UM ESTRANHO NO LAGO (L'inconnu du lac, 2013, Les Films du Worso/Arte France Cinéma, 100min) Direção e roteiro: Alain Guiraudie. Fotografia: Claire Mathon. Montagem: Jean-Christophe Hym. Direção de arte: Roy Genty, François Labarthe, Laurent Lunetta. Produção executiva: Benoit Quainon. Produção: Sylvie Pialat. Elenco: Pierre Delandonchamps, Christophe Paou, Patrick D'Assumçao, Jérôme Chappatte, Mathieu Vervisch. Estreia: 17/5/13 (Festival de Cannes)
Vencedor de 2 prêmios no Festival de Cannes 2013: Queer Palm (Filmes com Temática Homossexual) e Melhor Diretor (Alain Guiraudie) na Mostra "Um certo olhar"
Para se ter uma vaga ideia do quão explícitas são as cenas de sexo entre os personagens do francês "Um estranho no lago", basta dizer que seu diretor e roteirista Alain Guiraudie considerou contratar atores pornô para os papéis centrais do filme - ideia logo descartada para que ele pudesse contar com atores de verdade, que dessem consistência dramática à história. Realmente algumas sequências são bem fortes a quem está acostumado à pasteurização do sexo no cinema comercial (em especial no americano), mas o filme de Guiraudie é bem mais do que uma sucessão de momentos quentes entre homens à procura de sexo sem compromisso. Suspense psicológico construído aos poucos, que privilegia o clima à violência gráfica e não tem medo de desafiar as regras do gênero, "Um estranho no lago" pode não agradar a todo mundo, mas é um trabalho acima da média, que ousa sem fazer alarde e conquista o público sem fazer concessões ao politicamente correto.
Duplamente premiado no Festival de Cannes 2013 - melhor filme de temática gay (Queer Palm) e melhor diretor da mostra "Un certain regard" - e indicado a 8 César (o Oscar francês) - do qual Pierre Deladonchamps saiu vitorioso como melhor promessa masculina - "Um estranho no lago" também foi muito bem-recebido pela crítica mundial, que percebeu que ele, mais do que simplesmente um filme gay, é um interessante estudo sobre como o amor/obsessão pode muitas vezes suplantar a racionalidade, mesmo quando o preço pode ser a própria vida. Pintando um retrato imparcial sobre um estilo de vida muitas vezes criticado e incompreendido, Guiraudie conta sua história sem sobressaltos, optando por um viés contemplativo e delicado que contrasta violentamente com o teor da trama, um enredo policial simples mas bastante eficiente em seu objetivo de prender a atenção até o último minuto de projeção - ainda que o final tenha sérias possibilidades de desagradar boa parte da plateia.
A história se passa dentro de um período de dez dias bem marcados pela edição concisa - que resumiu a primeira metragem de 2h18 finalizada pelo cineasta - e narra, a princípio, o dia-a-dia de homossexuais masculinos que frequentam um bucólico e tranquilo lago que serve também como local para encontros sexuais anônimos e efêmeros. O protagonista é Franck (Pierre Deladonchamps), um jovem que há alguns anos tem o costume de passar seus verões aproveitando a tranquilidade do cenário, bem como procurando o prazer rápido e descompromissado das relações fugazes proporcionadas pelo clima de liberdade. Sua rotina é alterada quando ele passa a sentir-se fortemente atraído pelo charmoso Michel (Christophe Paou), de quem nunca consegue aproximar-se o bastante devido à presença constante de um outro rapaz com quem ele parece ter um relacionamento quase fixo. Em um final de tarde, porém, Franck testemunha Michel matar seu parceiro afogado no lago. Ao invés de afastar-se, no entanto, ele passa a sentir-se cada vez mais atraído e os dois acabam se envolvendo. Apaixonado, Franck passa a viver um misto de amor e medo, principalmente quando a polícia, na figura do Inspetor Damroder (Jérôme Chappatte) começa a fechar o cerco em relação a ambos.
Centrando seu foco na sensação de desejo/medo de Franck - que investe em Michel mesmo sabendo de suas tendências homicidas, sublinhadas por seu jeito fechado e misterioso - o roteiro de "Um estranho no lago" acerta em deixar claro, desde o início, a culpa de Michel, evitando, assim, os clichês que acompanham boa parte dos filmes policiais, que centram sua narrativa na tentativa de descobrir quem é o culpado pelos crimes. A história que Guiraudie quer contar é outra, e ele deixa bem clara essa opção assim que mostra o assassinato e passa a dedicar-se ao dilema enfrentado pelo protagonista, dividido entre denunciar o homem por quem é apaixonado ou viver uma história de amor que pode acabar com sua vida. Sem preocupar-se em mostrar a vida dos personagens fora do cenário natural onde se passa toda a trama - não se sabe nada a respeito de ninguém quando saem do lago - ele deixa o espectador tão perdido quanto o inspetor e até mesmo os envolvidos na história, o que inclui o solitário Henri (Patrick D'Assumçao), que se torna amigo de Franck e, em seu silêncio, sabe mais do que aparenta a princípio. Essa ideia de negar a seus personagens uma vida além de sua sexualidade, apesar de parecer um tanto preconceituosa em um primeiro olhar - homens gays sem identidade em busca unicamente de sexo - acaba por ser um ponto de verdade muito bem-vindo. Sem julgamentos morais, o cineasta/roteirista mostra uma realidade comum à comunidade gay - vale lembrar que ele tentou situar a história em um universo heterossexual, mas percebeu que a essência da trama não se encaixava em outro ambiente que não o altamente erotizado mostrado em seu filme.
Mantendo o tom de suspense psicológico até seus derradeiros (e polêmicos) minutos finais, "Um estranho no lago" tem ainda o mérito de tirar o cinema gay do nicho das histórias de amor condenadas pelo preconceito (um clichê já desgastado mas que, em alguns casos ainda funciona) e jogá-lo em outro gênero. Só por essa lufada de ar fresco - sintomaticamente vinda do cinema não-hollywoodiano - já merece ser conhecido e aplaudido, mesmo que seu desfecho corra o risco de deixar muita gente decepcionada (outra ousadia de um diretor que ainda pode surpreender muito no futuro).
Filmes, filmes e mais filmes. De todos os gêneros, países, épocas e níveis de qualidade. Afinal, a sétima arte não tem esse nome à toa.
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2 comentários:
Amei a crítica só gê o filme!
Esse filme é ótimo. Já o assisti diversas vezes, e não foi apenas pelo conteúdo. Mas pelo simples fato de ser cinema de verdade. E ser uma história que nos prende do início ao fim. Aliás, e que final? Gosto assim, qdo tenho o direito de criar, imaginar e adequar um final à história!
MARAVILHOSO FILME!
Oi, Assis, concordo. É um filme que não entrega tudo mastigadinho, deixa lacunas para o espectador completar de acordo com a sua bagagem. Gosto muito. Abraços.
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