TATUAGEM
(Tatuagem, 2013, Rec Produtores Associados Ltda., 110min) Direção e
roteiro: Hilton Lacerda. Fotografia: Ivo Lopes Araújo. Montagem: Mair
Tavares. Música: DJ Dolores, Johnny Hooker. Figurino: Christiana
Garrido. Direção de arte: Renata Pinheiro. Produção executiva: Nara
Aragão. Produção: João Vieira Jr.. Elenco: Irandhir Santos, Jesuíta
Barbosa, Rodrigo Garcia, Sylvia Prado, Sílvio Restiffe. Estreia:
15/11/13
Ditadura militar X liberdades individuais e
culturais. Repressão X transgressão. Apolo X Dionísio. Violência X
amor. Todas essas batalhas, travadas nas ruas, nas camas, nas boates e
nas mentes, estão presentes em "Tatuagem", primeiro longa-metragem do
pernambucano Hilton Lacerda, conhecido pelo roteiro de alguns dos mais
radicais filmes brasileiros da safra pós-"Cidade de Deus", como os
polêmicos "Amarelo manga", "Baixio das bestas" e "A febre do rato",
todos dirigidos por Cláudio Assis. Em sua estreia como cineasta, ele não
vai tão fundo quanto Assis na provocação estética, mas é extremamente
bem-sucedido na sua missão de louvar um estilo de vida que, mais do que
simplesmente desafiar as convenções sociais e morais de uma época negra
na história do país, batia de frente com a truculência do Estado.
Libertário, propositalmente exagerado e debochado sem ser bobo,
"Tatuagem" é um tapa na cara da hipocrisia ao mesmo tempo em que é um
belo documento sobre a liberdade.
Livre das amarras
e das obrigações de ser uma produção de viés puramente comercial -
leia-se sem o apoio e as imposições da Globo Filmes - "Tatuagem" é um
filme marginal que retrata personagens marginais e os eleva à posição de
heróis. Sua marginalidade, porém, não é pejorativa. Os protagonistas do
filme são marginais porque escolheram viver à margem de uma sociedade
doente, hipócrita e cega às atrocidades de uma ditadura militar que
cerceou todo e qualquer direito à liberdade de expressão. É por sua
coragem de desafiar o status quo que Clécio (Irandhir Santos,
fabuloso como sempre) é o líder de um grupo de artistas que brinca com o
perigo, com apresentações ousadas que cutucam o governo, a família e
quem quer que represente a autoridade. Criativo e apaixonado pela arte
do teatro, ele e seus colegas - um grupo que inclui o desaforado Paulete
(Rodrigo García) - dividem uma espaçosa casa na Recife de 1978, já nos
estertores da repressão, e frequentemente se vê obrigado a lutar pela
liberação de seus espetáculos, recheados de palavrões, nudez e tudo
aquilo que provoca arrepios nos lares tradicionais. Sua rotina se
transforma, porém, quando ele conhece e se apaixona por alguém que pode
representar seu fim.
Fininha (Jesuíta Barbosa, uma revelação a ser comemorada) é um jovem de
dezoito anos ingênuo e sensível que se vê repentinamente envolvido em um
mundo totalmente à parte de seu dia-a-dia. Servindo ao exército como
soldado, ele não consegue evitar de se apaixonar por Clécio e seu modo
anarquista de ser e viver, repleto de uma liberdade com a qual ele
jamais supunha existir. Dividido entre o universo severo e rígido do
quartel e a liberalidade quase excessiva do mundo que Clécio representa,
Fininha acaba também por servir como ponte entre os dois mundos,
principalmente quando passa a ser vítima da desconfiança de ambos os
lados: os colegas começam a questionar sua lealdade e sexualidade e seus
novos amigos temem que ele seja um agente infiltrado para destruir o
grupo e prender a todos eles. No meio de todas essas dúvidas, ele ainda
precisa lidar com a família e o amor verdadeiro que sente por Clécio -
amante, mentor e amigo.
Que não se espere de "Tatuagem"
a estética pasteurizada do cinema comercial brasileiro. Hilton Lacerda
mostra-se fiel à sua forma radical de ver o mundo que o cerca, com uma
fotografia quase suja de Ivo Lopes Araújo e uma câmera na mão que
mergulha o espectador na trama sem pedir licença. Não há, nas
apresentações do grupo "Chão de estrelas", nenhum glamour, apenas o amor
pela arte e pela liberdade, reiterado por um humor quase chulo que
cospe no rosto do perigo enquanto canta e dança diante de um
entusiasmado público também sedento por ar puro. Lacerda não cai na
tentação de enfeitar seus personagens ou sua história, afirmando em cada
sequência sua origem nordestina e sua ideologia estética e cultural - o
que pode incomodar a um público mais tradicional, assim como as cenas
de sexo gay bastante ousadas mas jamais vulgares. Símbolo de um cinema
mais autoral (e mesmo assim bem mais acessível do que as obras de
Cláudio Assis), "Tatuagem" não é um filme para todos. É preciso estar
disposto a penetrar no universo anarquista da produção para se desfrutar
de tudo que ele tem de bom - ou até mesmo para rechaçá-lo com
argumentos sólidos. A obra de Hilton Lacerda é mais que um filme, é uma
experiência. Se vale a pena tê-la é uma questão unicamente de opinião.
Filmes, filmes e mais filmes. De todos os gêneros, países, épocas e níveis de qualidade. Afinal, a sétima arte não tem esse nome à toa.
segunda-feira
Assinar:
Postar comentários (Atom)
JADE
JADE (Jade, 1995, Paramount Pictures, 95min) Direção: William Friedkin. Roteiro: Joe Eszterhas. Fotografia: Andrzej Bartkowiak. Montagem...
-
EVIL: RAÍZES DO MAL (Ondskan, 2003, Moviola Film, 113min) Direção: Mikael Hafstrom. Roteiro: Hans Gunnarsson, Mikael Hafstrom, Klas Osterg...
-
NÃO FALE O MAL (Speak no evil, 2022, Profile Pictures/OAK Motion Pictures/Det Danske Filminstitut, 97min) Direção: Christian Tafdrup. Roteir...
-
ACIMA DE QUALQUER SUSPEITA (Presumed innocent, 1990, Warner Bros, 127min) Direção: Alan J. Pakula. Roteiro: Frank Pierson, Alan J. Paku...
Nenhum comentário:
Postar um comentário