ECLIPSE
TOTAL (Dolores Claiborne, 1995, Warner Bros, 132min ) Direção: Taylor
Hackford. Roteiro: Tony Gilroy, romance de Stephen King. Fotografia:
Gabriel Beristain. Montagem: Mark Warner. Música: Danny Elfman.
Figurino: Shay Cunliffe. Direção de arte/cenários: Bruno Rubeo/Steve
Shewchuck. Produção: Taylor Hackford, Charles Mulvehill. Elenco: Kathy
Bates, Jennifer Jason Leigh, Christopher Plummer, David Straithairn,
John C. Reilly, Eric Bogosian, Ellen Muth, Bob Gunton. Estreia: 24/3/95
Em
1990, durante uma visita às filmagens de "Louca obsessão", adaptação de
uma obra sua dirigida por Rob Reiner, o escritor Stephen King ficou
impressionado com a atriz principal escolhida pelo cineasta, a até então
desconhecida Kathy Bates - que em seguida impressionaria também o mundo
inteiro e a Academia de Hollywood com seu desempenho irretocável. O
tamanho da admiração de King pelo trabalho de Bates ficou claro quando o
autor inspirou-se nela para escrever um novo romance, ao qual deu o
nome de "Dolores Claiborne" - e cujos direitos foram imediatamente
comprados pela Warner por 1,5 milhão de dólares. Com a escolha óbvia de
Bates para o papel central, o filme chegou às telas no primeiro
trimestre de 1995 sob a direção de Taylor Hackford e, apesar de não ter
feito barulho nas bilheterias, é uma produção digna de figurar ao lado
de outras grandes adaptações da obra de King que fogem de seu gênero
habitual - um panteão rarefeito onde também estão "Conta comigo" (86) e
"Um sonho de liberdade" (94). Com um perfeito equilíbrio entre o
suspense e o drama familiar, "Eclipse total" - um título nacional
surpreendentemente adequado - é uma pequena pérola muitas vezes
esquecida pelo público que consome avidamente qualquer produto que leve a
assinatura do escritor.
Hackford - ainda pouco
conhecido, apesar de "O sol da meia-noite" e "Paixões violentas", dois
relativos sucessos de bilheteria e crítica - demonstra total segurança
desde a instigante abertura, que mostra a protagonista sendo flagrada em
vias de assassinar a idosa milionária de quem vem cuidando há vinte
anos. A pequena cidade do Maine onde se passa essa impressionante cena
inicial dá lugar, então, à barulhenta e cosmopolita Nova York, onde a
jovem jornalista Selena St. George (Jennifer Jason Leigh) - que está
tentando convencer seu editor e ex-amante a dar-lhe a chance de cobrir
uma grande reportagem - recebe um fax avisando que sua mãe está presa,
acusada de assassinato. Logicamente sua mãe é a Dolores Claiborne do
título original (interpretada magistralmente por Kathy Bates), e Selena,
que não a visita há mais de duas décadas, parte para o interior com o
objetivo de ajudá-la. Neurótica e complicada, a jovem encontra em sua
mãe uma mulher amargurada e seca que nega terminantemente a culpa pela
morte de sua patroa, a irascível Vera Donovan (Judy Parfitt), mesmo
depois de ter sido pega em uma situação absolutamente comprometedora.
A
relação entre mãe e filha não é das melhores - e tal situação data da
misteriosa morte de Joe St. George (David Straithairn), acontecida
durante um eclipse do sol há muitos anos. Acusada na época - por Selena e
pelo detetive de polícia local, John Mackey (Christopher Plummer) - de
ter sido a responsável pela morte do marido (alcólatra, violento e
abusivo), Dolores saiu incólume da investigação, mas vê-se novamente sob
a lente de Mackey, que ainda não acredita na sua inocência. Enquanto
esperam pela data do inquérito, Dolores e Selena são obrigadas, então, a
uma convivência forçada que acaba trazendo à tona momentos dolorosos do
passado, que acabam por explicar toda a névoa que cobre as duas mortes
relacionadas à batalhadora empregada doméstica e os problemas
psicológicos de sua jovem e perturbada filha.
Não há
dúvidas de que a história de King é intrigante e prende a atenção do
início ao fim - e contém personagens fascinantes e bem construídos,
melhorados ainda pelo roteiro de Tony Gilroy, que depois se tornaria
cineasta - é dele o premiado "Conduta de risco", de 2007. Mas é a
direção certeira de Taylor Hackford que faz com que o filme atinja
níveis expressivos de qualidade dramática. Elegante e sutil, ele
consegue amenizar a violência da trama original sem trair suas origens
literárias e, para isso, conta com uma equipe primorosa - que inclui
Danny Elfman na trilha sonora - e atores espetaculares. Se Kathy Bates
comanda o show com seu arsenal inesgotável de nuances (Dolores consegue
ser subserviente, furiosa, triste, misteriosa e seca sempre que o
roteiro precisa), seus colegas de cena não ficam a dever. Tudo bem que
Jennifer Jason Leigh até escorrega no lugar-comum, com sua Selena está
sempre de preto, fumando compulsivamente, mas uma história de Stephen
King sem clichê ainda não existe e o restante do elenco compensa
lindamente esse pecadilho: David Straithairn cria um Joe St. George
asqueroso em suas falhas e crimes, Christopher Plummer explora com
sabedoria o caráter obcecado de seu John Mackey e Judy Parfitt... Bem,
na pele da patroa/amiga/vítima de Dolores, a atriz dá um banho de
interpretação, duelando de igual para igual com Bates, em cenas
inesquecíveis.
Menos conhecido do que merece, "Eclipse
total" é um belíssimo filme, que comprova a sensibilidade de Stephen
King em falar sobre pessoas mesmo quando elas não tem poderes
paranormais ou estão acossadas por demônios e alienígenas. Merece ser
descoberto por suas várias e fabulosas qualidades.
Filmes, filmes e mais filmes. De todos os gêneros, países, épocas e níveis de qualidade. Afinal, a sétima arte não tem esse nome à toa.
sábado
sexta-feira
NELL
NELL
(Nell, 1994, Egg Pictures/PolyGram Filmed Entertainment/20th Century
Fox, 112min ) Direção: Michael Apted. Roteiro: William Nicholson, Mark
Handley, peça teatral "Idioglossia", de Mark Handley. Fotografia: Dante
Spinotti. Montagem: Jim Clark. Música: Mark Isham. Figurino: Susan
Lyall. Direção de arte/cenários: Jon Hutman/Samara Hutman.Produção:
Jodie Foster, Renée Missel. Elenco: Jodie Foster, Liam Neeson, Natasha
Richardson, Richard Libertini, Nick Searcy, Jeremy Davies. Estreia:
14/12/94
Indicado ao Oscar de Melhor Atriz (Jodie Foster)
Em 1991, devido a problemas financeiros que acabaram acarretando em sua falência, a Carolco, um estúdio sem a proporção de uma Fox ou uma Paramount, se viu obrigado a escolher entre dois filmes para lançar no mercado: o escolhido foi "Mentes que brilham", estreia de Jodie Foster na direção, que colheu elogios unânimes da crítica e foi muito bem recebido pelo público. O segundo filme, "Céu azul", dirigido por Tony Richardson, só chegou às salas de cinema três anos depois e, por ironia do destino, esse atraso só lhe fez bem: não fosse ele era bem possível que seu Oscar de melhor atriz - concedido à excelente Jessica Lange - nunca tivesse acontecido, porque em 1992 a estatueta foi bem disputada entre Geena Davis e Susan Sarandon (ambas por "Thelma & Louise") e a própria Foster, que saiu-se vencedora por "O silêncio dos inocentes". Outra ironia suprema? A maior rival de Lange na cerimônia de 1995 era a mesma Jodie: no filme "Nell" ela entrega mais uma sublime interpretação na pele de uma jovem criada à margem da civilização e que é descoberta depois da morte da mãe. Por melhor atriz que Jessica Lange seja, ainda hoje é difícil engolir a escolha da Academia em premiá-la em detrimento de um trabalho tão impactante quanto o da ex-menina prodígio que tornou-se uma das mais premiadas estrelas de Hollywood unicamente graças a seu talento.
