O DESTINO BATE À SUA PORTA (The postman always rings twice, 1981, MGM, 122min) Direção: Bob Rafelson. Roteiro: David Mamet, romance de James M. Cain. Fotografia: Sven Nykvist. Montagem: Graeme Clifford. Música: Michael Small. Figurino: Dorothy Jeakins. Direção de arte/cenários: George Jenkins/Robert Gould. Produção executiva: Andrew Braunsberg. Produção: Charles Mulvehill, Bob Rafelson. Elenco: Jack Nicholson, Jessica Lange, John Colicos, Michael Lerner, Christopher Lloyd, Anjelica Huston. Estreia: 20/3/81
Publicado em 1934 pelo norte-americano James M. Cain, o romance "The postman always rings twice" sempre foi bastante atraente para o cinema. Já em 1939, o francês "Paixão criminosa", de Pierre Chenal traduzia para a tela a história de luxúria, ambição e paranoia criada por Cain. Quatro anos mais tarde, foi a vez da Itália apresentar a sua versão da trama, em "Obsessão", dirigido por Luchino Visconti - uma produção que só chegou aos cinemas dos EUA em 1976 (segundo consta, por imposição dos editores do autor). Mas foi somente em 1946 que Hollywood rendeu-se à tentação de adaptar a obra, com direção de Tay Garnett e Lana Turner no papel central feminino - uma demora explicada pela dificuldade de transformar uma obra com alto teor sexual em algo palatável ao gosto dos famigerados responsáveis pelo Código Hayes, que mandava nas produções da época e implicava até mesmo com beijos que durassem mais do que alguns segundos. Foi preciso mais trinta e cinco anos, porém, para que um cineasta americano chegasse perto da amoralidade e da sensualidade retratadas pelo escritor. Mais afeito a rebeldias temáticas do que ao cinemão promovido por Hollywood - vide títulos como "Os Monkees estão à solta" e "Cada um vive como quer", retratos nítidos da contracultura dos anos 60 - o cineasta Bob Rafelson é quem teve a coragem de tirar o pó de um livro com quase meio século de idade, distanciar-se do tom noir imposto pelo filme de 1946 e enfatizar o lado mundano de seus personagens. Com um roteiro seco e incisivo do dramaturgo David Mamet (estreando no cinema), "O destino bate à sua porta" versão 1981 pegou de surpresa o puritano público norte-americano e provou, entre uma cena mais quente e outra, que a bela Jessica Lange , ainda desacreditada pela crítica, era uma atriz de grande potencial dramático - o que ficou provado no ano seguinte, quando ela arrebatou indicações ao Oscar de atriz e atriz coadjuvante por dois filmes totalmente opostos (e ganhou a estatueta da segunda categoria pela comédia "Tootsie").
Enfatizando a sexualidade quase animal dos protagonistas e tornando-os mais humanos (e portanto mais suscetíveis a falhas de caráter e incoerências), o roteiro de Mamet transformou o romance de Cain em um pesadelo claustrofóbico e sufocante, tanto pelo visual árido oferecido pela fotografia do sueco Sven Nykvist - colaborador habitual de Ingmar Bergman - quanto pela atmosfera de tensão criada por Rafelson. Substituindo o visual elaborado de luz e sombra dos filmes americanos da década de 40 por um tom naturalista que sublinha a sordidez das situações da história, Nykvist aproxima seus personagens da plateia, impelindo-a a mergulhar em seu emaranhado de circunstâncias cruéis e trágicas sem a proteção de qualquer tipo de glamour. Quando Jack Nicholson e Jessica Lange cedem ao desejo e fazem da mesa da cozinha como palco de seu amor - em meio à farinha e outros ingredientes - o público sabe que está testemunhando o início de um romance que não tem como dar certo, mas compreende completamente suas ações. No auge da beleza, Lange é impossível de se resistir - e Nicholson, em sua quarta parceria com Bob Rafelson, surge em sua vida como alternativa a um mundo sem perspectivas. É um caminho de paixão desmedida e avassaladora conduzido com um senso absoluto de urgência e melancolia - e, paradoxalmente, de uma elegância ímpar mesmo em seu desolador cenário.
A história se passa durante a Grande Depressão americana ocorrida logo após a queda da bolsa de Nova York em 1929. À beira de uma estrada da Califórnia, o grego Nick Papadakis (John Colicos em papel que foi oferecido ao cineasta Elia Kazan) vive com a esposa bem mais jovem, Cora (Jessica Lange) e dirige um restaurante e um posto de gasolina. É lá que vai parar Frank Chambers (Jack Nicholson), um andarilho sem passado - e logicamente sem futuro - que não demora em conquistar a confiança do proprietário do local e convencê-lo a lhe dar um emprego. Surge então, entre ele e Cora, uma tensão sexual que é rapidamente transformada em um caso tórrido e irresponsável. Apaixonados, os dois resolvem fugir juntos, mas quando percebem que lhes será impossível manter o relacionamento sem uma boa base financeira, decidem matar Nick e fazer parecer um acidente. Como não são exatamente gênios do crime, porém, as coisas começam a sair muito erradas - o que coloca a polícia em seu encalço e o remorso em sua rotina como amantes. Em pouco tempo, sua história de amor vira uma história de angústia e desespero.
Acostumado a filmar histórias com anti-heróis e personagens que não se encaixam em uma sociedade convencional, Bob Rafelson faz dos protagonistas de "O destino bate à sua porta" pessoas de carne e osso, uma visão mais perto da obra de Visconti do que da adaptação estrelada por Lana Turner - de certa forma presa à estética noir. Ao dotá-los de características mais humanas, o cineasta (e o roteirista David Mamet) acaba por oferecer a seus atores centrais um material rico e complexo. Em seu ponto de vista, Frank Chambers e Cora Papadakis não são simplesmente dois amantes sórdidos e ambiciosos - como sugere o romance original e suas adaptações anteriores: são pessoas lutando desesperadamente por uma vida menos triste e sem sentido. É lógico que o fazem da maneira errada, mas sua incapacidade até mesmo de lidar com suas escolhas os aproxima do público com grande sucesso, mesmo que seja para serem rejeitados por ele. Nesse ponto é Jessica Lange quem se sai melhor, dotando sua Cora de subtextos e nuances que expandem a compreensão de sua personagem até o limite da compaixão. Jack Nicholson se mantém como o sedutor mau-caráter que sempre lhe cai bem, mas é Lange quem brilha, justificando a escolha de Rafelson e pavimentando um caminho que lhe traria ainda muitas glórias. Tenso e cortante, "O destino bate à sua porta" é uma das adaptações mais certeiras da obra de Cain, ainda que, por incrível que pareça, tente se distanciar das versões cinematográficas anteriores.
Filmes, filmes e mais filmes. De todos os gêneros, países, épocas e níveis de qualidade. Afinal, a sétima arte não tem esse nome à toa.
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