MÃE SÓ HÁ UMA (Mãe só há uma, 2016, Dezenove Som e Imagem, 82min) Direção e roteiro: Anna Muylaert. Fotografia: Barbara Alvarez. Montagem: Helio Villela. Música: Berna Ceppas. Figurino: Diogo Costa. Direção de arte: Thales Junqueira. Produção executiva: Maria Ionescu. Produção: Anna Muylaert, Sara Silveira. Elenco: Naomi Nero, Matheus Nachtergaele, Daniel Botelho, Dani Nefussi, Lais Dias, Luciana Paes, Helena Albergaria. Estreia: 12/02/16 (Festival de Berlim)
A história de um adolescente de 16 anos que descobre que não é filho legítimo da mãe que sempre o criou - e que, pior ainda, foi sequestrado na maternidade, assim como sua irmã caçula - seria um prato cheio para um cineasta convencional e pouco criativo. Não é difícil imaginar um roteiro centrado em lutas nos tribunais, cenas lacrimosas e todos aqueles clichês de famílias despedaçadas que fazem a festa dos fãs de telefilmes norte-americanos. Porém, Anna Muylaert não é uma cineasta convencional e pouco criativa: consagrada internacionalmente com "Que horas ela volta?" (2015), um filme emocional sem ser piegas e socialmente imprescindível sem ser panfletário, ela volta a surpreender com "Mãe só há uma", uma versão bastante inusitada da situação, levemente inspirada em fatos reais. Fugindo do óbvio sempre que possível e adicionando um elemento bastante complicador na trama, Muylaert se comprova como uma realizadora preocupada em ter uma assinatura própria - e mesmo que não chegue ao mesmo grande nível de seu filme anterior, entrega ao público uma obra no mínimo perturbadora em sua simplicidade estilística e complexidade dramática, apoiada em um ator estreante que ainda vai dar muito o que falar.
Sobrinho do ator Alexandre Nero, Naomi Nero ficou encarregado de dar vida ao protagonista, Pierre, um jovem em processo de descoberta da própria identidade que se vê no olho de um furacão quando descobre que a mulher que o criou desde o nascimento é na verdade uma criminosa, que o tirou de sua família verdadeira, mais rica e ainda traumatizada com seu desaparecimento. Além de lidar com tal situação - avassaladora para qualquer pessoa, especialmente em um período de transição tão conturbado quanto a adolescência - Pierre (ou Felipe, como sua família "verdadeira" o batizou ainda bebê) ainda guarda uma particularidade que pode chocar àqueles à sua volta: mesmo sem ser homossexual, gosta de vestir roupas femininas (mesmo quando está transando com mulheres) e não decidiu 100% qual sua preferência sexual. Tal característica, inserida no roteiro de forma inteligente e sem julgamentos, acaba por ser de vital importância para acrescentar uma provocativa e desafiadora camada a um conflito já bastante instigante, e nem sempre Nero consegue atingir todas as notas necessárias, ainda que se saia bastante bem na maior parte do tempo. Em uma interpretação contida, mais dada a silêncios do que a explosões, ele se aproveita de sua aparência ambígua para imprimir veracidade a um personagem difícil e repleto de nuances, e sob o comando de Muylaert, transforma Pierre/Felipe em alguém de carne e osso, não apenas uma criação fictícia. E esse mérito deve ser creditado à direção concisa e direta da cineasta.
Sem subterfúgios artificiais que possam tirar o foco do que lhe é mais importante - os personagens e seus conflitos internos e externos - o filme de Muylaert tem precisão cirúrgica quando se trata de investigar as emoções de Pierre e das pessoas à sua volta. Em menos de noventa minutos, ela vai fundo tanto na questão das dúvidas do protagonista em relação à sua sexualidade complicada quanto em seus dramas familiares. Sua profundidade, porém, não é facilmente identificável: ao invés de deter-se em infindáveis diálogos explicativos ou cenas desnecessariamente didáticas nas quais os personagens mais falam do que sentem, a cineasta acertadamente foca sua câmera para as expressões confusas, tensas e aflitivamente realistas de seus atores. Sem nenhum tipo de glamour, Muylaert simplesmente registra momentos de pessoas comuns passando por circunstâncias radicais - e se por diversas vezes dá a impressão de criar sequências desnecessárias (principalmente aquelas protagonizadas pelo menino Joaquim, irmão de sangue de Pierre/Felipe), ela mostra, em um final agridoce, que nada em seu roteiro é aleatório ou gratuito.
Nem mesmo a escolha de elenco de "Mãe só há uma" é gratuita: em uma inteligente brincadeira com o título, a diretora embaralha as cartas de seu filme e oferece à plateia a oportunidade de ver a mesma atriz em dois papeis diferentes. Tanto como a mãe biológica que reencontra o filho e tenta desesperadamente incluí-lo em sua vida - a despeito da perceptível falta de vontade do rapaz em fazer isso - quanto como a mãe de criação, uma sequestradora que não demonstra a menor culpa de seus atos, Dani Nefussi entrega uma atuação visceral, na tênue linha entre a emoção contida e a angústia mal-disfarçada. Quase irreconhecível em sua mudança de visual, é ela quem comanda, de certa forma, as mudanças mais radicais da narrativa, impulsionando a trama e catalisando boa parte das atitudes de seu rebento, inclusive e principalmente aquelas que vão desestruturar ainda mais o já abalado núcleo familiar - no qual se destaca, como sempre em performance impecável, o ator Matheus Nachtergaele. Nefussi representa as duas famílias de Pierre, duas vidas intimamente ligadas mas paradoxalmente distantes, e seu trabalho é o grande destaque do filme, que pode incomodar aos que procuram uma produção mais convencional mas que certamente vai agradar àquela parcela de espectadores que buscam mais do que simples diversão escapista. "Mãe só há uma" é mais uma prova da inquietude de sua diretora, uma das mais consistentes e sensíveis de sua geração. Vale a pena conferir e sentir-se desafiado.
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