É inegável que o trabalho de Jodie Foster - que assina também como produtora e quase assumiu o papel de diretora antes que Michael Apted fosse contratado - é superior ao filme como um todo. Baseado em uma peça de teatro de Mark Handley (co-autor do roteiro), "Nell" não consegue escapar dos clichês nem tampouco de algumas incongruências e exageros que enfraquecem o resultado final e deixam nos ombros da atriz a responsabilidade de manter a verossimilhança e o interesse da plateia. Felizmente ela tem talento de sobra para construir uma personagem que, a despeito da fragilidade da trama, transborda humanidade e cativa a audiência sem precisar muito mais do que o trabalho corporal e facial - ambos de extraordinária competência e de delicadeza contrastante com a aparentemente durona Clarice Starling do filme que lhe deu o segundo Oscar.
A trama do filme é simples e direta: depois da morte da mãe, seu único elo com o mundo exterior, a jovem Nell (Foster, nunca aquém de genial em cena) é descoberta na cabana onde morou a vida inteira, escondida de tudo e de todos em uma floresta localizada perto de uma pequena cidade do interior. Se comunicando através de um idioma próprio e incapaz de manter contato social com qualquer desconhecido, ela aos poucos passa a mostrar-se afável com as duas pessoas que resolvem ajudá-la em sua transição rumo a uma nova vida: o doutor Jerome Lovell (Liam Neeson) e a psicóloga Paula Olsen (Natasha Richardson), que, apesar de suas boas intenções, desejam coisas diferentes a ela. Enquanto Lovell acredita que Nell pertence à floresta e a seu mundo particular, Paula insiste que ela deve ser "devolvida" à civilização. Esse impasse chega aos tribunais e a jovem - que tem um trágico passado ainda desconhecido pelos médicos - passa por três meses de observação para ter seu futuro definido.
Mais um exemplar dos "bons selvagens" retratados pelo cinema - mais notadamente em "O garoto selvagem" (70), de François Truffaut - Nell é uma personagem fascinante, ainda que não tenha sido desenvolvida de forma satisfatória pelo roteiro, por vezes mais preocupado com a disputa entre os dois especialistas do que em analisar de maneira mais profunda a psicologia da protagonista. Liam Neeson e Natasha Richardson estão bem em cena - foi durante as filmagens que eles se conheceram e se apaixonaram, em um casamento que durou até a precoce morte da atriz em um acidente de esqui em 2009 - mas não fazem mais do que pontuar com correção o show particular de Jodie Foster, e a busca de seus personagens pelas origens do isolamento de Nell nunca ultrapassa o convencional, privando o público de mais emoção. Ainda assim, é um filme feliz em suas opções, ao fugir do tradicional dramalhão - mesmo que, em seu clímax, apresente a típica cena de discurso que qualquer filme que ambicione um Oscar não tem medo de utilizar. É um belo filme - Michael Apted é um diretor competente e sabe como contar uma história - mas aquém de suas possibilidades. Salva-se Jodie e seu talento além de qualquer palavra.
Indicado ao Oscar de Melhor Atriz (Jodie Foster)
Em 1991, devido a problemas financeiros que acabaram acarretando em sua falência, a Carolco, um estúdio sem a proporção de uma Fox ou uma Paramount, se viu obrigado a escolher entre dois filmes para lançar no mercado: o escolhido foi "Mentes que brilham", estreia de Jodie Foster na direção, que colheu elogios unânimes da crítica e foi muito bem recebido pelo público. O segundo filme, "Céu azul", dirigido por Tony Richardson, só chegou às salas de cinema três anos depois e, por ironia do destino, esse atraso só lhe fez bem: não fosse ele era bem possível que seu Oscar de melhor atriz - concedido à excelente Jessica Lange - nunca tivesse acontecido, porque em 1992 a estatueta foi bem disputada entre Geena Davis e Susan Sarandon (ambas por "Thelma & Louise") e a própria Foster, que saiu-se vencedora por "O silêncio dos inocentes". Outra ironia suprema? A maior rival de Lange na cerimônia de 1995 era a mesma Jodie: no filme "Nell" ela entrega mais uma sublime interpretação na pele de uma jovem criada à margem da civilização e que é descoberta depois da morte da mãe. Por melhor atriz que Jessica Lange seja, ainda hoje é difícil engolir a escolha da Academia em premiá-la em detrimento de um trabalho tão impactante quanto o da ex-menina prodígio que tornou-se uma das mais premiadas estrelas de Hollywood unicamente graças a seu talento.
É inegável que o trabalho de Jodie Foster - que assina também como produtora e quase assumiu o papel de diretora antes que Michael Apted fosse contratado - é superior ao filme como um todo. Baseado em uma peça de teatro de Mark Handley (co-autor do roteiro), "Nell" não consegue escapar dos clichês nem tampouco de algumas incongruências e exageros que enfraquecem o resultado final e deixam nos ombros da atriz a responsabilidade de manter a verossimilhança e o interesse da plateia. Felizmente ela tem talento de sobra para construir uma personagem que, a despeito da fragilidade da trama, transborda humanidade e cativa a audiência sem precisar muito mais do que o trabalho corporal e facial - ambos de extraordinária competência e de delicadeza contrastante com a aparentemente durona Clarice Starling do filme que lhe deu o segundo Oscar.
A trama do filme é simples e direta: depois da morte da mãe, seu único elo com o mundo exterior, a jovem Nell (Foster, nunca aquém de genial em cena) é descoberta na cabana onde morou a vida inteira, escondida de tudo e de todos em uma floresta localizada perto de uma pequena cidade do interior. Se comunicando através de um idioma próprio e incapaz de manter contato social com qualquer desconhecido, ela aos poucos passa a mostrar-se afável com as duas pessoas que resolvem ajudá-la em sua transição rumo a uma nova vida: o doutor Jerome Lovell (Liam Neeson) e a psicóloga Paula Olsen (Natasha Richardson), que, apesar de suas boas intenções, desejam coisas diferentes a ela. Enquanto Lovell acredita que Nell pertence à floresta e a seu mundo particular, Paula insiste que ela deve ser "devolvida" à civilização. Esse impasse chega aos tribunais e a jovem - que tem um trágico passado ainda desconhecido pelos médicos - passa por três meses de observação para ter seu futuro definido.
Mais um exemplar dos "bons selvagens" retratados pelo cinema - mais notadamente em "O garoto selvagem" (70), de François Truffaut - Nell é uma personagem fascinante, ainda que não tenha sido desenvolvida de forma satisfatória pelo roteiro, por vezes mais preocupado com a disputa entre os dois especialistas do que em analisar de maneira mais profunda a psicologia da protagonista. Liam Neeson e Natasha Richardson estão bem em cena - foi durante as filmagens que eles se conheceram e se apaixonaram, em um casamento que durou até a precoce morte da atriz em um acidente de esqui em 2009 - mas não fazem mais do que pontuar com correção o show particular de Jodie Foster, e a busca de seus personagens pelas origens do isolamento de Nell nunca ultrapassa o convencional, privando o público de mais emoção. Ainda assim, é um filme feliz em suas opções, ao fugir do tradicional dramalhão - mesmo que, em seu clímax, apresente a típica cena de discurso que qualquer filme que ambicione um Oscar não tem medo de utilizar. É um belo filme - Michael Apted é um diretor competente e sabe como contar uma história - mas aquém de suas possibilidades. Salva-se Jodie e seu talento além de qualquer palavra.
quinta-feira
ADORÁVEIS MULHERES
ADORÁVEIS
MULHERES (Little women, 1994, Columbia Pictures Corporation, 115min)
Direção: Gillian Armstrong. Roteiro: Robin Swicord, romance de Louisa
May Alcott. Fotografia: Geoffrey Simpson. Montagem: Nicholas Beauman.
