Indicado ao Oscar de Maquiagem
Todo cinéfilo que se preze já se
deixou seduzir ao menos uma vez pela surpreendente e assustadora história do
bizarro Norman Bates no inesquecível “Psicose” – o original de 1960 dirigido
por Alfred Hitchcock, claro, e não a aberração comandada por Gus Van Sant em
1998. O que talvez nem metade das pessoas que pularam da cadeira com os sustos
provocados pelo mestre do suspense sabem, porém, é que, mesmo com todo seu
prestígio dentro da indústria, o cineasta inglês teve que lutar com unhas e
dentes – e dívidas em cima de dívidas – para conseguir levar o livro de Robert
Bloch às telas. Os bastidores da filmagem de um dos maiores clássicos do cinema
– tão repletos de dramas e imprevistos quanto o próprio filme em si – serviram
de mote para o livro “Hitchcock and the making of ‘Psycho’”, escrito por Stephen Rebello, e que, por sua vez, é a base na qual se sustenta “Hitchcock”,
dirigido por Sacha Gervasi. Lançado quase ao mesmo tempo em que o televisivo
“The girl” – que acompanhava os bastidores de outro filme essencial na carreira
do cineasta, “Os pássaros” – a obra de Gervasi tem a seu favor o interesse que
a simples menção do nome de Hitchcock desperta e o elenco formado por nomes
conhecidos do grande público (Anthony Hopkins, Helen Mirren, Scarlett
Johansson, Jessica Biel). Porém, carece de foco e, paradoxalmente, tem mais
cara de filme para a televisão do que seu rival temático (estrelado por Toby
Jones).
Anthony Hopkins, mesmo sendo o
grande ator que é, fica aquém do esperado em sua interpretação – talvez culpa
da maquiagem que lhe tolhe os movimentos faciais (e mesmo assim foi indicada ao
Oscar da categoria), talvez culpa do roteiro um tanto superficial, talvez culpa
da direção frouxa de Gervasi. Mesmo que desapareça debaixo da pele do homem que
legou ao mundo obras impecáveis como “Janela indiscreta” e “Um corpo que cai” –
o ator galês não chega a dar alma a seu personagem, dando a impressão de
limitar-se apenas a uma imitação, a uma mera mimese sem maior profundidade. Nem
o artifício do roteiro de fazê-lo conversar com Ed Gein – o psicopata real que
inspirou o livro de Robert Bloch – dá sustentação a seu trabalho. Na maior
parte do tempo, Hitchcock parece apenas uma mimada criança grande, incapaz de lidar
ao mesmo tempo com o trabalho, o casamento com sua parceira de todas as horas
Alma Reville (Helen Mirren) e as paixões platônicas pelas estrelas de seus
filmes (Grace Kelly acima de todas). Pode ser que Hitchcock fosse realmente
assim e que o filme faça um retrato fiel de sua personalidade, mas é inegável
que em boa parte do tempo essa opção não funciona.
A trama começa quando, procurando
material para seu novo filme na Paramount depois do relativo fracasso de
“Intriga internacional”, Hitchcock descobre o romance de Bloch, considerado
pela crítica e por todo mundo que o rodeia uma subliteratura de mau-gosto.
Acontece que, teimoso como ele só, o cineasta resolve ir contra a opinião de
todos – inclusive de Alma, que tenta convencê-lo a dar uma chance ao romance de
um amigo comum, Whitlock Miller (Danny Huston) – e levar o livro às telas.
Começa aí sua via-crúcis: a Paramount se recusa a bancar um produto tão
nitidamente fadado à execração pública e, corajosamente, Hitch resolve contrair
dívidas pouco saudáveis para levar a ideia adiante – aceitando do estúdio a
promessa de distribuir o filme desde que caiba a ele o controle total do
resultado final (um trato extremamente arriscado). Dono de um senso de
marketing genial, o cineasta faz com que se comprem todos os exemplares disponíveis
do livro no país (como forma de manter em segredo as reviravoltas da trama),
contrata o roteirista Joseph Estefano (Ralph Macchio, o Karatê Kid em pessoa)
para adaptar o material e contrata atores não exatamente comerciais para os
papéis centrais: a bela Janet Leigh (Scarlett Johansson), o promissor Anthony
Perkins (James D’Arcy) e sua antiga obsessão Vera Miles (Jessica Biel) – a quem
não consegue perdoar pelo fato de ter abandonado o projeto de “Um corpo que
cai” para engravidar.
