Em poucas cinematografias
contemporâneas o sublime e o bizarro convivem tão em paz quanto na obra do
espanhol Pedro Almodovar. Com mais intensidade em alguns filmes (“Maus
hábitos”, “O que fiz eu para merecer isto?”, “Mulheres à beira de um ataque de
nervos”, “Kika”) e mais sutil em outros (“A flor do meu segredo”, “Volver”,
“Abraços partidos”), essa mistura aparentemente impossível é uma das
características mais marcantes do cineasta, já premiado com o Oscar de melhor
filme estrangeiro (por “Tudo sobre minha mãe”) e roteiro original (por “Fale
com ela”) e que é normalmente apontado como um especialista em personagens
femininas de grande força dramática. Em “A pele que habito”, porém, ele mostra
que é plenamente capaz de criar um protagonista masculino igualmente potente,
além de experimentar, pela primeira vez em sua carreira, o mergulho em um filme
de suspense. Tudo bem que “Matador” e “Má educação” tinham momentos que
flertavam com o gênero, mas nenhum deles era tão ostensivamente cruel e
sufocante quanto essa adaptação livre do romance “Tarântula”, de Thierry
Jonquet, que mistura elementos de “Frankenstein”, de Mary Shelley e “O
colecionador”, de John Fowles, para contar uma história de obsessão e vingança
que, no fim das contas, combina à perfeição com a obra que o diretor vem
construindo desde a década de 80.
A primeira ligação de “A pele que
habito” com o passado de Almodovar vem com o reencontro com Antonio Banderas,
ator-fetiche de seus primeiros filmes e com quem não trabalhava desde “Ata-me”,
de 1990. Mais velho e mais maduro como ator – ainda que vez por outra
escorregue no overacting – Banderas
vive Robert Ledgard, um cirurgião plástico respeitado pelos colegas e pelos
pacientes que dedica seu tempo ao desenvolvimento de uma pele sintética capaz
de resistir a quaisquer tipos de agressão. Suas experiências polêmicas (e
contra a lei) tem origem no trauma que viveu com a morte da esposa, vítima de
um acidente de carro que a deixou desfigurada e resultou em seu suicídio. A
tragédia – que teve ainda uma outra consequência devastadora envolvendo sua única
filha – o faz tornar-se um homem obcecado por vingança, que acaba por envolver
um jovem Vicente(Jan Cornet) em uma dedicada e violenta experiência.
Com uma narrativa que usa e abusa de
flashbacks que dão ao público a exata noção de causa/consequência dos atos de
Robert, “A pele que habito” destoa um tanto dos filmes mais famosos de
Almodovar por demorar a estabelecer a real história que deseja contar. É
somente aos poucos que o roteiro vai oferecendo à plateia os elementos essenciais
à compreensão da extensão da vingança de seu protagonista, um homem que, ao
contrário do que dita a cartilha do cinema hollywoodiano, está longe de ser um
herói assim como tampouco pode ser considerado um vilão: essa dualidade de seu
personagem principal é um dos principais méritos do filme de Almodovar, que
mais uma vez confere propriedades humanas a suas criações, livrando-as do
maniqueísmo fácil e preguiçoso que domina boa parte do cinema comercial. Robert
Ledgard pode ter suas razões para buscar uma vingança, mas a certo ponto da
narrativa – graças principalmente à recusa do diretor em injetar uma culpa
explícita em ... – é impossível que a plateia não fique em dúvida se tudo não
está indo longe demais. E, acreditem, nem Almodovar nem seu protagonista parecem
dispostos a poupar ninguém de seu pesadelo estético/sexual, que inclui a bela
Vera (Elena Anaya).
O bom-humor tão louvado na obra de
Almodovar – que sempre conseguiu alternar riso e lágrimas sem prejuízo do
conjunto – praticamente inexiste em “A pele que habito”. Quando tenta dar uma
aliviada ao tom extremamente sombrio e doentio da história, acaba por tropeçar
– Zeca, o filho brasileiro de Marília (Marisa Paredes, outra habitual
colaboradora do cineasta), empregada de Robert e sua aliada/cúmplice, chega à
mansão do médico fantasiado de tigre, em uma desnecessária pretensão à
comicidade distorcida de seus filmes anteriores. Apesar da presença de Zeca ser
o catalisador de eventos que empurram a ação – e dão origem às reminiscências
que finalmente explicam os motivos das atitudes do cirurgião – tal artifício
soa fora de lugar. Em “Kika” funcionaria. Em “Mulheres à beira de um ataque de
nervos” sublinharia o tom debochado. Em “A pele que habito” deixa a impressão
de uma piada sem graça e fora de hora. É o único escorregão de um filme que,
afora isso, é sufocante e desconfortável como uma visita ao dentista.
Sublinhado pela música tonitruante
de Alberto Iglesias e pela cenografia inesperadamente asséptica – uma surpresa
em se tratando de uma espécie de embaixador da estética kitsch – “A pele que
habito” conduz o espectador a uma viagem por um labirinto de sensações
conflitantes e de uma tensão nunca vista antes na obra do diretor. Sem medo de
pegar pesado no suspense, Almodovar utiliza todo o seu talento na construção de
um pesadelo incomodamente verossímil, apesar do aparente exagero da trama
central. Se desperta o riso, é um riso nervoso, reação à crueldade da vingança
de Roberto e à forma com que ela é realizada. Nem mesmo quando flerta descaradamente
com o melodrama – gênero no qual o diretor é mestre – o filme deixa de ser
desconcertante, prova do gênio de seu criador, um cineasta incapaz de gerar um
filme medíocre mesmo quando se propõe a testar seus limites.
A crítica não foi tão generosa com
“A pele que habito” como foi com as obras-primas de Almodovar – a saber,
“Mulheres à beira de um ataque de nervos”, “Carne trêmula”, “Tudo sobre minha
mãe”, “Fale com ela” – e fez malabarismos para ver em seu filme defeitos que em
produções hollywoodianas não parecem ser problema algum. Talvez a expectativa
gerada pela reunião de Almodovar/Banderas/Marisa Paredes tenha sido seu maior
algoz. Mas um dia provavelmente sua incursão no lado mais negro do ser humano
até hoje será vista como o excelente filme que é, apesar de seus pecadilhos. “A
pele que habito” não é um Almodovar típico – a despeito de seu final irônico - mas
é um grande Almodovar.
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