99 CASAS (99 homes, 2014, Broad Green Pictures/Hyde Park Entertainment, 112min) Direção: Ramin Bahrani. Roteiro: Ramir Bahrani, Amir Naderi, estória de Ramir Bahrani, Bahareh Azimi. Fotografia: Bobby Bukowski. Montagem: Ramin Bahrani. Música: Antony Partos, Matteo Zingales. Figurino: Meghan Kasperlik. Direção de arte/cenários: Alex DiGerlando/Monique Champagne. Produção executiva: Mohammed Al Turki, Ron Curtis, Manu Gargi, Arcadiy Golubovich. Produção: Ashok Amritraj, Ramin Bahrani, Justin Nappi, Kevin Turen. Elenco: Andrew Garfield, Michael Shannon, Laura Dern, Clancy Brown. Estreia: 29/8/14 (Festival de Veneza)
Em 2003, o cineasta ucraniano Vadim Perelman conquistou a crítica - e indicações ao Oscar de melhor ator, atriz coadjuvante e trilha sonora original - com sua adaptação do romance "Casa de areia e névoa", escrito por Andre Dubus III, que fazia uma crítica contundente às leis dos EUA relacionadas ao mercado imobiliário (e de quebra retratava a árdua luta dos imigrantes por uma vida digna). Mais de uma década depois, outro cineasta de origem estrangeira - Ramin Bahrani, nascido na Carolina do Norte mas filho de imigrantes iranianos - põe o dedo na ferida da especulação e da corrupção que corrói as entranhas do sonho americano. Inspirado em uma história real mas sem prender-se a nenhum tipo de compromisso de fidelidade com os desdobramentos da ação, Bahrani criou um drama angustiante e dolorosamente realista, que, amparado por uma atuação inspiradíssima de Andrew Garfield, emociona e incomoda sem fazer concessões ao dramalhão fácil. "99 casas" é, facilmente, um dos pequenos grandes filmes da temporada 2014 - e, como é comum, praticamente ignorada pelas cerimônias de premiação: Michael Shannon chegou a ser eleito o melhor coadjuvante do ano pela Associação de Críticos de Los Angeles e indicado ao Golden Globe e ao Spirit Award, mas a produção passou praticamente em brancas nuvens pelo cinema.
É compreensível: não deve ser nada fácil ser americano e assistir ao que acontece em "99 casas" - aliás, basta ter um mínimo de sensibilidade para ser atingido pelo drama do protagonista, Dennis Nash (Andrew Garfield), um jovem trabalhador na construção civil que, em dificuldades de encontrar um trabalho que lhe pague o bastante para pagar a hipoteca da casa onde mora com a mãe, Lynn (Laura Dern), e o filho pequeno, Connor (Noah Lomax). Com uma dívida maior do que suas posses, ele acaba por ser despejado - em uma sequência angustiante e tensa. Sem encontrar luz no fim do túnel, Dennis acaba sendo seduzido pela possibilidade de recuperar sua propriedade quando aceita trabalhar com Rick Carver (Michael Shannon), o corretor que cuidou de sua situação - e que se utiliza de métodos pouco ortodoxos e bastante ilegais de fazer dinheiro através de transações quase criminosas. Deslumbrado com a chance não apenas de ter de volta o seu lar, mas também de oferecer uma vida mais confortável para a família, Dennis começa a participar das ações de despejo comandadas por Carver - e questionar seus próprios limites morais e éticos ao reviver, em cada situação, o sentimento de desespero e fracasso dos moradores.
Com uma narrativa ágil e surpreendente, que não permite ao espectador que antecipe cada movimento do roteiro, Bahrani se mostra um cineasta de extrema competência em cativar seu público sem subestimar sua inteligência ou sensibilidade. Aproximando sua câmera do rosto angustiado de Dennis - em atuação sublime de Andrew Garfield - e obrigando o espectador a compartilhar com ele de toda a vastidão de sentimentos que lhe tortura, o diretor faz uso eficaz de suas ferramentas visuais ao mesmo tempo em que, através de sequências dramáticas que evitam a pieguice, discute temas como ética e moral em um momento crucial da história americana. Ao fazer de seu protagonista um personagem de dimensões humanas - e portanto passível de monumentais erros e capaz de gestos de grandeza - o roteiro também traça um interessante contraponto entre ele e seu patrão/inimigo/aliado Rick Carver, em mais um trabalho excelente de Michael Shannon: fugindo do maniqueísmo óbvio, Carver não é apenas um homem ganancioso e cruel, mas uma pessoa com um passado doloroso e que aprendeu, da pior maneira possível, que nem sempre ser bom e generoso é o melhor caminho para o sucesso. Sim, o grande vilão de "99 casas" não é Carver, e sim o capitalismo selvagem e devastador, retratado na figura de bancos e instituições financeiras que, como não é surpresa para ninguém, tem no lucro seu maior objetivo, ignorando sem piedade tudo que possa atrapalhar suas metas.
Mas, apesar de sua crítica radical aos métodos pouco humanos dos ferozes capitalistas, "99 casas" não é um tratado sociológico aborrecido e panfletário. Com pleno domínio da narrativa dramática, Ramin Bahrani conta sua história com o máximo de simplicidade e clareza, aproveitando ao máximo o talento de seus intérpretes e o tom emocional de sua trama. Andrew Garfield está sensacional na pele de Dennis Nash, preenchendo sua atuação com nuances e sutilezas que o colocam como um dos mais promissores atores de sua geração - coisa que sua indicação ao Oscar por "Até o último homem" (2016) apenas confirmou. Ao lado de atores experientes como Michael Shannon e Laura Dern, o jovem Garfield consegue sobressair-se sem esforço, explorando cada mínima possibilidade do roteiro e da direção sensível de Bahrani. Seu olhar melancólico, assustado, frustrado e raivoso diz muito mais do que páginas e páginas de diálogo - e o clímax do filme mostra que ele tem muitos mais truques na manga do que sua pouca idade pode fazer supor. Com sua interpretação inteligente, Garfield consegue melhorar ainda mais o belo e corajoso trabalho de Bahrani, um cineasta que parece ainda ter muito a dizer no futuro.
Filmes, filmes e mais filmes. De todos os gêneros, países, épocas e níveis de qualidade. Afinal, a sétima arte não tem esse nome à toa.
sexta-feira
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Um comentário:
Eu quero ver este filme pelo grande elenco que tem, especialmente pela Laura Dern. Pessoalmente acho que ela faz bons trabalhos no cinema. Falar da atriz significa falar de uma grande atuação garantida, ela se compromete com os seus personagens e sempre deixa uma grande sensação ao espectador. O mesmo aconteceu com a produção o Conto, um dos filmes da HBO que para mim é muito bom. Se ainda não tiveram a oportunidade de vê-lo, eu recomendo. É um dos melhores filmes de drama, tem uma boa história, atuações maravilhosas e um bom roteiro. Vale a pena.
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