Música: Thomas Newman. Figurino: Colleen Atwood. Direção de
arte/cenários: Jan Roelfs/Jim Erickson. Produção: Denise Di Novi.
Elenco: Winona Ryder, Susan Sarandon, Gabriel Byrne, Trini Alvarado,
Kirsten Dunst, Claire Danes, Samantha Mathis, Christian Bale, Eric
Stoltz, John Neville, Donal Logue. Estreia: 21/12/94
3 indicações ao Oscar: Atriz (Winona Ryder), Trilha Sonora Original, Figurino
Só mesmo a safra fraquíssima de 1994 e a vontade sempre premente de Hollywood em fabricar novas estrelas justificam a indicação de Winona Ryder ao Oscar de melhor atriz por "Adoráveis mulheres", nova versão do clássico da literatura norte-americana, dessa vez sob o comando da australiana Gillian Armstrong: seu desempenho como Josephine, uma jovem pré-feminista que desafia as convenções de sua sociedade com o objetivo de vencer como escritora em um país saindo da Guerra de Secessão nunca ultrapassa o convencional e é frequentemente eclipsada por atuações bastante superiores do elenco coadjuvante - que inclui as novatas Claire Danes e Kirsten Dunst. Sem jamais imprimir a força necessária ao papel - que foi de Katharine Hepburn em uma versão realizada em 1933 por George Cukor - Ryder é, perigosamente, o elo mais fraco da produção, que também conquistou indicações ao Oscar pela bela trilha sonora de Thomas Newman e pelo caprichado figurino de Colleen Atwood.
Publicado pela primeira vez em 1868, o romance "Mulherzinhas", de Louisa May Alcott é um dos livros mais populares da literatura norte-americana, tendo recebido diversas adaptações para a tv e o cinema desde 1917, quando uma primeira versão chegou às telas, ainda na fase do cinema mudo. De sua publicação até o lançamento do filme de Armstrong se passou mais de um século, e era esperado que a cineasta australiana tirasse proveito dessa distância temporal - presumivelmente um benefício para análises mais isentas do papel da mulher na sociedade ianque - para realizar uma obra que destacasse a forte personalidade de sua protagonista em meio a um mundo dominado por homens. Não foi o que aconteceu. O roteiro de Robin Swicord, apesar do ritmo agradável, detém-se basicamente no melodrama familiar e romântico do livro, negando à personagem principal a potência que tem no romance. Somada à atuação mecânica de Ryder - fã confessa do livro - essa opção enfraquece o resultado final, deixando "Adoráveis mulheres" muito aquém de suas possibilidades.
As adoráveis mulheres do título são as integrantes femininas da família March, que, durante a Guerra de Secessão, fazem o possível para manter-se unidas e saudáveis, mesmo desfalcadas da presença paterna - que está no front - e das posses que tinham antes do início do conflito: a matriarca, (Susan Sarandon, pouco aproveitada e que foi rival de Winona na disputa pelo Oscar, por seu trabalho em "O cliente", de Joel Schumacher), e as quatro filhas, que além de tudo, tem também que adequar-se às regras sociais da época como forma de arrumar um bom casamento. A mais velha, Meg (Trini Alvarado) se interessa por John Brooke (Eric Stoltz), preceptor de seu vizinho, um homem bom mas não necessariamente rico. A segunda, Jo (Ryder), sonha em tornar-se escritora, tem ideais feministas - antes do advento do feminismo - e vive uma relação dúbia com o jovem Laurie (Christian Bale), que vive na casa ao lado, com o avô (John Neville). A terceira, Beth (Claire Danes) tem preocupações sociais e se dedica a cuidar daqueles que tem menos do que elas, até contrair escarlatina e ver sua saúde ficar seriamente ameaçada. E a caçula, Amy (Kirsten Dunst e Samantha Mathis em dois períodos distintos da trama), vive de sonhar acordada, esperando um bom marido para sair da pobreza.
Quando a segunda fase da história começa, Jo muda-se para a Inglaterra, onde pretende dar vazão a suas ideias modernas e sua veia de escritora. Justamente a partir daí, quando ela assume o posto de protagonista absoluta da trama é que o filme fica menos interessante. A luta de Jo pelos direitos femininos só é mostrada em uma única e rápida cena, onde ela mal consegue expor seu raciocínio: o roteiro opta por focar em sua relação com o professor alemão Friedrich Bhaer (Gabriel Byrne), uma história de amor prejudicada fatalmente pela falta de química entre os dois atores. A essa altura, o público já percebeu que o que interessa à Armstrong não é mostrar o crescimento pessoal de Jo, e sim os dramas de suas irmãs - e, justiça seja feita, nesse ponto ela não brinca em serviço. Com sutileza e cuidado, a cineasta até consegue emocionar a plateia, mas oferece a ela apenas um novelão romântico que nada acrescenta às versões anteriores do livro nas telas. Uma pena.
3 indicações ao Oscar: Atriz (Winona Ryder), Trilha Sonora Original, Figurino
Só mesmo a safra fraquíssima de 1994 e a vontade sempre premente de Hollywood em fabricar novas estrelas justificam a indicação de Winona Ryder ao Oscar de melhor atriz por "Adoráveis mulheres", nova versão do clássico da literatura norte-americana, dessa vez sob o comando da australiana Gillian Armstrong: seu desempenho como Josephine, uma jovem pré-feminista que desafia as convenções de sua sociedade com o objetivo de vencer como escritora em um país saindo da Guerra de Secessão nunca ultrapassa o convencional e é frequentemente eclipsada por atuações bastante superiores do elenco coadjuvante - que inclui as novatas Claire Danes e Kirsten Dunst. Sem jamais imprimir a força necessária ao papel - que foi de Katharine Hepburn em uma versão realizada em 1933 por George Cukor - Ryder é, perigosamente, o elo mais fraco da produção, que também conquistou indicações ao Oscar pela bela trilha sonora de Thomas Newman e pelo caprichado figurino de Colleen Atwood.
Publicado pela primeira vez em 1868, o romance "Mulherzinhas", de Louisa May Alcott é um dos livros mais populares da literatura norte-americana, tendo recebido diversas adaptações para a tv e o cinema desde 1917, quando uma primeira versão chegou às telas, ainda na fase do cinema mudo. De sua publicação até o lançamento do filme de Armstrong se passou mais de um século, e era esperado que a cineasta australiana tirasse proveito dessa distância temporal - presumivelmente um benefício para análises mais isentas do papel da mulher na sociedade ianque - para realizar uma obra que destacasse a forte personalidade de sua protagonista em meio a um mundo dominado por homens. Não foi o que aconteceu. O roteiro de Robin Swicord, apesar do ritmo agradável, detém-se basicamente no melodrama familiar e romântico do livro, negando à personagem principal a potência que tem no romance. Somada à atuação mecânica de Ryder - fã confessa do livro - essa opção enfraquece o resultado final, deixando "Adoráveis mulheres" muito aquém de suas possibilidades.
As adoráveis mulheres do título são as integrantes femininas da família March, que, durante a Guerra de Secessão, fazem o possível para manter-se unidas e saudáveis, mesmo desfalcadas da presença paterna - que está no front - e das posses que tinham antes do início do conflito: a matriarca, (Susan Sarandon, pouco aproveitada e que foi rival de Winona na disputa pelo Oscar, por seu trabalho em "O cliente", de Joel Schumacher), e as quatro filhas, que além de tudo, tem também que adequar-se às regras sociais da época como forma de arrumar um bom casamento. A mais velha, Meg (Trini Alvarado) se interessa por John Brooke (Eric Stoltz), preceptor de seu vizinho, um homem bom mas não necessariamente rico. A segunda, Jo (Ryder), sonha em tornar-se escritora, tem ideais feministas - antes do advento do feminismo - e vive uma relação dúbia com o jovem Laurie (Christian Bale), que vive na casa ao lado, com o avô (John Neville). A terceira, Beth (Claire Danes) tem preocupações sociais e se dedica a cuidar daqueles que tem menos do que elas, até contrair escarlatina e ver sua saúde ficar seriamente ameaçada. E a caçula, Amy (Kirsten Dunst e Samantha Mathis em dois períodos distintos da trama), vive de sonhar acordada, esperando um bom marido para sair da pobreza.
