MISTÉRIOS DA CARNE (Mysterious skin, 2004, Antidote Films/Desperate Pictures,105min) Direção: Gregg Araki. Roteiro: Gregg Araki, romance de Scott Heim. Fotografia: Steve Gainer. Montagem: Gregg Araki. Música: Harold Budd, Robin Guthrie. Figurino: Alix Hester. Direção de arte/cenários: Devorah Herbert/Erin K. Smith. Produção executiva: Wouter Barendrecht, Michael J. Werner. Produção: Gregg Araki, Mary Jane Skalski. Elenco: Joseph Gordon-Levitt, Elisabeth Shue, Brady Corbet, Bill Sage, Lisa Long, Chris Mulkey, David Lee Smith, Michelle Trachtenberg. Estreia: 03/9/04 (Festival de Veneza)
Falar sobre assuntos polêmicos como abuso sexual infantil e prostituição homossexual juvenil não é tarefa das mais fáceis e assustaria qualquer cineasta cioso dos riscos que isso pode trazer a uma carreira no conservador cinema norte-americano. Porém, se existe algo que o independente Gregg Araki sabe é desafiar as convenções morais com seus filmes, que frequentemente abordam temas que os grandes estúdios tentam evitar a todo custo, como triângulos amorosos desprovidos de culpa, uso farto de drogas, todas as modalidades de sexo e violência. Por isso, não é de surpreender que seu nome esteja por trás de "Mistérios da carne", uma trama forte e perturbadora sobre as consequências traumáticas do estupro na vida de dois adolescentes de uma pequena cidade do interior do Kansas. Baseado em romance de Scott Heim - ele mesmo habitante do local e que emprestou a seus protagonistas algumas características de sua própria juventude - e roteirizado por Araki, o filme apresenta duas narrativas paralelas que, a despeito de suas diferenças de tom, acabam por encontrar-se em um clímax coerente e melancólico, ainda que previsível desde seus primeiros momentos.
A história começa em 1991, quando o protagonista, Neil, aos oito anos de idade, é abusado sexualmente pelo treinador de seu time de baseball (Bill Sage)- aparentemente inofensivo e dedicado à profissão- e outro menino do time, Brian, é encontrado desacordado e com sangramento nasal pela família - o que o leva a crer que foi vítima de uma abdução extra-terrestre. Dez anos depois, Neil (na pele de Joseph Gordon-Levitt) ganha dinheiro fazendo programas com os homens casados de sua cidade, sem que tal atividade seja de conhecimento de sua mãe (Elisabeth Shue), tão carinhosa quanto desligada. Ciente da atração que exerce sobre os homens, o imberbe Neil os usa e despreza com a mesma intensidade, para preocupação de seu melhor amigo, Eric (Jeff Licon), que nem de longe desconfia dos acontecimentos da infância do rapaz. Quando Neil resolve ir para Nova York a exemplo de sua amiga Deborah (Michelle Trachtenberg), sua mãe é procurada por Brian (Brady Corbet): sofrendo de lapsos de memória que remetem a seus dias como criança, o jovem acredita que Neil é a chave para desvendar os fatos que lhe sumiram da mente. Primeiramente acreditando que tudo tem a ver com alienígenas - com o que é incentivado pela igualmente paranoica Avalyn Friesen (Mary Lynn Rajskub) - Brian nem de longe imagina tudo que o liga a Neil e seu passado.
Apesar do tema pesado e de nunca fugir de momentos que transitam entre o triste e o chocante - principalmente quando retrata o cotidiano de Neil em seus dias nova-iorquinos - "Mistérios da carne" tem a seu favor a sensibilidade de jamais utilizar-se deles com morbidez ou julgamentos morais. Mantendo-se sempre imparcial ao contar sua história, Araki contenta-se em mirar sua câmera para testemunhar momentos íntimos, sem fazer deles mais glamourosos ou tristes do que podem ser normalmente. Isso acontece, por exemplo, quando Neil encontra um cliente soropositivo que pede apenas que o toque (uma cena que equilibra sensacionalmente a melancolia e o grostesco) e quando ele acaba sendo vítima de uma violência inesperada que o tira do domínio da situação e o transforma em mais uma estatística (novamente tudo é filmado sem comentários excessivos de trilha sonora ou edição, o que acaba sublinhando a sensação de solidão e dor). Tais cenas contrastam com as polêmicas sequências que mostram (não explicitamente, é claro), o abuso sexual sofrido pelo rapaz na infância: corajosamente, o cineasta não descreve o ato como algo desagradável, mas sim como uma experiência aprazível ao menino, que sempre lembra dela envolta em uma chuva de jujubas a despeito das consequências de tal relação. Aliás, também é corajoso da parte do roteiro mostrar um Neil ainda criança tendo consciência de seus desejos homossexuais pelo namorado da mãe - o que Freud aplaudiria certamente pode chocar alguns espectadores, mas em nenhum momento isso é tratado com desrespeito ou como forma de capitalizar em cima de um assunto ainda tabu e controverso. Esse viés em narrar algo tão delicado é, provavelmente, o maior mérito do filme, que ainda conta com a presença já magnética de Joseph Gordon-Levitt em um papel difícil e desafiador.
Ainda sendo lembrado por sua participação na comédia romântica adolescente "10 coisas que eu odeio em você" - onde atuou ao lado de Heath Ledger - Gordon-Levitt arriscou a rejeição das fãs do filme ao apresentar um Neil arrogante, antipático e muitas vezes desagradável que carrega consigo uma carga emocional que nunca deixa transparecer por trás de suas atitudes egoístas e até preconceituosas. Seu poder em cena até mesmo acaba por eclipsar a atuação de seu jovem companheiro de cena, Brady Corbet, que, de posse de um personagem menos agressivo dramaticamente, surge em cena como o responsável por unir passado e presente, que se encontram como em uma tragédia grega - mas, coerente com o restante minimalista da narrativa de Araki, de forma bem menos melodramática do que se poderia esperar. Fugindo do previsível e do maniqueísmo, o diretor marca um gol de placa, perturba e, como se fosse pouco, atinge o espectador sem que para isso seja preciso espancá-lo visualmente. Um belo filme!
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