Qualquer pessoa dotada de um mínimo
de senso comum sabe que as linguagens da literatura e do cinema são diferentes
e urgem de elementos distintos para que funcionem da melhor maneira em seus
respectivos veículos. Em alguns casos o trabalho de adaptação é facilitado pelo
estilo do escritor – John Grisham, por exemplo, não foi adaptado às pencas por
Hollywood à toa – mas algumas vezes a coisa é bem mais complicada – que o digam
os roteiristas de obras mais densas, como “A insustentável leveza do ser”, de
Milan Kundera. “Precisamos falar sobre o Kevin”, a transposição para as telas
do best-seller de Lionel Shriver, é um meio-termo: apesar de tratar-se de um
livro menos digestivo (leia-se menos comercial em termos de mercado de cinema),
a história de uma mãe torturada pelo horrendo crime cometido pelo filho
adolescente que tenta entender as razões de tal ato prestava-se facilmente a
uma adaptação linear e quase literal. Mesmo sendo narrada através de cartas
escritas pela protagonista ao marido – em um fluxo de consciência mantido por
uma forte espinha dorsal – a trama poderia tranquilamente ser transformada em
um roteiro com início, meio e fim bem definidos, como manda o figurino das
produções hollywoodianas. Mas, longe das influências dos grandes estúdios – e
portanto das pressões em moldar o filme em algo mais palatável ao público médio
– a versão cinematográfica do livro de Shriver chegou às telas surpreendendo
todo mundo. Ao invés de seguir a cartilha comum do cinema comercialmente
atraente, a diretora e roteirista Lyanne Ramsey resolveu ousar e entregar uma
obra de personalidade própria. Pro bem e pro mal.
Quem leu o livro provavelmente irá
levar um susto ao compará-lo com sua versão cinematográfica – e a primeira
reação certamente será de estranheza. Longe dos vícios do cinemão mainstream americano, Ramsey abre mão de
qualquer traço de obviedade, obrigando o espectador a exercitar um músculo cada
vez com menos uso: o cérebro. Não, “Precisamos falar sobre o Kevin” não é
daqueles filmes que quebram a cabeça do público, mas tampouco faz parte do
grupo de produções que entrega tudo de bandeja. Logo em seu início, que mostra
a protagonista Eva Khatchadourian (Tilda Swinton) em dias felizes, participando
de uma festa popular nas ruas da Itália e banhada de molho de tomate, o filme
aponta para uma direção inusitada, que irá mesclar, sem aviso prévio, presente
e passado, como forma de iluminar as circunstâncias que a levaram de um
casamento harmonioso e uma carreira vitoriosa a uma rotina claustrofóbica
cercada de culpa e autopunição. O vermelho gritante do tomate irá voltar com
frequência à tela, como forma de lembrar constantemente o espectador de que a
história que está sendo contada foi escrita com sangue inocente, e não
interessa à cineasta apenas narrar a trajetória de Eva e seu filho/nêmesis
Kevin: a ela parece importar muito mais as consequências da tragédia do que a
tragédia em si. E talvez seja essa diferença fundamental em relação ao livro
que tenha abalado tanto os fãs do romance.
No livro de Shriver, Eva é uma
bem-sucedida escritora de guias de viagem que leva uma vida confortável e feliz
ao lado do marido, Frank (John C. Reilly, um tanto subaproveitado), até que se
descobre grávida. Não exatamente dotada de sentimentos maternais – e
considerando-se velha demais para uma primeira gestação – ela a princípio
rejeita sua condição, apenas para transformar tal sentimento em remorso. Esse
remorso, por sua vez, transmuta-se em uma sensação de estranhamento cada vez
maior conforme vai-se estabelecendo sua relação com o filho, Kevin. Afável e
carinhoso diante do pai, o menino parece, desde criança, desafiar e atormentar
a rotina da mãe, incapaz de manter com ele o vínculo esperado. Alguns anos mais
tarde, a chegada de uma nova filha, Celia, torna as coisas ainda mais difíceis:
finalmente Eva consegue transmitir o amor de uma mãe e quando o primogênito
atinge a adolescência (e passa a ser interpretado pelo perturbador Ezra Miller)
o que era apenas um desconforto torna-se motivo de uma série de duelos
psicológicos que resultam em uma tragédia inesperada.
No filme de Ramsey, a história de
Eva e Kevin é narrada com distanciamento, em um roteiro repleto de elipses e
uma edição que privilegia a atmosfera de pesadelo da vida da protagonista anos
após os violentos acontecimentos que arruinaram sua rotina pacífica. Morando em
uma casa modesta e com um emprego muito abaixo de suas qualificações, ela passa
os dias fugindo do contato humano, traumatizada pelas agressões de que ainda é
vítima e tentando esquecer ou entender suas próprias emoções. Tilda Swinton
brilha com um desempenho excepcional, equilibrando com sutileza de mestre todas
as diversas nuances de sua personagem e despertando a compaixão do espectador
sem apelar para sentimentalismo de qualquer espécie. Pelo contrário, sua
resiliência poderia facilmente ser confundida com frieza não fosse o talento da
atriz em transmitir tantos sentimentos conflitantes mesmo em silêncio. É
somente nos embates de Eva com o filho que Swinton sai de sua aparente apatia e permite à audiência
vislumbrar os mecanismos que fizeram de sua vida um inferno particular.
Aliás, se existe algo que faz muita falta na versão para as telas do livro são os encontros de Eva e Kevin na cadeia: eles acontecem no filme, mas em menor número e sem o mesmo impacto emocional. O mesmo pode ser dito também do clímax: buscando fugir do previsível, Ramsey priva o público do que poderia ser um dos mais chocantes finais de sua época para optar pela sugestão. Ok, algumas cenas mostram mais do que claramente o que acontece na escola de Kevin na tarde em que ele chega munido de arco e flechas, mas o destino de Frank e Celia – assim como o de vários colegas do jovem – não recebe do roteiro a importância devida, enfraquecendo uma trama forte e contundente sobre alienação parental, psicopatia e irresponsabilidade da segurança pública. Está certo que o foco da diretora era outro – e dentro dessa premissa ela se dá muito bem – mas é impossível não imaginar o quanto uma história assim ficaria nas mãos de um cineasta menos afeito a cacoetes do cinema independente. Lyanne Ramsey optou por um drama familiar e psicológico. É uma opção corajosa que, vista sob esse prisma, é vitoriosa. Mesmo que decepcione os fãs mais convencionais do romance.
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