NINFOMANÍACA: VOLUME 2 (Nymphomaniac: Vol. II, 2013, Zentropa
Entertainment, 123min) Direção e roteiro: Lars Von Trier. Fotografia:
Manuel Alberto Claro. Montagem: Molly Marlene Stensgaard. Direção de
arte: Alexander Scherer. Produção executiva: Peter Garde, Peter Aalbaek
Jensen. Produção: Marie Cecilie Gade, Peter Aalbaek Jensen, Louise
Vesth. Elenco: Charlotte Gainsbourg, Stellan Skarsgard, Stacy Martin,
Shia LaBeouf, Christian Slater, Jamie Bell, Willem Dafoe,
Jean-Marc Barr, Udo Kier. Estreia: 25/12/13
Enquanto o primeiro capítulo do mais polêmico filme de Lars Von Trier tratava de apresentar Joe e sua infância e adolescência - origens de sua autodiagnosticada doença - "Ninfomaníaca, volume 2" se aprofunda ainda mais em sua busca inglória pelo Santo Graal do prazer a todo custo e nas consequências dramáticas de suas escolhas - nem sempre tomadas de forma totalmente racional. Sem mais dividir o papel de protagonista com Stacy Martin, a atriz Charlotte Gainsbourg mostra mais uma vez porque é uma das preferidas do cineasta, com uma performance intensa e corajosa. Finalizando com coerência e ainda mais controvérsia uma obra explosiva e que despertou discussões incansáveis ao redor do planeta, o segundo volume da história de Joe acrescenta ao já variado menu sexual da protagonista sadomasoquismo, lesbianismo, sexo grupal e, para seu desespero, até uma dose de anorgasmia (incapacidade de ter orgasmos). O resultado é uma narrativa que equilibra com sensibilidade uma série de sequências bastante quentes - interpretadas por dublês de corpo - e alguns momentos de partir o coração.
Começando exatamente de onde acabou a primeira parte - quando, casada e apaixonada, Joe se descobre incapaz de ter prazer com o marido, Jerôme (Shia LaBeouf), também pai de seu filho - o filme mostra o desespero da protagonista diante de uma encruzilhada que a obriga a tomar decisões cruéis e revoltantes como forma de sustentar seu estilo particular de vida, regado a sexo compulsivo e por vezes (ao menos na visão tradicional) degradante. Se dando até mesmo ao luxo da auto-citação - com uma sequência que lembra um dos momentos mais fortes de seu "Anticristo" - Lars Von Trier conduz Joe e a plateia por um caminho sombrio e desprovido de glamour, onde o sexo surge não como uma forma de prazer absoluto, mas como uma espécie de inferno particular. Ao não conseguir fugir de sua "doença", Joe se afunda cada vez mais em situações de perigo - sexo a três com desconhecidos, encontros secretos com um jovem cujo fetiche é espancar mulheres e até mesmo um emprego como "cobradora informal" ao lado de criminosos violentos - como forma de expiar seus pecados (nem mesmo a ajuda de um grupo de apoio é capaz de livrá-la do que considera parte de seu ser). Mas, ao contrário do primeiro volume, dessa vez o cineasta deixa a trama perder o foco em algum lugar da estrada.
Mesmo sendo visualmente mais ousado do que o primeiro filme em termos de cenas de sexo e até mesmo em teorias polêmicas (em determinado ponto Joe defende os pedófilos que nunca ultrapassaram a linha do desejo e os classifica como heróis), "Ninfomaníaca, volume 2" perde parte de seu ritmo quando cria uma subtrama desnecessária e quase deslocada, que envolve Joe e um empresário (Willem Dafoe) que a contrata para cobrar dívidas de mau-pagadores. Ok, existe um motivo dramaticamente explicável para tal desvio quase surpreendente da narrativa (e que inclui mais uma história de amor frustrada da protagonista e que acaba por ser a responsável pela situação em que ela se encontra no começo do capítulo inicial), mas é inegável que, depois da avalanche de situações empolgantes/temerárias/controversas discutidas pelo filme, esse desvio de percurso compromete o ritmo do filme e quase o transforma em uma obra de narrativa convencional - impressão que seu final anti-climático (ainda que com uma certa dose de ironia) apenas ajuda a reforçar. A questão que fica, porém, é uma só: "Ninfomaníaca" (os dois volumes juntos) é, afinal um filme misógino ou feminista?
Nem uma coisa nem outra. Lars Von Trier é um cineasta conhecido por colocar suas personagens femininas em situações extremas de humilhação e sofrimento, mas daí a considerá-lo misógino por causa disso é exagero - afinal, ótimas atrizes, como Emily Watson Nicole Kidman, Kirsten Dunst e a própria Charlotte Gainsbourg não iriam sujeitar-se a um diretor com tendências exclusivamente sádicas e sem (boas) histórias para contar. Além do mais, basta examinar com mais cuidado seus filmes anteriores para perceber que, apesar das via-crucis pelas quais passam suas protagonistas, elas não deixam de ser mulheres fortes e determinadas. Joe, por exemplo, pode ser vista tanto como uma vítima das circunstâncias quanto uma senhora de seu destino, por fazer escolhas (muitas delas erradas, mas coerentes com sua personalidade) e pagar o preço por elas estoicamente. Uma mulher ser capaz de entregar-se a uma vida sexual rica e submeter-se aos caprichos masculinos por vontade própria pode soar como uma afronta às feministas, mas não deixa de ser também revolucionário e corajoso. Talvez isso tenha incomodado algumas mulheres e provocado a discussão a respeito das intenções de Von Trier, mas até mesmo essa dubiedade é fascinante e transforma o que poderia ser apenas mais um filme disposto a chamar a atenção pelo comércio do sexo puro e simples em uma obra passível de permanecer por bons anos na berlinda. Afinal de contas, não é isso que se espera de um bom cineasta?
Quanto às virtudes artísticas, é preciso mais uma vez louvar o desempenho de Charlotte Gainsbourg - não à toa integrante da Trilogia da Depressão do cineasta ("Anticristo", "Melancolia" e estes volumes de "Ninfomaníaca" - no papel central. Entregue de corpo e alma a um papel difícil e desafiador, a filha da cantora Jane Birkin e do músico Serge Gainsbourg se mostra uma das mais ousadas atrizes de sua geração e uma parceira à altura dos devaneios de Von Trier. Merecem destaque também as participações de Jamie Bell - o menino revelado em "Billy Elliot", aqui crescido e bem desenvolvido - e Stellan Skarsgard, em uma atuação contida que só vai explodir ao final, quando finalmente revela quem é seu personagem. Resumindo, "Ninfomaníaca, volume 2" é o desfecho impactante de um filme por si só capaz de despertar todos os tipos de sentimento no espectador que procura mais no cinema do que simples diversão. Altamente recomendável - nem que seja para falar mal com argumentos.
Filmes, filmes e mais filmes. De todos os gêneros, países, épocas e níveis de qualidade. Afinal, a sétima arte não tem esse nome à toa.
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