DEUS É BRASILEIRO (Deus é brasileiro, 2003, Sony Pictures International Productions/Globo Filmes/Luz Mágica Produções, 110min) Direção: Carlos Diegues. Roteiro: João Ubaldo Ribeiro, Carlos Diegues, colaboração de João Emanuel Carneiro, Renata Almeida Magalhães, conto "O santo que não acreditava em Deus", de João Ubaldo Ribeiro. Fotografia: Affonso Beato. Montagem: Sergio Mekler. Música: Chico Neves, Hermano Vianna. Figurino: Carla Monteiro. Direção de arte/cenários: Vera Hamburguer. Produção executiva: Tereza Gonzalez. Produção: Renata Almeida Magalhães. Elenco: Antonio Fagundes, Wagner Moura, Paloma Duarte, Stepan Nercessian, Bruce Gomlevsky, Castrinho, Toni Garrido, Susana Werner. Estreia: 31/01/2003
O que poderia resultar na união da picardia do texto de João Ubaldo Ribeiro, da experiência de Carlos Diegues como cineasta, do talento superlativo de Antonio Fagundes e do carisma excepcional de um Wagner Moura ainda dando os primeiros passos rumo ao status de um dos maiores atores nacionais? A resposta é "Deus é brasileiro", uma comédia de alma popular que não deixa de ser, dentro de suas limitações mercadológicas, inteligente e dotada de uma dose saudável de sensibilidade. Sem apelar para polêmicas religiosas - ainda que faça piadas sobre o cristianismo e sobre as concepções humanas do sagrado -, o filme de Diegues dialoga com o público através de uma linguagem simples, que evita intelectualismos estéreis. Pode não funcionar cem por cento do tempo, mas diverte o suficiente para comprovar a versatilidade do diretor, um dos fundadores do Cinema Novo e autor de alguns dos maiores sucessos de bilheteria brasileiros, como "Xica da Silva" (1976) e "Bye bye, Brasil" (1979).
O protagonista do filme é Edvaltécio Barbosa da Anunciação, ou simplesmente Taoca (Wagner Moura), um pescador que complementa sua renda como borracheiro, enquanto tenta arrumar dinheiro para pagar suas dívidas com o violento Baudelé Vieira (Stepan Nercessian). Esperto e dono de uma lábia que frequentemente o coloca em situações difíceis (e às vezes também consegue tirá-lo delas), Taoca um dia conhece, no meio do mar, um homem de meia-idade que se apresenta como Deus (Antonio Fagundes). A princípio incrédulo - por no mínimo uma boa razão -, ele logo percebe que está realmente diante do Criador. O motivo da visita à Terra, no entanto, é ainda mais surreal: cansado de séculos a consertar erros da humanidade, Deus resolve tirar um período de férias, mas para isso, precisa encontrar alguém que o substitua. Conhecendo a história do Brasil em ser um dos maiores países católicos do mundo (e paradoxalmente sem nenhum santo oficial), Ele chega ao Nordeste disposto a encontrar o homem que acredita ter todos os requisitos para a função. Mas, até chegar a ele, o Todo-poderoso precisa da ajuda de Taoca - e, no caminho, junta-se a eles a melancólica Madá (Paloma Duarte), que sonha em chegar à cidade grande para levar uma vida menos sofrida.
Com locações em Alagoas, Tocantins e Pernambuco, "Deus é brasileiro" é quase um road movie nacional - gênero com o qual Carlos Diegues tem familiaridade desde seu clássico "Bye bye, Brasil". Porém, enquanto a trupe de Lorde Cigano (José Wilker) enfrentava a transformação cultural do interior do país, abandonando suas raízes em troca de uma pretensa modernização, em "Deus é brasileiro" o foco é a comercialização da fé, o sincretismo religioso de uma população carente de atenção e, por que não?, a busca por um conceito mais humanizado de religião. Na pele de um Deus ranzinza, cansado e quase egoísta, Antonio Fagundes demonstra um tempo cômico dos mais acertados (ainda que nem sempre o roteiro lhe dê espaço para maiores voos), mas é Wagner Moura quem mais se destaca, recriando (sem demérito algum) o tipo do nordestino cuja resiliência vive em levar o dia-a-dia e as desgraças com o máximo de bom humor e esperteza. Assim, é difícil não ver nele - em seus diálogos - um eco do bem-sucedido "O auto da Compadecida" (2000), um dos maiores êxitos comerciais do cinema nacional de sua época. Há uma grande diferença, no entanto, entre os dois filmes: enquanto a obra de Guel Arraes se beneficia de um conjunto harmônico de elementos (fotografia, figurino, desenho de produção e principalmente roteiro), o trabalho de Diegues deixa perceber, em alguns momentos, uma dificuldade de conexão que atrapalha o todo. O próprio enredo não chega a dizer exatamente a que se propõe, preferindo explorar a relação entre os dois protagonistas do que elaborar um objetivo claro - especialmente em sua segunda metade, depois que o tal santo procurado por Deus é finalmente encontrado e se demonstra uma decepção. Diegues parece tão fascinado pela interação entre Fagundes e Moura (e vá lá, também a esforçada Paloma Duarte) que esquece de passar com nitidez a mensagem de sua história.
Baseado no conto "O santo que não acreditava em Deus", de João Ubaldo Ribeiro, também um dos autores do roteiro, "Deus é brasileiro" funciona bastante bem como comédia - em grande parte devido aos diálogos espertos e à atuação de Wagner Moura -, mas falha em tentar ser mais profundo do que verdadeiramente é. Quando se assume como farsa é uma delícia, porém escorrega quando busca uma seriedade que destoa de seu DNA. Se tecnicamente não é um primor - os efeitos visuais são bastante capengas -, ao menos mantém uma honestidade que o torna irresistível a quem procura rir das próprias mazelas sociais e religiosas.
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