HOJE
EU QUERO VOLTAR SOZINHO (Hoje eu quero voltar sozinho, 2014, Lacuna
Filmes/Polana Filmes, 96min) Direção e roteiro: Daniel Ribeiro.
Fotografia: Pierre de Korchove. Montagem: Cristian Chinen. Figurino:
Carla Boregas, Flavia Lhacer. Direção de arte: Olivia Helena Sanches.
Produção: Diana Almeida, Daniel Ribeiro. Elenco: Ghilherme Lobo, Fábio
Audi, Tess Amorim, Lúcia Romano, Eucir de Souza, Selma Egrei. Estreia:
10/02/14 (Festival de Berlim)
Em 2010, o
curta-metragem "Eu não quero voltar sozinho" virou febre na Internet. A
história da descoberta da homossexualidade de um adolescente cego e seu
tímido romance com um colega de classe teve mais de três milhões de
visualizações no Youtube, recebeu calorosos aplausos da crítica em
festivais internacionais e, como era de se esperar em tempos tão
medievais, causou polêmica ao ser proibido em algumas cidades do país -
confundido como parte do malfadado "kit-gay" que tanta celeuma provocou
pelos quatro cantos do Brasil. Entusiasmado com a recepção mais do que
positiva a seu trabalho, o roteirista e cineasta Daniel Ribeiro teve
então a feliz ideia de expandir a trama em sua estreia como diretor de
longas. Com uma pequena alteração no título - a versão mais ambiciosa se
chama "Hoje eu quero voltar sozinho", o que explicita também o arco
dramático e de maturidade do protagonista - e o mesmo ótimo elenco
juvenil do curta, Ribeiro criou uma pequena obra-prima do novo cinema
nacional, um filme leve, sensível e alto-astral que discute preconceitos
sem jamais enfatizá-los como ponto principal de interesse de seu olhar.
Era
de se esperar que, ao eleger como protagonista um adolescente cego que
se descobre homossexual ao apaixonar-se por um colega, o roteiro de
Daniel Ribeiro fosse derramar-se em repetitivas e cansativas cenas de
bullying ou dramáticos momentos de autodescoberta e preconceito
familiar. Espertamente, porém, o roteirista opta por seguir o caminho
oposto, dedicando sua atenção menos ao universo familiar e escolar que
rodeia Leonardo (o ótimo Ghilherme Lobo) e mais à sua busca por
independência - cego de nascença, ele anseia por viver normalmente como
qualquer um de sua idade e, se possível, até mesmo embarcar em um
intercâmbio internacional. As provocações dos valentões da escola até
existem (mais por sua condição física do que por sua sexualidade, o que é
mais um diferencial da trama), mas o foco de "Hoje eu quero voltar
sozinho" é o período de descobertas do rapaz, com todas as dores e
alegrias inerentes ao processo de amadurecimento. Leo não se importa
tanto com as brincadeiras sem-graça dos colegas quanto se importa com a
falta de confiança dos pais na sua capacidade de levar uma vida normal. O
fato de descobrir-se apaixonado não pela amiga de infância Giovana
(Tess Amorim) e sim pelo novo aluno da escola, Gabriel (Fábio Audi) é
apenas um drama incidental, tratado com uma naturalidade tão encantadora
que é impossível não se deixar conquistar.
A
sensibilidade de Daniel Ribeiro em contar sua história também é
facilmente perceptível através da maneira com que sua câmera passeia sem
pressa pelas ruas arborizadas onde se passa a trama, em uma São Paulo
distante dos cartões-postais. Universalizando ao máximo sua narrativa,
ele move seus personagens ao som tanto de canções nacionais - cortesia
de Marcelo Camelo - quanto de música clássica e hinos modernos de Marvin
Gaye, Belle & Sebastian e David Bowie, além de nunca exagerar
na sexualização de seus personagens: ao optar por um viés mais romântico
que sensual, Ribeiro pode até soar ingênuo e quase fantasioso (afinal,
os meninos estão em uma fase hormonal das mais potentes), mas ao mesmo
tempo atinge com sensibilidade a uma plateia que, de outra forma,
poderia passar ao largo do filme por considerá-lo uma apologia à
homossexualidade - sim, os conservadores de plantão nunca dormem em
serviço. O sexo em si quase não é tratado no filme - surge apenas em uma
delicada sequência no vestiário de um acampamento - mas ao mesmo tempo
está presente o tempo todo, mesmo sem ser citado nominalmente (afinal,
amor e sexo fazem parte da mesma equação). Daniel Ribeiro acerta em
cheio em dar prioridade ao romance do que ao desejo - é um diferencial
que transforma sua obra em algo mais do que apenas mais um filme sobre a
descoberta da sexualidade: é sobre a descoberta de si mesmo, algo muito
maior e mais importante.
E se o roteiro e a direção de
Daniel Ribeiro são responsáveis pela delicadeza e sensibilidade do
filme, é a ele também que se deve a sorte de contar com dois atores tão
adequados quanto Ghilherme Lobo e Fábio Audi nos papéis centrais. A
anos-luz de distância de atores que tentam conquistar a plateia apenas
com corpos esculturais e sorrisos vazios, os dois jovens encaram com
extrema naturalidade o desafio de contar uma história de amor gay sem
apelar para trejeitos caricatos ou sexualidade explícita. Ambos estão
excelentes em cena, mas seria injusto não reconhecer o tamanho da
dificuldade enfrentada por Ghilherme Lobo - convencer na pele de alguém
que nunca enxergou - e a forma madura e segura com que ele desincumbe-se
da missão, dando credibilidade e alma a um personagem capaz de encantar
qualquer um da plateia. É seu carisma e sua ternura diante da vida um
dos maiores triunfos de "Hoje eu quero voltar sozinho". E em um filme
repleto deles, isso não é pouca coisa.
Filmes, filmes e mais filmes. De todos os gêneros, países, épocas e níveis de qualidade. Afinal, a sétima arte não tem esse nome à toa.
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