Quando a segunda fase da história começa, Jo muda-se para a Inglaterra, onde pretende dar vazão a suas ideias modernas e sua veia de escritora. Justamente a partir daí, quando ela assume o posto de protagonista absoluta da trama é que o filme fica menos interessante. A luta de Jo pelos direitos femininos só é mostrada em uma única e rápida cena, onde ela mal consegue expor seu raciocínio: o roteiro opta por focar em sua relação com o professor alemão Friedrich Bhaer (Gabriel Byrne), uma história de amor prejudicada fatalmente pela falta de química entre os dois atores. A essa altura, o público já percebeu que o que interessa à Armstrong não é mostrar o crescimento pessoal de Jo, e sim os dramas de suas irmãs - e, justiça seja feita, nesse ponto ela não brinca em serviço. Com sutileza e cuidado, a cineasta até consegue emocionar a plateia, mas oferece a ela apenas um novelão romântico que nada acrescenta às versões anteriores do livro nas telas. Uma pena.
quarta-feira
O RIO SELVAGEM
O
RIO SELVAGEM (The river wild, 1994, Universal Pictures, 108min )
Direção: Curtis Hanson. Roteiro: Denis O'Neill. Fotografia: Robert
Elswit. Montagem: David Brenner, Joe Hutsching. Música: Jerry Goldsmith.
Figurino: Marlene Stewart. Direção de arte/cenários: Bill Kenney/Rick
T. Gentz. Produção executiva: Ray Hartwick, Ilona Herzberg. Produção:
David Foster, Lawrence Turman. Elenco: Meryl Streep, Kevin Bacon, David
Straithairn, John C. Reilly, Joseph Mazzello, Benjamin Bratt. Estreia:
30/9/94
Em 1994 Meryl Streep já tinha dois Oscar em casa, já era considerada a melhor atriz de sua geração e servia de modelo para toda e qualquer jovem intérprete que surgia no cinema americano. Mas, em sua vitoriosa carreira, repleta de dramas dilacerantes e até comédias de humor negro, faltava um gênero que poucos conseguiam relacionar a ela: o filme de ação. Talvez para riscar esse item da lista, talvez porque quisesse divertir-se um pouco ou talvez porque realmente tenha gostado do roteiro, o fato é que "O rio selvagem" tornou-se conhecido como o filme em que a grande dama do cinema americano deixou as lágrimas de lado e partiu para a ignorância. O resultado não foi dos melhores: a crítica praticamente ignorou e o público não se demonstrou mais entusiasmado com a ideia de vê-la distante dos papéis que lhe deram fama e prestígio.
A culpa, no entanto, não é nem do público, nem da crítica e tampouco de Meryl, que está boa como sempre, exercitando seu conhecido perfeccionismo ao realizar quase todas as cenas perigosas solicitadas. O problema de "O rio selvagem" é sua demora em engrenar, seu ritmo claudicante. O roteiro de Denis O'Neil leva mais de uma hora para expor a situação central - e que irá deflagrar a ação - e depois parece não se esforçar em surpreender ou cativar o espectador, recheando sua história com clichês. Não seria problema se a intenção do filme fosse analisar a crise de um casamento ampliada por uma situação extrema ou simplesmente levar o público a uma montanha-russa ao estilo "Risco total", protagonizado por Sylvester Stallone em 1992. Acontece que a primeira opção não é verdadeira e não parece que a segunda também o seja: o drama familiar da personagem de Streep é quase oco (um desperdício de atores, já que seu marido é vivido pelo ótimo David Straithairn) e a adrenalina que poderia equilibrar a balança a favor do filme é rala, apesar de contar com cenas de grande competência técnica e de contar com um vilão convincente interpretado pelo sempre assustador Kevin Bacon.
Bacon e Streep, aliás, foram indicados ao Golden Globe por seus desempenhos - uma prova a mais do prestígio da atriz junto à critica, já que, além de mostrar-se capaz de atuar até mesmo em produções com nítidas intenções comerciais puras e simples, ela não chega a estar brilhante como normalmente está. No filme, ela interpreta Gail Hartman, uma dona-de-casa que abandonou a profissão de guia turística especializada nas correntezas do Rio Colorado para viver ao lado da família. Saudosa da antiga rotina, ela volta e meia retorna a águas perigosas, que conhece como ninguém. Para comemorar o aniversário do filho mais velho, Roarke (Joseph Mazzello, o menino do filme "Jurassic Park, parque dos dinossauros", de 1993), ela resolve acampar com ele e o marido, Tom (David Straithairn), com quem está em crise. A aventura torna-se extremamente perigosa, porém, quando eles esbarram em Wade (Kevin Bacon), um simpático turista que se revela, logo depois, o líder de um grupo de bandidos que precisa de ajuda para atravessar a fronteira do Canadá. Para isso, ele conta com o conhecimento de Gail.
"O rio selvagem" está longe de ser um filme ruim: tem muita gente boa envolvida para chegar a isso. Mas é apenas mais um filme de ação comum, sem maiores qualidades que o destaquem dos demais (a não ser, claro, a presença nada óbvia de Meryl Streep em seu elenco). Seu diretor, Curtis Hanson, faz um trabalho correto, assim com o fez em "A mão que balança o berço" (93), seu filme anterior, mas nada que fizesse antever o milagre realizado em 1997, quando lançou o sublime "Los Angeles, cidade proibida", que lhe rendeu uma indicação ao Oscar. Aqui, amarrado a um roteiro sem maiores novidades ou possibilidades, ele está burocrático e apático, assinando uma produção que pode até divertir, mas não deixa marcas no espectador.
Em 1994 Meryl Streep já tinha dois Oscar em casa, já era considerada a melhor atriz de sua geração e servia de modelo para toda e qualquer jovem intérprete que surgia no cinema americano. Mas, em sua vitoriosa carreira, repleta de dramas dilacerantes e até comédias de humor negro, faltava um gênero que poucos conseguiam relacionar a ela: o filme de ação. Talvez para riscar esse item da lista, talvez porque quisesse divertir-se um pouco ou talvez porque realmente tenha gostado do roteiro, o fato é que "O rio selvagem" tornou-se conhecido como o filme em que a grande dama do cinema americano deixou as lágrimas de lado e partiu para a ignorância. O resultado não foi dos melhores: a crítica praticamente ignorou e o público não se demonstrou mais entusiasmado com a ideia de vê-la distante dos papéis que lhe deram fama e prestígio.
A culpa, no entanto, não é nem do público, nem da crítica e tampouco de Meryl, que está boa como sempre, exercitando seu conhecido perfeccionismo ao realizar quase todas as cenas perigosas solicitadas. O problema de "O rio selvagem" é sua demora em engrenar, seu ritmo claudicante. O roteiro de Denis O'Neil leva mais de uma hora para expor a situação central - e que irá deflagrar a ação - e depois parece não se esforçar em surpreender ou cativar o espectador, recheando sua história com clichês. Não seria problema se a intenção do filme fosse analisar a crise de um casamento ampliada por uma situação extrema ou simplesmente levar o público a uma montanha-russa ao estilo "Risco total", protagonizado por Sylvester Stallone em 1992. Acontece que a primeira opção não é verdadeira e não parece que a segunda também o seja: o drama familiar da personagem de Streep é quase oco (um desperdício de atores, já que seu marido é vivido pelo ótimo David Straithairn) e a adrenalina que poderia equilibrar a balança a favor do filme é rala, apesar de contar com cenas de grande competência técnica e de contar com um vilão convincente interpretado pelo sempre assustador Kevin Bacon.
