Baseado em dois contos do escritor canadense Craig Davidson - cujo protagonista masculino mudou de sexo quando Audiard achou que já tinha homens demais em "O profeta" e quis mudar o foco da trama - "Ferrugem e osso" fala de perdas, de recomeços e da coragem de enfrentar de frente problemas bastante graves sem perder a esperança. O ótimo Matthias Schoenaerts interpreta Ali, que chega à casa de sua irmã acompanhado do filho de cinco anos para recomeçar a vida. Logo que arruma emprego como segurança de uma boate ele conhece a bela Stéphanie (Marion Cottilard, perfeita como sempre), que trabalha como adestradora de baleias em um espetáculo local. Algum tempo depois, eles voltam a se encontrar em circunstâncias bem diferentes: ele está envolvido em lutas de quintal de boxe tailandês para ganhar dinheiro e ela perdeu as duas pernas em um acidente com um dos animais de seu show. Depois de se tornarem amigos eles acabam se envolvendo romanticamente, apesar da resistência dele em assumir compromissos.
Ao contrário dos romances hollywoodianos, onde as personagens enfrentam problemas risíveis ou absolutamente inverossímeis, no filme de Audiard os caminhos que separam e unem Ali e Stéphanie soam reais e dolorosamente próximos da audiência. As cenas de sexo - delicadas e fotografadas com discrição - não buscam excitar o público e sim ilustrar a tristeza e a urgência das personagens e é exemplar o uso da luz solar nos momentos em que Stéphanie consegue sair da escuridão de sua situação para relembrar seus dias de felicidade e plenitude física e a forma como o cineasta conduz a trama sem deixá-la previsível e oca. O terço final do filme - depois que Ali é obrigado mais uma vez a mudar de vida - consegue até mesmo deixar o espectador com o coração na mão, em uma situação apavorante que comprova sem sombra de dúvidas o quanto o roteiro conseguiu driblar as armadilhas propostas pela proposta inicial (que poderia facilmente descambar para o dramalhão) para envolver o público com gente de verdade, com sentimentos muito mais reais do que ele está acostumado a ver no escurinho do cinema. E para isso ele conta também com um elenco formidável.
Se Marion Cottilard mais uma vez dá um banho de coragem e entrega com sua Stéphanie - cuja história trágica jamais busca a compaixão leviana da audiência e que arrancou aplausos entusiasmados no último Festival de Cannes - seu parceiro de cena não fica atrás. Desconhecido no Brasil, Matthias Schoenaerts conquista pela sutileza com que compõe seu Ali, um homem que alterna momentos de extrema ternura com rasgos de uma violência que encontra origem em uma vida difícil e sem maiores espaços para delicadeza. Sempre que os dois contracenam o filme cresce, mostrando o talento de Audiard na direção de atores e sua força em extrair deles atuações gigantescas. É impossível manter-se incólume quando os dois estão juntos e essa talvez seja a maior das várias qualidades de um filme poderoso o bastante para confirmar que um raio pode sim cair duas vezes no mesmo lugar. Jacques Audiard caminha com determinação para tornar-se um dos maiores cineastas franceses de sua geração.
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