Indicado ao Oscar de Melhor Trilha Sonora Original
Não deve haver honra maior para um
escritor de livros infantis do que ver seu trabalho transposto para as telas de
cinema, especialmente sob o comando de um dos mais poderosos e respeitados
nomes da indústria, certo? Errado, se seu nome for P (de Pamela) L. Travers, a
autora do clássico “Mary Poppins”, que demorou mais de vinte anos para
autorizar a adaptação de seu livro pelos Estúdios Disney – que, a rigor, era o
mais apropriado para o trabalho, haja visto sua enorme contribuição ao universo
infanto-juvenil através das décadas, com seus desenhos animados alegres,
musicais e coloridos. Pois eram justamente essa alegria, essa música e esse
colorido todo os principais empecilhos que separavam Disney de Poppins: avessa
ao “estilo Disney” de cinema, Travers recusava-se terminantemente a vender os
direitos de sua obra de estimação – uma teimosia que, na verdade, tinha raízes
bem mais profundas e dramáticas do que uma simples birra intelectual, como
mostra o belo e suave “Walt nos bastidores de ‘Mary Poppins’”, a dramatização
da difícil relação travada entre a escritora australiana e o produtor
hollywoodiano.
Uma deliciosa e melancólica comédia
dramática dirigida por John Lee Hancock – que assinou o apenas razoável “À
procura da felicidade” (06) e o sofrível “Um sonho possível” (09) – surpreende
justamente pelo currículo de seu diretor, acostumado a exagerar na sacarose de
seus filmes a ponto de torná-los quase indigestos. Em “Walt nos bastidores de
‘Mary Poppins’” (um título esdrúxulo que não é apenas pobre mas que também
acaba com as nuances do original “Saving Mr. Banks”) ele não abre mão da
emoção, mas talvez amparado por um roteiro recheado de um senso de humor
inocente e principalmente pela atuação primorosa de Emma Thompson no papel de Travers,
consegue escapar do sentimentalismo barato. Tudo bem que em um momento ou outro
chega bem perto, mas tal opção não deixa de ser coerente com o espírito do
estúdio e de seu criador, retratado no filme como um homem empreendedor,
compreensivo e adorável – e, portanto, bem a cara de seu intérprete, Tom Hanks.
Enquanto na verdade (e várias fontes confirmam a informação) Disney não era
exatamente tão meigo – existem até acusações de misoginia em sua trajetória –
no filme de Hancock, ele é a personificação das qualidades de seu império dos
sonhos. Em um outro contexto soaria cínico. Dentro do universo do filme, chega
a ser confortador.
Com exceção de um pequeno flashback
que mais tarde fará parte de uma tela maior de ternas e tristes recordações da
protagonista, “Saving Mr. Banks” começa em abril de 1961, em Londres, quando a
escritora P. L. Travers (Emma Thompson, indicada ao Golden Globe e ignorada
pelo Oscar) finalmente aceita, por motivações puramente financeiras – seus
livros pararam de vender e ela não consegue escrever mais nada – viajar à
Califórnia para negociar a venda dos direitos de sua mais querida obra, “Mary
Poppins”, para uma adaptação cinematográfica. Depois de duas décadas negando-se
terminantemente a ver seus personagens contracenando com desenhos animados e
musicais coloridos, ela chega munida de uma boa dose de mau-humor e resistência
para conversar pessoalmente com Walt Disney (Tom Hanks) e verificar se todas
suas exigências serão cumpridas antes da assinatura do contrato. No entanto, o
que surpreende não só à Disney mas ao roteirista Don DiGradi (Bradley Whitford)
e aos compositores Dick (Jason Schwartzman) e Bob Sherman (B. J. Novak) nem é
tanto o apego da escritora à sua criação, e sim a forma com que ela pretende
sabotar o projeto: com pedidos cada vez mais absurdos (inclusive a
não-utilização do vermelho no filme), Travers passa a enlouquecer os
funcionários do estúdio, que nem de longe imaginam os motivos de tanta
intransigência.
Tais motivos, no entanto, surgem diante dos olhos do espectador iluminados por flashbacks intercalados com a permanência de Travers na Califórnia. Nessas lembranças, fotografadas com um tom dourado que evoca um passado que mescla felicidade e desespero, surge a figura da escritora como uma criança que vê sua vida transformada pela queda de status econômico da família na Austrália do começo do século XX, pelo alcoolismo crônico do pai amoroso mas pouco responsável (Colin Farrell, brilhante) e pela chegada da ajuda de uma babá inesperada (Rachel Griffiths) – fonte de inspiração para sua inesquecível criação literária. Esses momentos, dotados de uma sensibilidade poética, contrabalançam o humor quase ingênuo com que o roteiro brinda o espectador, como a mostrar que, até mesmo por trás da mais alegre e inspiradora história infantil pode existir um mundo de tristeza e traumas. E esse equilíbrio é, de certa forma, uma das maiores qualidades do filme de Hancock.
Encapsuladas na atuação sublime de
Emma Thompson – que comanda o espetáculo com sobriedade e uma sutileza que a
confirma como uma das grandes atrizes de sua geração – as boas ideias do
roteiro de “Saving Mr. Banks” encontram eco em um ritmo agradável e uma trilha
sonora mais do que adequada de Thomas Newman, única indicação ao Oscar recebida
pelo filme. Todas as cenas em que Travers se utiliza das prerrogativas de dona
da bola são sensacionais – é brilhante quando Travers começa a implicar com as
abreviações técnicas do roteiro, com rigorosamente todas as ideias do
roteirista e principalmente com as canções e a possibilidade de inserir
animação no filme – e encaminham a narrativa para um clímax emocionante,
quando, sentada no escurinho do cinema, ela finalmente deixa fluir as lágrimas
presas por anos e anos de uma saudade que somente a sétima arte pode curar – ao
menos paliativamente. Esse final sozinho já vale a sessão. É um tanto piegas,
mas é irresistível!
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