Bacon e Streep, aliás, foram indicados ao Golden Globe por seus desempenhos - uma prova a mais do prestígio da atriz junto à critica, já que, além de mostrar-se capaz de atuar até mesmo em produções com nítidas intenções comerciais puras e simples, ela não chega a estar brilhante como normalmente está. No filme, ela interpreta Gail Hartman, uma dona-de-casa que abandonou a profissão de guia turística especializada nas correntezas do Rio Colorado para viver ao lado da família. Saudosa da antiga rotina, ela volta e meia retorna a águas perigosas, que conhece como ninguém. Para comemorar o aniversário do filho mais velho, Roarke (Joseph Mazzello, o menino do filme "Jurassic Park, parque dos dinossauros", de 1993), ela resolve acampar com ele e o marido, Tom (David Straithairn), com quem está em crise. A aventura torna-se extremamente perigosa, porém, quando eles esbarram em Wade (Kevin Bacon), um simpático turista que se revela, logo depois, o líder de um grupo de bandidos que precisa de ajuda para atravessar a fronteira do Canadá. Para isso, ele conta com o conhecimento de Gail.
"O rio selvagem" está longe de ser um filme ruim: tem muita gente boa envolvida para chegar a isso. Mas é apenas mais um filme de ação comum, sem maiores qualidades que o destaquem dos demais (a não ser, claro, a presença nada óbvia de Meryl Streep em seu elenco). Seu diretor, Curtis Hanson, faz um trabalho correto, assim com o fez em "A mão que balança o berço" (93), seu filme anterior, mas nada que fizesse antever o milagre realizado em 1997, quando lançou o sublime "Los Angeles, cidade proibida", que lhe rendeu uma indicação ao Oscar. Aqui, amarrado a um roteiro sem maiores novidades ou possibilidades, ele está burocrático e apático, assinando uma produção que pode até divertir, mas não deixa marcas no espectador.
terça-feira
TESTEMUNHA DO SILÊNCIO
TESTEMUNHA
DO SILÊNCIO (Silent fall, 1994, Warner Bros, 101min) Direção: Bruce
Beresford. Roteiro: Akiva Goldsman. Fotografia: Peter James. Montagem:
Ian Crafford. Música: Stewart Copeland. Figurino: Colleen Kelsall.
Direção de arte/cenários: John Stoddart/Patty Malone. Produção
executiva: Gary Barber. Produção: James G. Robinson. Elenco: Richard
Dreyfuss, Linda Hamilton, Liv Tyler, J.T. Walsh, John Lithgow, Ben
Faulkner. Estreia: 28/10/94
Um dos atores mais populares da segunda metade dos anos 70 - quando protagonizou "Tubarão" (75) e "Contatos imediatos de terceiro grau" (77) e foi o mais jovem vencedor do Oscar na categoria principal até então, por "A garota do adeus" (77) - Richard Dreyfuss não teve a mesma sorte nas décadas seguintes, equilibrando bons filmes de más bilheterias ("Querem me enlouquecer", com Barbra Streisand, de 87 e "Além da eternidade", de Steven Spielberg, de 89, por exemplo), filmes agradáveis que fizeram sucesso de público ("Tocaia", de 1987 e "Nosso querido Bob", de 1991) e produções francamente ruins, que não chegavam nem perto de explorar todo o seu talento (a continuação de "Tocaia", lançada em 1993). Infelizmente, antes de tentar uma volta por cima com a indicação merecida ao Oscar de melhor ator por "Mr. Holland, adorável professor" (95), ele acrescentou mais um filme desnecessário à sua carreira. Com uma trama instigante e uma lista de créditos excitante - o cineasta Bruce Beresford, a atriz Linda Hamilton e a beldade Liv Tyler estreando no cinema - "Testemunha do silêncio" acabou decepcionando o público, a crítica e a Warner, que empatou 30 milhões de dólares em uma produção que não recuperou nem 10% do orçamento. E o pior é que a culpa nem é de Dreyfuss.
Por mais que esteja quase no piloto automático em sua atuação, Dreyfuss não pode ser responsabilizado pelo fracasso de "Testemunha de silêncio", dirigido de forma burocrática e sem emoção por Beresford - que sintomaticamente, cinco anos antes, viu seu "Conduzindo Miss Daisy" levar o Oscar de melhor filme sem que ele ao menos tivesse sido indicado. Seu personagem, o terapeuta infantil Jake Rainer, especializado em autismo infantil e traumatizado com o suicídio de um paciente em seu centro de tratamento, poderia ser rico em nuances, mas o roteiro de Akiva Goldsman - que oito anos depois também seria premiado pela Academia por "Uma mente brilhante" - parece não ter interesse em desenvolver a complexidade de seu protagonista, ilustrando seu drama com uma ou duas cenas ligeiras e alguns poucos diálogos com a esposa Karen (Linda Hamilton, subaproveitada ao máximo). O foco da trama - interessante, mas igualmente desenvolvido de forma capenga e quase inverossímil - é uma investigação policial na qual ele é envolvido a contragosto e que vai acabar por fazê-lo rever sua decisão de abandonar a medicina.
O filme começa quando Rainer é chamado pelo xerife Mitch Rivers (J.T. Walsh) - com quem tem uma antiga relação de amizade - à cena de um brutal assassinato ocorrido na pequena cidade onde vive. A princípio o médico não entende os motivos que o levaram a ser convocado à propriedade onde um casal de classe média alta foi violentamente atacado a facadas em seu quarto, mas a razão logo surge quando ele encontra o filho caçula do casal, Tim (o ótimo Ben Faulkner), coberto de sangue, com uma faca nas mãos e falando coisas desconexas. Fica claro que o menino é autista e testemunhou o crime, mas não é do interesse de Rainer fazer parte das investigações até que a bela Sylvie (Liv Tyler), filha mais velha das vítimas implora que ele os ajude. Percebendo que, caso se recuse a colaborar com seu tratamento à base de psicologia infantil o pequeno Tim cairá nas mãos de outro médico (John Lithgow), bem mais afeito a drogas do que a conversas, ele aceita o desafio. No meio do caminho, pistas e revelações levam a polícia para inúmeros caminhos na busca pelo assassino.
A história de "Testemunha do silêncio" é interessante, e o desfecho poderia surpreender, caso tudo não corresse de forma tão preguiçosa. O roteiro, como afirmado anteriormente, desperdiça a chance de equilibrar um filme policial tenso com um drama médico eficiente ao optar sempre pelas soluções mais fáceis - e menos críveis. A direção é fria e quadrada, sem buscar em seu elenco de bons atores - Dreyfuss, Hamilton, Lithgow - interpretações mais do que corretas. E, se o pequeno Ben Faulkner dá show vivendo o atormentado Tim, o mesmo não pode ser dito de Liv Tyler, que estreava no cinema na pele de sua irmã mais velha, Sylvie. Vinda do mundo do rock - é filha do vocalista da banda Aerosmith, Steven Tyler, e havia estrelado o videoclipe "Crazy", da banda do papai, ao lado da atriz Alicia Silverstone - Liv mostrou que realmente era uma mulher deslumbrante, mas desprovida de talento dramático em um papel-chave para a trama. Felizmente, com o tempo, ela melhorou bastante e hoje é uma atriz relativamente competente. Mas, diante de tantos erros cometidos por "Testemunha do silêncio" sua apatia fica ainda mais gritante. Uma pena.
Um dos atores mais populares da segunda metade dos anos 70 - quando protagonizou "Tubarão" (75) e "Contatos imediatos de terceiro grau" (77) e foi o mais jovem vencedor do Oscar na categoria principal até então, por "A garota do adeus" (77) - Richard Dreyfuss não teve a mesma sorte nas décadas seguintes, equilibrando bons filmes de más bilheterias ("Querem me enlouquecer", com Barbra Streisand, de 87 e "Além da eternidade", de Steven Spielberg, de 89, por exemplo), filmes agradáveis que fizeram sucesso de público ("Tocaia", de 1987 e "Nosso querido Bob", de 1991) e produções francamente ruins, que não chegavam nem perto de explorar todo o seu talento (a continuação de "Tocaia", lançada em 1993). Infelizmente, antes de tentar uma volta por cima com a indicação merecida ao Oscar de melhor ator por "Mr. Holland, adorável professor" (95), ele acrescentou mais um filme desnecessário à sua carreira. Com uma trama instigante e uma lista de créditos excitante - o cineasta Bruce Beresford, a atriz Linda Hamilton e a beldade Liv Tyler estreando no cinema - "Testemunha do silêncio" acabou decepcionando o público, a crítica e a Warner, que empatou 30 milhões de dólares em uma produção que não recuperou nem 10% do orçamento. E o pior é que a culpa nem é de Dreyfuss.
