howard Cummings/Rena DeAngelo. Produção executiva: Douglas E. Hansen, Michael Polaire, James D. Stern. Produção: Scott Z. Burns, Lorenzo di Bonaventura, Gregory Jacobs. Elenco: Rooney Mara, Jude Law, Catherine Zeta-Jones, Channing Tatum, Ann Dowd, Mamie Gummer. Estreia: 08/02/13
Em “Contágio” (11), Steven
Soderbergh já havia, de leve, provocado uma discussão a respeito da ganância da
indústria farmacêutica, mas deu à trama a mesma importância que aos outros
focos do filme – irresponsabilidade da mídia, o pânico diante de uma epidemia,
o avanço da barbárie diante do imprevisto. Em seu trabalho seguinte, “Terapia
de risco”, ele volta a esbarrar no assunto – dessa vez enfatizando os remédios
antidepressivos – mas novamente desvia de uma discussão relevante e instigante
para abraçar um gênero específico (no caso o suspense) e contar uma história
que, a despeito de seu começo promissor, descamba para uma série de
reviravoltas forçadas e inverossímeis. Mais uma vez o Soderbergh comercial –
que assinou coisas terríveis como “Magic Mike” e alguns bons entretenimentos,
como “Onze homens e um segredo” – ganhou do Soderbergh artista criativo e
socialmente ativo – que ganhou a Palma de Ouro em Cannes por “sexo, mentiras e
videotape” e o Oscar de melhor diretor por “Traffic”. Quem acabou perdendo foi
o público.
Não que o grande público se incomode
com o fato de o roteiro abandonar a chance de discutir um problema sério como o
abuso de remédios controlados e a forma como a indústria que os fabrica conduz
sua comercialização. O problema é que os dois primeiros terços do filme
conduzem a narrativa por um caminho específico para, de uma hora para outra –
com o objetivo de espantar a plateia – distorcer a trama de forma a fazê-la
caber em um final-surpresa que enfraquece todo o tom sério e excitante que
vinha sendo mostrado até então. Em resumo, “Terapia de risco” tem um começo
promissor e um final decepcionante que não faz jus à carreira de seu diretor.
A trama tem início quando o jovem
Martin Taylor (Channing Tatum) sai da cadeia, depois de quatro anos preso pelo
crime de tráfico de informações financeiras. Quem o espera do lado de fora do
presídio é sua esposa, Emily (Rooney Mara, de “Os homens que não amavam as
mulheres, irreconhecível e sempre ótima atriz), que teve sua vida completamente
desestruturada com a condenação do marido. Depois de perder o bebê que esperava
e ter tido seu estilo de vida radicalmente transformado, a jovem acabou por
tornar-se dependente de antidepressivos e, mesmo com a volta do marido, parece
não dar sinais de melhora. Pelo contrário, duas tentativas de suicídio a levam
até o doutor Jonathan Banks (Jude Law), que depois de algumas consultas propõe
a ela que tome parte nos experimentos de uma nova droga que está sendo testada
em pacientes em avançado estado de depressão. Emily aceita fazer parte do
teste, mas um dos efeitos colaterais – sonambulismo – acaba por fazê-la cometer
um homicídio. No banco dos réus, ela acaba por tornar-se alvo de uma polêmica:
quem é, afinal, o responsável pelo crime? Ela, a indústria farmacêutica ou seu
médico?
Esse ponto de partida – que toma boa
parte dos dois terços iniciais do filme – é empolgante, inteligente e prende a
atenção do público sem fazer esforço, graças em boa parte às interpretações do
elenco e da direção segura e sóbria de Soderbergh. As coisas começam a
degringolar quando Banks, sentindo-se acuado diante das acusações de
irresponsabilidade e negligência médica, passa a investigar o passado de Emily
e chega até sua médica anterior, Victoria Seibert (Catherine Zeta-Jones), uma
mulher bem-sucedida que parece ter muito mais a esconder do que mostra em um
primeiro olhar. A real ligação entre Emily e Victoria – o grande segredo do
filme – vem à tona perto do final, e é aí que o roteiro põe tudo a perder. Sem
querer estragar a surpresa dos que se arriscarem a uma sessão (e no final das
contas até vale uma espiada, em especial pelo elenco), é um desfecho que parece
jogado na tela, sem a preocupação básica de parecer realista.
Ok, Steven Soderbergh já fez coisas
muito piores – “Magic Mike” à frente – mas é sempre triste ver um cineasta
capaz de pequenas obras-primas como “Irresistível paixão” e “Traffic” se deixar
cair na vala dos diretores puramente comerciais, optando pela mediocridade em
detrimento da criatividade e da ousadia. “Terapia de risco” é um filme de
gênero e logicamente deve seguir diretrizes já estabelecidas e consagradas, mas
isso não justifica o golpe baixo que é dado nas expectativas do espectador que
espera mais do que ser simplesmente pego de surpresa por um roteiro quase
preguiçoso. Felizmente o elenco faz o que pode para manter o interesse. E
consegue. Porém, Soderbergh poderia voltar a ser o diretor inteligente que um
dia se propôs a ser.
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