Uma das afirmações mais corretas que se pode fazer
a respeito de “A fera do rock” é que, ao contrário de muitas cinebiografias de
astros da música que chegam às telas com assustadora frequência, ele é um filme
que foge radicalmente de academicismos e da tentação de mitificar seu
protagonista. Figura principal de um escândalo que abalou sua carreira e o impediu
de alcançar seu objetivo de ser “o novo Elvis Presley”, o roqueiro Jerry Lee
Lewis encontrou no cineasta Jim McBride um cronista que, se combinou
perfeitamente com sua personalidade anárquica e iconoclasta, ao mesmo tempo
incomodou a todos: fãs, familiares, biógrafos e o próprio Lee Lewis. De nada
adiantou McBride defender sua obra dizendo que nunca teve a intenção de criar
um documento histórico – a gritaria foi grande e o resultado nem valeu tanto a
pena assim. Nitidamente avesso a narrativas convencionais, “A fera do rock”
fracassou nas bilheterias – e, a não ser que seja assistido como a grande
brincadeira que no fundo ele é, é um filme bastante insatisfatório – e até um
pouco bobo demais.
Talvez contaminado pelo tom quase folclórico de seu
personagem principal, Jim McBride exagerou na alegoria e, rejeitando o
naturalismo de sua filmografia até então – que incluía até mesmo um remake do
clássico francês “Acossado” (rebatizado de “A força do amor” e merecidamente
ignorado) -, construiu um filme que é uma celebração do kitsch. Das cores
fortes que remetem ao Technicolor da época em que se passa sua ação até os
cenários e os figurinos, tudo em “A fera do rock” transpira excessos. McBride
brinca até mesmo quando acrescenta coreografias inesperadas a cenas
aparentemente comuns, e jamais ultrapassa a superficialidade na construção de
seus personagens. Assim como a casa de Lee Lewis e sua nova (e adolescente)
esposa, tudo que o cerca parece ser de plástico, obviamente partes de um
cenário construído de forma a renegar o realismo e acentuar o clima de eterna
festa da vida do cantor (ao menos da vida como contada pelo roteiro – levemente
inspirado na biografia escrita por Murray Silver Jr. com base nas memórias de
Myra, a primeira (e mais polêmica) mulher do roqueiro. Se os próprios Silver e
Myra repudiaram o resultado final é difícil saber até onde vão as liberdades
tomadas pelo diretor – mas quem não procurar acuidade histórica e quiser apenas
saber (ainda que pouco) da vida de Lee Lewis, o filme pode até ser um
entretenimento razoável.
Para quem não sabe, Jerry Lee Lewis esteve a ponto
de substituir Elvis Presley no coração das fãs – especialmente quando o rei do
rock foi convocado para servir ao exército americano. Dono de uma personalidade
expansiva (até demais) e de uma criatividade que muitas vezes assustava aos
desavisados, Lee Lewis seguiu um caminho bastante diverso daquele trilhado por
seu primo Jimmy Swaggart – que tornou-se um dos pastores católicos mais
conhecidos dos EUA e que frequentemente batia de frente com as atitudes do
roqueiro. Irresponsável e dono de um talento raro para transformar um simples
piano em um instrumento capaz de levantar a plateia jovem, Lee Lewis
praticamente jogou a carreira fora quando apaixonou-se e casou-se com sua prima
de apenas 13 anos de idade, Myra (vivida por uma juvenil e encantadora Winona
Ryder): com o escândalo descoberto, primeiro o público europeu e depois o resto
do mundo, lhe virou as costas, em uma demonstração de conservadorismo radical.
Não foi à toa: não apenas Myra era praticamente uma criança (como demonstra seu
desespero ao perceber que não é capaz de cuidar da própria casa) como era filha
do primo e colega do cantor – que havia lhe dado um lugar para morar quando ele
estava começando a carreira. Mesmo a mentalidade mais aberta e liberal teria
dúvidas a respeito do caso – dá para imaginar, então, na sociedade
norte-americana dos anos 50...
Incorporando totalmente o espírito festivo da visão
de Jim McBride, o ator Dennis Quaid faz de seu Jerry Lee Lewis um fauno
libertino e hedonista – muitas vezes pesando a mão na caracterização e chegando
perto do overacting. É difícil imaginar, por exemplo, como seria se outros
projetos envolvendo o roqueiro tivessem ido adiante: Martin Scorsese, por exemplo,
imaginava Robert De Niro no papel (e é impossível visualizar De Niro fazendo as
macaquices de Quaid ou Scorsese abdicando de seu impecável bom gosto visual
para abraçar o colorido cafona de McBride). E Michael Cimino também pensou em
dar a sua versão da história, com Mickey Rourke (!!) no papel principal, o que
seria no mínimo curioso. O fato é que McBride foi quem passou do plano à ação
e, embora não tenha sido completamente feliz, pode-se destacar algumas boas
ideias, como um jovem Alec Baldwin na pele Jimmy Swaggart e Winona Ryder (com
um papel que quase foi de Drew Barrymore) como a inocente Myra – que sofre com
o machismo do marido já na noite de núpcias, quando é acusada de “não
comportar-se como uma virgem”. Ryder – que preferiu Myra a participar do elenco
feminino de peso de “Flores de aço” e deu chance à Julia Roberts concorrer ao
primeiro Oscar – está em um belo momento da carreira, dosando bem a candura e a
paixão de sua personagem, que serve como um ponto de equilíbrio à bagunçada
vida do protagonista. Ryder e Baldwin, que juntos também fariam “Os fantasmas
se divertem” (88), são as melhores coisas do filme – a não ser que se conte, é
claro, com a trilha sonora, regravada pelo próprio Jerry Lee Lewis e bem
dublada por Dennis Quaid. Para quem gosta do bom e velho rock’n’roll é
imperdível! Para os curiosos é apenas ok.
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