Por mais que esteja quase no piloto automático em sua atuação, Dreyfuss não pode ser responsabilizado pelo fracasso de "Testemunha de silêncio", dirigido de forma burocrática e sem emoção por Beresford - que sintomaticamente, cinco anos antes, viu seu "Conduzindo Miss Daisy" levar o Oscar de melhor filme sem que ele ao menos tivesse sido indicado. Seu personagem, o terapeuta infantil Jake Rainer, especializado em autismo infantil e traumatizado com o suicídio de um paciente em seu centro de tratamento, poderia ser rico em nuances, mas o roteiro de Akiva Goldsman - que oito anos depois também seria premiado pela Academia por "Uma mente brilhante" - parece não ter interesse em desenvolver a complexidade de seu protagonista, ilustrando seu drama com uma ou duas cenas ligeiras e alguns poucos diálogos com a esposa Karen (Linda Hamilton, subaproveitada ao máximo). O foco da trama - interessante, mas igualmente desenvolvido de forma capenga e quase inverossímil - é uma investigação policial na qual ele é envolvido a contragosto e que vai acabar por fazê-lo rever sua decisão de abandonar a medicina.
O filme começa quando Rainer é chamado pelo xerife Mitch Rivers (J.T. Walsh) - com quem tem uma antiga relação de amizade - à cena de um brutal assassinato ocorrido na pequena cidade onde vive. A princípio o médico não entende os motivos que o levaram a ser convocado à propriedade onde um casal de classe média alta foi violentamente atacado a facadas em seu quarto, mas a razão logo surge quando ele encontra o filho caçula do casal, Tim (o ótimo Ben Faulkner), coberto de sangue, com uma faca nas mãos e falando coisas desconexas. Fica claro que o menino é autista e testemunhou o crime, mas não é do interesse de Rainer fazer parte das investigações até que a bela Sylvie (Liv Tyler), filha mais velha das vítimas implora que ele os ajude. Percebendo que, caso se recuse a colaborar com seu tratamento à base de psicologia infantil o pequeno Tim cairá nas mãos de outro médico (John Lithgow), bem mais afeito a drogas do que a conversas, ele aceita o desafio. No meio do caminho, pistas e revelações levam a polícia para inúmeros caminhos na busca pelo assassino.
A história de "Testemunha do silêncio" é interessante, e o desfecho poderia surpreender, caso tudo não corresse de forma tão preguiçosa. O roteiro, como afirmado anteriormente, desperdiça a chance de equilibrar um filme policial tenso com um drama médico eficiente ao optar sempre pelas soluções mais fáceis - e menos críveis. A direção é fria e quadrada, sem buscar em seu elenco de bons atores - Dreyfuss, Hamilton, Lithgow - interpretações mais do que corretas. E, se o pequeno Ben Faulkner dá show vivendo o atormentado Tim, o mesmo não pode ser dito de Liv Tyler, que estreava no cinema na pele de sua irmã mais velha, Sylvie. Vinda do mundo do rock - é filha do vocalista da banda Aerosmith, Steven Tyler, e havia estrelado o videoclipe "Crazy", da banda do papai, ao lado da atriz Alicia Silverstone - Liv mostrou que realmente era uma mulher deslumbrante, mas desprovida de talento dramático em um papel-chave para a trama. Felizmente, com o tempo, ela melhorou bastante e hoje é uma atriz relativamente competente. Mas, diante de tantos erros cometidos por "Testemunha do silêncio" sua apatia fica ainda mais gritante. Uma pena.
segunda-feira
QUIZ SHOW - A VERDADE DOS BASTIDORES
QUIZ
SHOW, A VERDADE DOS BASTIDORES (Quiz show, 1994, Hollywood
Pictures/Baltimore Pictures, 133min) Direção: Robert Redford. Roteiro:
Paul Attanasio, livro "Remembering America: a voice from the sixties",
de Richard N. Goodwin. Fotografia: Michael Ballhaus. Montagem: Stu
Linder. Música: Mark Isham. Figurino: Kathy O'Rear. Direção de
arte/cenários: Jon Huttman/Samara Schaffer. Produção executiva: Richard
Dreyfuss, Judith James, Frederick Zollo. Produção: Michael Jacobs,
Julian Krainin, Michael Zonik, Robert Redford. Elenco: Ralph Fiennes,
Rob Morrow, John Turturro, Paul Scofield, Christopher McDonald, David
Paymer, Hank Azaria, Mira Sorvino, Griffin Dunne, Martin Scorsese, Barry
Levinson. Estreia: 23/9/94
4 indicações ao Oscar: Melhor Filme, Diretor (Robert Redford), Ator Coadjuvante (Paul Scofield), Roteiro Adaptado
O ano é 1958. Um dos mais populares programas de TV dos EUA, apresentado pela NBC, é o game-show "Twenty-one", apresentando por Jack Barry (Christopher McDonald), onde dois candidatos duelam pela possibilidade de ganhar até 100 mil dólares respondendo a perguntas de conhecimento geral. Percebendo que o campeão das últimas semanas, Herbie Stempel (John Turturro) já não tem mais a resposta entusiasmada da plateia (a audiência estancou e parece que não há jeito de voltar a subir), os patrocinadores do programa resolvem retirá-lo do show e substituí-lo por alguém mais palatável ao gosto médio. Stempel, um judeu do Queens sem formação acadêmica e de aparência pouco admirável, acaba sendo deixado de lado por Charles Van Doren (Ralph Fiennes), um professor universitário de considerável herança intelectual - e dono de uma beleza que passa a encantar as mulheres. Enquanto Van Doren começa a acumular uma bela fortuna saindo vencedor dos programas de que participa, o antigo concorrente, sentindo-se traído pela produção da emissora, resolve expor a rede de mentiras que se passa nos bastidores. Segundo ele, os participantes escolhidos como os vencedores já recebem todas as respostas antes do início da atração, como forma de garantir sua vitória. Suas acusações chegam até os ouvidos de Dick Goodwin (Rob Morrow), um jovem idealista e ambicioso que trabalha no Congresso Americano, que resolve tirá-las a limpo.
Esse escândalo de manipulação da mídia - fato hoje tão corriqueiro que nem chega mais a ser notícia - ocorreu de verdade e foi o tema do livro "Remembering America: a voice from the sixties", escrito pelo próprio Goodwin e serviu de base para o quarto filme do ator Robert Redford como cineasta, "Quiz show, a verdade dos bastidores". Indicado para quatro estatuetas da Academia - incluindo melhor filme, direção e roteiro - o filme é uma reconstituição sóbria e clássica de um período americano anterior ao pesadelo em que o país mergulharia com o assassinato de John Kennedy em 1963, que traria a reboque a guerra do Vietnã e o recrudescimento dos conflitos raciais. A perda da inocência que estava em vias de ocorrer talvez tenha se deixado vislumbrar com a história do "Twenty-one", parece dizer Redford, que nem por isso parece julgar os fatos que apresenta. Como bom cineasta contador de histórias, ele apenas serve como narrador, deixando as conclusões - e as opiniões - com o público.
