Quarenta anos antes que "Cidade de
Deus" (2002) se tornasse o cartão de visitas do cinema brasileiro diante
do mundo, outro filme que tinha a favela como cenário principal e anti-heróis
negros e marginalizados como protagonistas conquistava a crítica ao redor do
planeta. Exibido com sucesso no Festival de Veneza e posteriormente exportado
para países como EUA, Canadá, Israel (além de parte da Europa e da América
Latina), "O assalto ao trem pagador" surgiu no panorama do cinema
nacional no mesmo ano de futuros clássicos - como "Os cafajestes", de
Ruy Guerra, e "O pagador de promessas", de Anselmo Duarte - e
estabeleceu, de imediato, uma mistura muito bem equilibrada entre as
preocupações sociais do Cinema Novo e a linguagem comercial e popular de
Hollywood. O resultado é até hoje impressionante: dirigido com maestria por
Roberto Farias e dotado de uma urgência e um realismo palpáveis, é um filme
digno de figurar entre as obras imprescindíveis da história do cinema - e
mostra, para além de quaisquer dúvidas, de que a busca pela identidade de nossa
filmografia sempre foi o caminho mais certeiro para o sucesso.
"O assalto ao trem pagador" é um
encontro de talentos, reunidos em torno de um crime real, ocorrido em 1960 no
interior do estado do Rio de Janeiro: com base na trama construída por Alinor
Azevedo e pelo futuro produtor cinematográfico Luiz Carlos Barreto, o cineasta
e produtor Roberto Farias ergueu um poderoso estudo sobre a ambição, a
desigualdade social e a corrupção. Para isso, contou com a fotografia em
preto-e-branco de Amleto Daissé, com a edição ágil e poderosa de Rafael Justo
Valverde e com a trilha sonora contagiante de Remo Usai - aproveitando-se de
sambas populares para servir de acompanhamento a uma partitura nervosa e
eficiente, ela dá a ênfase necessária a cada cena, sem excessos ou virtuosismos
desnecessários. Sem perder tempo com sequências supérfluas ou tempos mortos, o
roteiro de Farias abrasileira o típico "filme de roubo" - um dos
subgêneros mais apreciados por fãs de cinema - ao eleger como protagonistas
tipos próximos à realidade nacional e bem distantes do tradicional galã (ou
herói cômico). Tal opção, ao contrário de causar estranheza, conecta com muito
mais fluidez público e filme - basta alguns minutos para que o espectador já
esteja envolvido com a narrativa (e se deixe levar por ela, com indignação,
tensão e surpresa nos momentos certos).
Desde sua primeira sequência,
milimetricamente construída de forma a causar o máximo de suspense, até a
última e poderosa cena - que sumariza exemplarmente as preocupações sociais do
cinema brasileiro da década de 60 -, "O assalto ao trem pagador" é
uma sucessão de grandes momentos. Mergulhando sem medo em um universo cujos
conceitos de honra e ética são devidamente delineados conforme regras idiossincráticas
e/ou impermeáveis a olhares externos, a câmera de Roberto Farias transita
nervosamente pelas vielas da favela e pelas ruas sofisticadas da zona sul
carioca, ligando os dois mundos (aparentemente antagônicos) através de um olhar ao mesmo
tempo distante e íntimo, sutil e explícito, cínico e compassivo. A dualidade
que atravessa o roteiro (em termos visuais e psicológicos) é
perceptível em cada nuance do resultado final. Evitando o maniqueísmo e a
tentação tanto de glamorizar quanto de demonizar o crime, Farias atinge o
espectador ao construir personagens críveis e complexos - seres humanos lidando
com situações extremas e não apenas estereótipos baratos com o único objetivo
de fazer funcionar a engrenagem da narrativa. Tão fascinante quanto a invejável
técnica demonstrada pelo cineasta e a crítica social intrínseca à trama, a
galeria de personagens criados pelo roteiro é o ponto alto do filme - assim como os
atores escolhidos para lhes dar vida.
Em seu primeiro papel no cinema - mais tarde ele teria destaque em filmes como "Ganga Zumba" (63) e "Joana Francesa" (73) -, Eliézer Gomes dá vida ao apavorante Tião Medonho, líder de uma quadrilha que pratica o ousado crime do título. Juntamente com seus outros cinco companheiros de contravenção, ele decide gastar apenas dez por cento do valor roubado - como forma de não despertar suspeitas. Porém, o desejo de mudar rapidamente de vida e entregar-se aos prazeres do luxo acabam por provocar uma ruptura no grupo, especialmente quando Grilo Peru (Reginaldo Faria) passa a ostentar mais do que o combinado e acaba na mira de Medonho - que, por sua vez, passa a ser caçado obsessivamente pela polícia. Enquanto isso, na favela, os demais integrantes do bando se dividem entre a alegria de vislumbrar um futuro menos miserável e a paranoia de acabarem seus dias na cadeia - ou, pior ainda, mortos. E são justamente essas dicotomias (medo/prazer, presente/futuro, certo/errado, favela/zona sul) que elevam "O assalto ao trem pagador" a um nível acima de um mero filme policial. Contando sua história com precisão cirúrgica e emoção contida, Roberto Farias criou um espetáculo inesquecível e fundamental para a cultura brasileira, um precursor do que que viria a ser, quatro décadas mais tarde, um estilo admirado e cultuado mundo afora. Uma obra-prima!
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