O
PASSADO (Le passé, 2013, Memento Films Production/France 3 Cinéma,
130min) Direção e roteiro: Asghar Farhadi. Fotografia: Mahmoud Kalari.
Montagem: Juliette Welfling. Música: Evgueni Galperine, Youli Galperine.
Figurino: Jean-Daniel Vuillermoz. Direção de arte/cenários: Claude
Lenoir. Produção: Alexandre Mallet-Guy. Elenco: Bérénice Bejo, Tahar
Rahim, Ali Mosafa, Pauline Burlet, Elyes Aguis. Estreia: 17/5/13
(Festival de Cannes)
Palma de Ouro no Festival de Cannes: Melhor Atriz (Bérénice Bejo)
Quando
se trata de cinema, alguns males vem pro bem. Se não, vejamos: a atriz
escolhida pelo cineasta iraniano Asghar Farhadi para estrelar seu filme
seguinte ao excepcional "A separação" havia sido Marion Cottilard,
vencedora do Oscar por "Piaf, um hino ao amor" e imediatamente adotada
pela indústria hollywoodiana. Porém, conflitos de agenda - leia-se a
divulgação do drama "Ferrugem e osso" pelo mundo - acabaram por impedir
Cottilard de permanecer no projeto. Farhadi optou então por uma nova
protagonista, Bérénice Bejo, indicada ao Oscar de coadjuvante por "O
artista", e não teve do que reclamar: com uma atuação discreta e sutil,
Bejo conquistou os jurados do Festival de Cannes e levou a Palma de Ouro
de melhor atriz. Muito justo, já que é a sua personagem que move as
engrenagens de "O passado", um dolorido drama familiar que comprova a
imensa capacidade do cineasta em mexer com as emoções primárias do ser
humano.
Assim como em "A separação" - merecido vencedor
do Oscar de filme estrangeiro - a trama criada por Farhadi tem início
com o término de um casamento. Na verdade, em "O passado" são dois que
chegam ao fim, mas apenas um oficialmente. O iraniano Ahmad (Ali
Mosaffa) retorna à Paris para assinar os papéis que enfim irão separá-lo
de Marie-Anne (Bérénice Bejo), a quem não vê há quatro anos. Seu
reencontro não é dos mais pacíficos, mas eles mantém um relacionamento
amistoso principalmente devido ao carinho que ele nutre pelas duas
filhas da ex-mulher, uma das quais, a adolescente Lucie (Pauline Burlet)
não aceita de bom grado o novo namorado da mãe, o árabe Samir (Tahar
Rahim, de "O profeta"), cuja mulher está em coma há oito meses e que tem
um filho pequeno, Fouad (Elyes Aguis) com sérios problemas de
comportamento. Aos poucos Ahmad toma conhecimento dos vários dramas que
acontecem entre as quatro paredes da casa de Marie - uma série de
meias-verdades, mal-entendidos e sentimentos escondidos que tem origem
na tentativa de suicídio da mulher de Samir.
Mestre
em conduzir suas narrativas sem pressa mas com contundência e precisão,
Farhadi mais uma vez acerta no alvo. Com um roteiro extraordinário,
repleto de reviravoltas que vão surgindo gradualmente diante do
espectador, ele não apenas retrata as entranhas de uma família
disfuncional como expõe, de forma impiedosa, as cicatrizes que o
silêncio pode causar a quaisquer relacionamentos. Sem se preocupar em
elucidar os motivos que levaram o casamento de Ahmad e Marie chegar ao
fim, ele se concentra em fazer do protagonista uma espécie de detetive
informal, que vai deslindando uma série de fatos dramáticos que
resultaram na prisão sentimental na qual se encontram os personagens.
Especialmente em sua meia-hora final, quando tudo que parecia certo
subitamente começa a desmoronar, a trama ganha contornos cada vez mais
surpreendentes, conduzindo em um final devastador - que se desvia
magistralmente do clichê para emocionar sem cair no piegas. Sustentado
por um elenco impecável (o que inclui com louvor as crianças), "O
passado" é um filme imperdível para qualquer fã de histórias sobre
pessoas normais.
Situando sua trama em uma Paris que é
um caldeirão efervescente de culturas diversas - não é à toa que os dois
homens de Marie são de nacionalidades opostas - Farhadi ainda inclui em
sua história comentários sutis sobre a situação dos imigrantes ilegais e
dá a seus atores momentos de extrema sensibilidade a explorar: se Tahar
Rahim mostra uma faceta diferente do violento turco que marcou sua
carreira em "O profeta", Bérénice Bejo justifica seu prêmio em Cannes
com uma interpretação silenciosa, calma e que esconde uma profundidade
que vai sendo revelada conforme seus problemas vão se acumulando em
proporções gigantescas. Nesse embate, pouco sobra para Ali Mosaffa, que
serve como uma espécie de juiz em uma batalha sem vencedores justos.
Porém, nada é melhor que a delicadeza do cineasta, explícita desde as
primeiras sequências e que explode na última cena, de uma sensibilidade
tamanha que é bem possível que escape ao olhar de um espectador mais
desatento. É um clímax quieto e pacífico que combina com o estilo
inteligente e humanista de Farhadi, um dos nomes mais importantes do
novo cinema mundial.
Filmes, filmes e mais filmes. De todos os gêneros, países, épocas e níveis de qualidade. Afinal, a sétima arte não tem esse nome à toa.
quarta-feira
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