E Redford talvez nunca tenha estado melhor como cineasta do que em "Quiz show". Amparado por um roteiro seguro e repleto de nuances sociais e psicológicas - o filme engloba tanto os meandros das emissoras de tv quanto os dramas pessoais dos envolvidos com a tramoia - ele também tira de seus atores interpretações viscerais: Ralph Fiennes - vindo direto da indicação ao Oscar por "A lista de Schindler" (93) - constroi um Charles Van Doren minimalista, sutil, que fala com os olhos e transmite sua variada gama de sentimentos sem precisar apelar para o óbvio (assim como o faz também o veterano Paul Scofield na pele de seu pai, uma atuação que colocou-o na lista dos concorrentes à estatueta de coadjuvante), enquanto John Turturro brilha na pele do exagerado, falastrão e dramático Herbie Stempel: o contraste entre as duas atuações é um golpe de mestre do diretor, que deixa claro ao público as motivações dos competidores. Van Doren sucumbiu à fama, à glória e até mesmo à ingenuidade de achar que sua vitória ajudaria na educação do país. Stemple precisava de dinheiro, de atenção, de ter o reconhecimento por sua cultura. Ambos caíram em desgraça.
Realizado com capricho - a ambientação e os figurinos são impecáveis - e dirigido com elegância e discrição, "Quiz show" chegou ao Oscar 95 enfrentando pesos-pesados como "Forrest Gump, o contador de histórias" e "Pulp fiction, tempo de violência", o que talvez explique o fato de ter saído de mãos abanando da cerimônia. Mas também é bem possível que os eleitores da Academia não tenham gostado de perceber o quanto podem ser manipulados pela mídia. A verdade doi, mesmo que venha embrulhada em um belo e fascinante papel de presente.
4 indicações ao Oscar: Melhor Filme, Diretor (Robert Redford), Ator Coadjuvante (Paul Scofield), Roteiro Adaptado
O ano é 1958. Um dos mais populares programas de TV dos EUA, apresentado pela NBC, é o game-show "Twenty-one", apresentando por Jack Barry (Christopher McDonald), onde dois candidatos duelam pela possibilidade de ganhar até 100 mil dólares respondendo a perguntas de conhecimento geral. Percebendo que o campeão das últimas semanas, Herbie Stempel (John Turturro) já não tem mais a resposta entusiasmada da plateia (a audiência estancou e parece que não há jeito de voltar a subir), os patrocinadores do programa resolvem retirá-lo do show e substituí-lo por alguém mais palatável ao gosto médio. Stempel, um judeu do Queens sem formação acadêmica e de aparência pouco admirável, acaba sendo deixado de lado por Charles Van Doren (Ralph Fiennes), um professor universitário de considerável herança intelectual - e dono de uma beleza que passa a encantar as mulheres. Enquanto Van Doren começa a acumular uma bela fortuna saindo vencedor dos programas de que participa, o antigo concorrente, sentindo-se traído pela produção da emissora, resolve expor a rede de mentiras que se passa nos bastidores. Segundo ele, os participantes escolhidos como os vencedores já recebem todas as respostas antes do início da atração, como forma de garantir sua vitória. Suas acusações chegam até os ouvidos de Dick Goodwin (Rob Morrow), um jovem idealista e ambicioso que trabalha no Congresso Americano, que resolve tirá-las a limpo.
Esse escândalo de manipulação da mídia - fato hoje tão corriqueiro que nem chega mais a ser notícia - ocorreu de verdade e foi o tema do livro "Remembering America: a voice from the sixties", escrito pelo próprio Goodwin e serviu de base para o quarto filme do ator Robert Redford como cineasta, "Quiz show, a verdade dos bastidores". Indicado para quatro estatuetas da Academia - incluindo melhor filme, direção e roteiro - o filme é uma reconstituição sóbria e clássica de um período americano anterior ao pesadelo em que o país mergulharia com o assassinato de John Kennedy em 1963, que traria a reboque a guerra do Vietnã e o recrudescimento dos conflitos raciais. A perda da inocência que estava em vias de ocorrer talvez tenha se deixado vislumbrar com a história do "Twenty-one", parece dizer Redford, que nem por isso parece julgar os fatos que apresenta. Como bom cineasta contador de histórias, ele apenas serve como narrador, deixando as conclusões - e as opiniões - com o público.
E Redford talvez nunca tenha estado melhor como cineasta do que em "Quiz show". Amparado por um roteiro seguro e repleto de nuances sociais e psicológicas - o filme engloba tanto os meandros das emissoras de tv quanto os dramas pessoais dos envolvidos com a tramoia - ele também tira de seus atores interpretações viscerais: Ralph Fiennes - vindo direto da indicação ao Oscar por "A lista de Schindler" (93) - constroi um Charles Van Doren minimalista, sutil, que fala com os olhos e transmite sua variada gama de sentimentos sem precisar apelar para o óbvio (assim como o faz também o veterano Paul Scofield na pele de seu pai, uma atuação que colocou-o na lista dos concorrentes à estatueta de coadjuvante), enquanto John Turturro brilha na pele do exagerado, falastrão e dramático Herbie Stempel: o contraste entre as duas atuações é um golpe de mestre do diretor, que deixa claro ao público as motivações dos competidores. Van Doren sucumbiu à fama, à glória e até mesmo à ingenuidade de achar que sua vitória ajudaria na educação do país. Stemple precisava de dinheiro, de atenção, de ter o reconhecimento por sua cultura. Ambos caíram em desgraça.
Realizado com capricho - a ambientação e os figurinos são impecáveis - e dirigido com elegância e discrição, "Quiz show" chegou ao Oscar 95 enfrentando pesos-pesados como "Forrest Gump, o contador de histórias" e "Pulp fiction, tempo de violência", o que talvez explique o fato de ter saído de mãos abanando da cerimônia. Mas também é bem possível que os eleitores da Academia não tenham gostado de perceber o quanto podem ser manipulados pela mídia. A verdade doi, mesmo que venha embrulhada em um belo e fascinante papel de presente.
domingo
ONLY YOU
ONLY
YOU (Only you, 1994, TriStarPictures, 108min) Direção: Norman Jewison.
Roteiro: Diane Drake. Fotografia: Sven Nykvist. Montagem: Stephen
Rivkin. Música: Rachel Portman. Figurino: Milena Canonero. Direção de
arte/cenários: Luciana Arrighi/Ian Whittaker. Produção: Robert N. Fried,
Norman Jewison, Charles Mulvehill, Cary Woods. Elenco: Marisa Tomei,
Robert Downey Jr., Bonnie Hunt, Joaquim de Almeida, Fisher Stevens,
Billy Zane, John Benjamin Hickey. Estreia: 17/9/94 (Festival de Toronto)
Quando ganhou o inesperado Oscar de atriz coadjuvante por seu desempenho em "Meu primo Vinny" (92), Marisa Tomei ganhou junto a incômoda missão de provar que seu prêmio não havia sido mais um dos inúmeros enganos acumulados pela Academia em seu histórico de erros. Filmes como o fraco "Coração indomável" (93) e o esquecível "O jornal" (94) não ajudaram nesse sentido, mas é inegável que o simpático "Only you", dirigido pelo veterano Norman Jewison foi o mais perto que ela chegou, nos anos 90, de comprovar seu talento para a leveza das comédias românticas. Usando de muitos elementos clássicos, flertando com obras icônicas do gênero, como "A princesa e o plebeu" - além de uma citação direta de "Casablanca" (43) - e tendo as belezas da Itália como cenário, o filme não chegou a ser um sucesso de bilheteria, mas conquista a plateia pela simpatia do elenco e pelo roteiro, com reviravoltas em número suficiente para manter a atenção até o último minuto.
Sendo nada mais do que uma simples comédia, "Only you" não pretende oferecer mais do que um simples e divertido entretenimento, mas entrega ao espectador quase duas horas de um romantismo derramado, ilustrado pela fotografia do mestre Sven Nykvist - colaborador habitual de Ingmar Bergman e Woody Allen - e pontuado pela discreta trilha sonora de Rachel Portman. Polvilhando seu roteiro com tiradas de um humor sutil, Diane Drake construiu uma trama capaz de conquistar até mesmo o mais ferrenho detrator do gênero, especialmente por não deter-se na eterna fórmula do "moça encontra rapaz, se apaixona e luta por seu amor até o final feliz". Ok, alguns desses elementos estão presentes na história, mas tão bem misturados que é difícil resistir. Senão, vejamos: desde criança a professora Faith (Marisa Tomei, encantadora) ouve o mesmo nome quando procura saber, via meios sobrenaturais, quem é sua alma gêmea. Em uma brincadeira na tábua dos mortos com o irmão, Damon Bradley surge pela primeira vez. Alguns anos depois, uma cigana de parque de diversões reitera a informação, deixando a adolescente obcecada com esse desconhecido que promete ser seu grande amor.
