A FALECIDA (A falecida, 1965, Herbert Richers Produções Cinematográficas, 90min) Direção: Leon Hirszman. Roteiro: Leon Hirszsman, Eduardo Coutinho, peça teatral de Nelson Rodrigues. Fotografia: José Medeiros. Montagem: Nello Melli. Música: Radamés Gnatalli. Direção de arte: Régis Monteiro. Produção executiva: J.P. de Carvalho. Produção: Aloísio Leite-Garcia, Joffre Rodrigues. Elenco: Fernanda Montenegro, Ivan Cândido, Paulo Gracindo, Nelson Xavier, Joel Barcellos, Hugo Carvana, Vanda Lacerda. Estreia: 1965
Quando "A falecida" estreou no palco do Teatro Municipal do Rio de
Janeiro, em junho de 1953, já fazia dez anos desde que seu autor, Nelson
Rodrigues, havia revolucionado o teatro brasileiro com a peça "Vestido
de noiva". Nesse meio-tempo, seus textos se tornaram material preferido
dos críticos e dos censores, normalmente escandalizados com seu teor
altamente controverso - leia-se neuroses, incesto, adultério,
homossexualidade e todas as nuances possíveis da sexualidade e da psique
humanas, temas que ele também esparramava nas páginas dos jornais (com
menos polêmica mas muita repercussão) com sua coluna "A vida como ela
é...". Em 1965, quando Leon Hirszman traduziu para as imagens do cinema a
tragicômica história de Zulmira e sua obsessão por um enterro de
rainha, o dramaturgo já havia somado outros sete espetáculos (a grande
maioria deles com problemas com a censura), a ditadura militar já havia
se instaurado no país e o Cinema Novo surgia como uma lufada de ar
fresco diante do terror. Por incrível que pareça, no entanto, o filme de
Hirszman passou incólume à repressão (ainda tímida) e mostrou-se uma
adaptação fiel e poética da obra teatral - amparada por (mais) uma
atuação monstruosa de Fernanda Montenegro.
Ao
chocar a plateia bem pensante do Teatro Municipal do Rio ao colocar no
palco personagens suburbanos que falavam em futebol, iam ao banheiro e
disparavam gírias sem remorso, Nelson Rodrigues fez de "A falecida" um
pequeno marco - à sua maneira, ele estava fundindo um Brasil moderno e
informal à elite cultural acostumada a óperas e balés clássicos. Seu
texto, cru e direto, pode ter causado estranheza ao público, mas serviu
como uma luva para a adaptação fidelíssima de Hirszman, um cineasta de
nítidas preocupações sociais estreando como diretor de longas-metragem:
os diálogos cortantes, a naturalidade quase grotesca e os protagonistas
sem glamour encontraram em Hirszman o diretor ideal. Sem artifícios
narrativos, ele conduz a trama com segurança e placidez, arrancando de
cada cena e cada intérprete o tom exato de sublime e patético - uma
linha tênue comum à obra de Nelson, um analista impenitente da natureza
humana e seus desvãos. Sublinhando seu roteiro com o fino humor do
dramaturgo (em um roteiro coescrito com o futuro documentarista Eduardo
Coutinho), Hirszman não apenas transporta o universo do escritor dos
palcos para a tela: ele comanda o casamento perfeito entre teatro e
cinema, com um texto forte e imagens de grande lirismo - cortesia da
bela fotografia em preto-e-branco de José Medeiros.
Fernanda
Montenegro, que em 1961 já havia se encontrado com o peculiar ponto de
vista de Nelson Rodrigues com sua atuação em "O beijo no asfalto", é a
personificação ideal de Zulmira, a protagonista quase surreal de "A
falecida". Dona-de-casa moradora da Aldeia Campista, ela começa o filme
buscando ajuda nas previsões de uma cartomante suburbana e pouco
confiável chamada Madame Crisálida (Vanda Lacerda): é ela quem irá
alertar Zulmira a respeito de uma loura misteriosa que está à sua volta,
ameaçando seu casamento. Seu marido, Tuninho (Ivan Cândido), é torcedor
fanático do Fluminense e não dá confiança às visões de Madame
Crisálida, mas se vê obrigado a prestar atenção à obsessão da esposa em
relação ao que ela considera um futuro muito próximo: Zulmira tem
certeza de que irá morrer muito em breve - e tem planos mirabolantes
para seu funeral, que ela sonha ser inesquecível aos vizinhos. Para
tanto, ela conta com a certeza da ajuda do milionário Pimentel (Paulo
Gracindo): uma ajuda que, Tuninho irá descobrir logo, não tem nada de
puramente altruísta ou caridosa.
Confiando
plenamente na história e nos atores, Leon Hirszman não faz de "A
falecida" um filme com propostas estilísticas ou temáticas, tão ao gosto
das plateias apaixonadas pelos experimentalismos do Cinema Novo. Seu
primeiro trabalho como cineasta de longas é um filme primoroso, mas que
se sustenta basicamente no talento de todos os envolvidos e na
sensibilidade de traduzir para o cinema a linguagem própria de um autor
consagrado nos palcos. Ao respeitar a personalidade de Nelson Rodrigues
e, ao mesmo tempo, imprimir ao filme sua assinatura pessoal, Hirszman
fez um brilhante trabalho de adaptação, que encanta pela inteligência e
pelo desejo simples de contar uma história - o que, na verdade, é o que
todo cineasta deveria ter em mente. "A falecida" tem uma trama simples,
mas com personagens complexos e uma estrutura ágil, que conquista o
espectador desde sua primeira cena. Nunca a simplicidade foi tão bem
explorada no cinema nacional!
Filmes, filmes e mais filmes. De todos os gêneros, países, épocas e níveis de qualidade. Afinal, a sétima arte não tem esse nome à toa.
domingo
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