UM CRIME AMERICANO (An american crime, 2007, First Look Entertainment/Killer Films, 98min) Direção: Tommy O'Haver. Roteiro: Tommy O'Haver, Irene Turner. Fotografia: Byron Shah. Montagem: Melissa Kent. Música: Alan Lazar. Figurino: Alix Hester. Direção de arte/cenários: Nathan Amondson/Lisa Alkofer. Produção executiva: Pamela Koffler, Richard Shore, Ruth Vitale, John Wells. Produção: Katie Roumel, Kevin Turen, Christine Vachon, Henry Winterstern. Elenco: Ellen Page, Catherine Keener, James Franco, Bradley Whitford, Hayley McFarland, Nick Searcy, Ari Graynor, Evan Peters. Estreia: 19/01/07 (Festival de Sundance)
No começo dos anos 80 já havia uma movimentação entre os produtores de Hollywood para levar às telas a trágica e inacreditável história da jovem Sylvia Likens - um projeto abortado pela recusa de sua irmã, Jennie, em reviver tal pesadelo. A morte de Jennie em 2004, no entanto, reacendeu o desejo de Hollywood na ideia de transformar em arte um dos mais repugnantes crimes acontecidos nos EUA e, segundo o procurador público do caso, o mais terrível cometido no estado de Indiana. Conduzido com extrema seriedade e o máximo de fidelidade possível por Tommy O'Haver, experiente em tramas mais leves, como a comédia gay "O beijo hollywoodiano de Billy" (98) e o fantasioso "Uma garota encantada", estrelado por Anne Hathaway, mas novato em explorar o lado mais sombrio do ser humano, "Um crime americano" é um filme que choca, causa revolta e indignação e não é facilmente digerível. Mas é, também, um cruel retrato da maldade humana e de até onde pode chegar a falta de compaixão. Tocando ainda em outros temais polêmicos, como alienação parental e hipocrisia religiosa, o roteiro do diretor e de Irene Turner facilmente ultrapassa a definição de drama para adentrar sem hesitação no terreno do suspense psicológico mais perturbador - contando, para isso, com atuações assombrosas de Ellen Page e Catherine Keener.
A trama começa em 1965, quando duas adolescentes, Sylvia (Ellen Page) e Jennie Likens (Hayley McFarland) são deixadas por seus pais, artistas de circo, na casa da praticamente desconhecida Gertrude Baniszewski (Catherine Keener) - mãe de seis filhos que se oferece para cuidar das meninas por um tempo mediante o pagamento de vinte dólares por semana. Aceitando a generosa oferta como forma de viajarem e tentarem consertar um casamento em crise, Lester (Nick Searcy) e Betty (Romy Rosemont) partem, confiando nos talentos de Gertrude como mãe e dona-de-casa. O que eles não sabem, porém, é que ela não é tão perfeita como parece: doente crônica e com uma vida amorosa no mínimo complicada - com romances com homens mais jovens que a exploram financeiramente - a extremosa mãe na verdade é uma mulher à beira de um ataque de nervos - o que fica evidente quando o primeiro pagamento dos Likens chega atrasado e ela surra violentamente as duas hóspedes. A situação vai se complicando quando sua filha mais velha, Paula (Ari Grainor), se descobre grávida do namorado casado e, para desviar a atenção, acusa Sylvia de inventar rumores a seu respeito. Dotada de uma fúria incontrolável, Gertrude inicia uma série de cruéis sessões de tortura com a menina, envolvendo nisso não apenas todos os seus filhos mas também alguns jovens da vizinhança - que passam a visitar Sylvia como se fosse um animal do zoológico e participar dos atos de violência, que incluem abuso sexual, agressões físicas e até uma tatuagem feita com ferro quente.
Não é uma história fácil de contar e muito menos agradável, mas é louvável como o cineasta consegue fugir da morbidez excessiva e dos exageros de uma narrativa gráfica demais. Mesmo sem amenizar o sofrimento de Sylvia - que, segundo consta nos autos do processo, que inspiraram o roteiro, foi ainda mais profundo - O'Haver poupa a plateia o máximo possível, preferindo construir um clima de claustrofobia e injustiça acima da necessidade de explicitar com imagens o tamanho das barbaridades impostas à jovem protagonista. Sugerindo mais do que mostrando, o diretor atinge um nível ainda maior de tensão e desespero, convidando cada um dos espectadores a mergulhar em um mundo repleto de crueldade que só não é completamente inacreditável porque realmente aconteceu. Sem tentar dourar a pílula ou justificar os atos de Gertrude ao culpar seus problemas emocionais e financeiros como principal responsável pela tragédia, o roteiro consegue ainda assim dar um certo ar humano à odiosa personagem, principalmente por contar com a presença de Catherine Keener no papel: evitando a compaixão fácil ou a monstruosidade gratuita, a atriz duas vezes indicada ao Oscar de coadjuvante - por "Quero ser John Malkovich" (99) e "Capote" (2005) - apavora só de aparecer na tela, com seu olhar frio e jeito calmo de falar, que contrastam com o turbilhão de sua mente. Ellen Page não fica atrás: sua Sylvia é de uma fragilidade de porcelana, o que torna tudo ainda mais imperdoável e inexplicável - a não ser quando se leva em conta que a jovem talvez tenha sido vítima justamente por ser jovem, bonita e livre, coisas que sua mãe postiça não mais era capaz de ser.
Contando em um acertado tom de drama familiar que vai se transformando aos poucos em um pesadelo de tons acentuadamente mais fortes a cada cena, "Um crime americano" peca apenas por sua falta de ousadia visual: com uma fotografia discreta quase ao ponto da invisibilidade e uma reconstituição de época cuidadosa mas igualmente simples, o filme de O'Haver parece concentrar seu foco exclusivamente em sua trama, sem preocupar-se muito com a forma. Por vezes, seu filme parece mais uma obra realizada para a televisão do que para o cinema - culpa também da estrutura narrativa, que se utiliza do julgamento de Gertrude como ponto de apoio para uma série de flashbacks que vai, então, elucidando de forma didática os acontecimentos brutais que chocaram o país na década de 60. Amparado no trabalho iluminado de suas atrizes e de seu elenco coadjuvante - em que aparecem também James Franco como um dos namorados exploradores da mãe solteira e Evan Peters (da série "American Horror Story") como um vizinho gorducho e romanticamente interessado em Sylvia até o ponto em que o interesse se transforma em revolta - "Um crime americano" é pesado e denso, mas revela um lado obscuro do ser humano que incomoda e perturba a qualquer espectador. Um belo trabalho!
Filmes, filmes e mais filmes. De todos os gêneros, países, épocas e níveis de qualidade. Afinal, a sétima arte não tem esse nome à toa.
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