Pressionado pelo estúdio,
desacreditado pelos executivos e afins do mundo do cinema, temeroso pelo
resultado do filme nas bilheterias e sofrendo com as privações alimentares (não
exatamente cumpridas) que sua saúde exige, Hitchcock ainda precisa lidar com um
problema de nível pessoal: a desconfiança de que sua alma gêmea, a
dedicadíssima Alma, possa estar tendo um romance extra-conjugal com o escritor
Whittlock Miller. Esse desvio de rota – saindo do estritamente profissional dos
sets de filmagens para entrar no âmbito pessoal e matrimonial do cineasta –
acaba sendo o calcanhar de Aquiles do filme de Gervasi. Mesmo com a brilhante
atuação de Helen Mirren, a trama paralela do possível envolvimento de Reville
com outro homem prejudica consideravelmente o ritmo ágil (talvez em demasia,
diga-se de passagem) daquele que deveria ser o principal ponto de interesse da
história. Toda vez que a câmera deixa de lado as intrigas de bastidores de
“Psicose” – as brigas com a censura, o relacionamento difícil entre o diretor e
Vera Miles, a construção da genial trilha sonora de Bernard Herrman – para
dedicar-se aos devaneios românticos/adúlteros de Alma, há uma perda de foco
quase imperdoável.
E isso que nem mesmo depois de estar
pronto “Psicose” deixou de dar trabalho a seu criador e sua equipe. Rejeitado
pela Paramount para desespero do diretor, o filme voltou à sala de montagem e,
com o apoio de Alma – além de alterações sutis mas bastante eficientes em
aumentar o nível dos sustos – estreou com uma campanha de marketing das mais
astuciosas, de causar inveja às intervenções milionárias das produções atuais.
Seguranças contratados especialmente para impedir espectadores de entrarem nas
salas de exibição depois do início das sessões, cortinas se fechando logo após
o encerramento do filme (“para manter por mais tempo as sensações provocadas
pela história”) e pedidos encarecidos do próprio Hitchcock para que o público
não revelasse a ninguém o desfecho da trama foram algumas das medidas tomadas
para que aquele que era considerado o “suicídio artístico” do mestre do
suspense se tornasse o maior sucesso financeiro de sua carreira (além de lhe
render uma indicação ao Oscar de melhor diretor). Os detalhes de sua concepção
são deliciosos e é um prazer testemunhá-los, mas é inegável que fica no ar, ao
fim dos créditos de encerramento, a nítida sensação de um filme que poderia ter
sido bem melhor.
E realmente poderia. Tudo em
“Hitchcock” é quase. O roteiro é simplista, sem profundidade dramática. A
direção é esquemática e sem criatividade. O elenco faz o que pode com um
material quase pobre (Helen Mirren é a única que consegue injetar consistência
em sua interpretação). E até mesmo momentos que poderiam beirar o sublime
(Hitch nos bastidores degustando a reação da plateia diante do assassinato no
chuveiro mais famoso da história do cinema) chegam perto do risível. Não fosse
“Psicose” a obra-prima que é – e que por consequência chama o interesse dos
cinéfilos até mesmo indiretamente – o filme de Gervasi correria o sério risco de
passar despercebido. Subaproveitando até mesmo a sempre ótima Toni Colette
(aqui na pele da secretária do cineasta), “Hitchcock” é surpreendentemente
inferior a seu rival televisivo. É leve, é simpático, mas superficial ao extremo.
Hitch merecia algo melhor.
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