Já adulta, Faith está de casamento marcado e aparentemente feliz quando, ao atender o telefone do noivo, ouve do outro lado da linha o nome de sua cara-metade: excitada, ela ignora o fato de Bradley estar de viagem para Veneza e, com a companhia da cunhada, Kate (Bonnie Hunt) - que está passando por uma fase infeliz no casamento - pega o primeiro avião para a Itália. Depois de inúmeros desencontros, ela finalmente dá de cara com o rapaz, um morador de Nova York que está na Europa a serviço (Robert Downey Jr.). Bonito, sedutor e romântico, ele é o sonho encarnado, e Faith está resolvida a cancelar o casamento e apostar em uma vida ao lado de seu novo grande amor quando descobre que as coisas não são exatamente como ela esperava.
Um dos maiores méritos de "Only you" é sua capacidade de surpreender o público, levando-o para várias direções antes de finalmente dar sua história por encerrada. Brincando com o mito do do homem mediterrâneo através do flerte de Kate com o sedutor Giovanni (Joaquim de Almeida) e com a obsessão feminina pela busca do amor romântico, o filme de Norman Jewison - também autor do delicioso "Feitiço da lua" (87) - é uma divertida viagem pelos meandros do destino guiada por uma dupla central atraente e de excelente química. Tomei, que anos mais tarde voltaria a ser levada a sério como atriz, com mais duas indicações ao Oscar - por "Entre quatro paredes" (01) e "O lutador" (08) - não foi um erro da Academia. Ela sempre foi uma atriz deliciosa de se assistir.
Quando ganhou o inesperado Oscar de atriz coadjuvante por seu desempenho em "Meu primo Vinny" (92), Marisa Tomei ganhou junto a incômoda missão de provar que seu prêmio não havia sido mais um dos inúmeros enganos acumulados pela Academia em seu histórico de erros. Filmes como o fraco "Coração indomável" (93) e o esquecível "O jornal" (94) não ajudaram nesse sentido, mas é inegável que o simpático "Only you", dirigido pelo veterano Norman Jewison foi o mais perto que ela chegou, nos anos 90, de comprovar seu talento para a leveza das comédias românticas. Usando de muitos elementos clássicos, flertando com obras icônicas do gênero, como "A princesa e o plebeu" - além de uma citação direta de "Casablanca" (43) - e tendo as belezas da Itália como cenário, o filme não chegou a ser um sucesso de bilheteria, mas conquista a plateia pela simpatia do elenco e pelo roteiro, com reviravoltas em número suficiente para manter a atenção até o último minuto.
Sendo nada mais do que uma simples comédia, "Only you" não pretende oferecer mais do que um simples e divertido entretenimento, mas entrega ao espectador quase duas horas de um romantismo derramado, ilustrado pela fotografia do mestre Sven Nykvist - colaborador habitual de Ingmar Bergman e Woody Allen - e pontuado pela discreta trilha sonora de Rachel Portman. Polvilhando seu roteiro com tiradas de um humor sutil, Diane Drake construiu uma trama capaz de conquistar até mesmo o mais ferrenho detrator do gênero, especialmente por não deter-se na eterna fórmula do "moça encontra rapaz, se apaixona e luta por seu amor até o final feliz". Ok, alguns desses elementos estão presentes na história, mas tão bem misturados que é difícil resistir. Senão, vejamos: desde criança a professora Faith (Marisa Tomei, encantadora) ouve o mesmo nome quando procura saber, via meios sobrenaturais, quem é sua alma gêmea. Em uma brincadeira na tábua dos mortos com o irmão, Damon Bradley surge pela primeira vez. Alguns anos depois, uma cigana de parque de diversões reitera a informação, deixando a adolescente obcecada com esse desconhecido que promete ser seu grande amor.
Já adulta, Faith está de casamento marcado e aparentemente feliz quando, ao atender o telefone do noivo, ouve do outro lado da linha o nome de sua cara-metade: excitada, ela ignora o fato de Bradley estar de viagem para Veneza e, com a companhia da cunhada, Kate (Bonnie Hunt) - que está passando por uma fase infeliz no casamento - pega o primeiro avião para a Itália. Depois de inúmeros desencontros, ela finalmente dá de cara com o rapaz, um morador de Nova York que está na Europa a serviço (Robert Downey Jr.). Bonito, sedutor e romântico, ele é o sonho encarnado, e Faith está resolvida a cancelar o casamento e apostar em uma vida ao lado de seu novo grande amor quando descobre que as coisas não são exatamente como ela esperava.
Um dos maiores méritos de "Only you" é sua capacidade de surpreender o público, levando-o para várias direções antes de finalmente dar sua história por encerrada. Brincando com o mito do do homem mediterrâneo através do flerte de Kate com o sedutor Giovanni (Joaquim de Almeida) e com a obsessão feminina pela busca do amor romântico, o filme de Norman Jewison - também autor do delicioso "Feitiço da lua" (87) - é uma divertida viagem pelos meandros do destino guiada por uma dupla central atraente e de excelente química. Tomei, que anos mais tarde voltaria a ser levada a sério como atriz, com mais duas indicações ao Oscar - por "Entre quatro paredes" (01) e "O lutador" (08) - não foi um erro da Academia. Ela sempre foi uma atriz deliciosa de se assistir.
sábado
O PROFISSIONAL
O
PROFISSIONAL (The professional/Leon, 1994, Gaumont Pictures, 110min)
Direção e roteiro: Luc Besson. Fotografia: Thierry Arbogast. Montagem:
Sylvie Landra. Música: Eric Serra. Figurino: Magali Guidasci. Direção de
arte/cenários: Dan Weill/Françoise Benoit Fresco. Produção executiva:
Claude Besson. Elenco: Jean Reno, Gary Oldman, Natalie Portman, Danny
Aiello. Estreia: 14/9/94
Alguns filmes marcam a vida do espectador por sua mensagem, outros por sua história e ainda outros pela forma narrativa que adotam. Em alguns casos, porém, o que fica na memória da plateia e faz uma produção tornar-se especial é uma característica única. É o caso de "O profissional", lançado em 1994 e que hoje é menos lembrado por sua história ou por outros detalhes narrativos e mais por ter sido o filme que lançou a carreira de uma das atrizes mais importantes de sua geração, Natalie Portman. O alvoroço em torno da estreia de Portman foi tanto e tão merecido que o principal ponto de venda da obra na época - era o primeiro trabalho do cineasta francês Luc Besson em Hollywood - ficou quase totalmente eclipsado. Não é pra menos: como uma lolita pós-moderna, decidida e vingativa (ainda que sensível nos momentos certos), a jovem que tinha apenas 11 anos quando foi escolhida pelo diretor, roubou a cena de ninguém menos que Jean Reno (astro na França e começando uma popular carreira nos EUA) e o mestre Gary Oldman.
Um dos diretores franceses mais respeitados na indústria americana - a ponto de ter recebido a discutível homenagem de ver seu sucesso de bilheteria "Nikita, criada para matar" (90) ser refilmado sob o título de "A assassina" (92), com Bridget Fonda - Besson estava com tudo pronto para fazer sua estreia em Hollywood com a superprodução "O quinto elemento", uma ficção científica cara e ambiciosa que seria estrelada por Bruce Willis e Gary Oldman para a Columbia Pictures. A agenda de Willis, sempre apertada, acabou adiando as filmagens, mas o cineasta, para não perder o ritmo criativo, escreveu, em cerca de 30 dias, o roteiro de um filme policial inspirado em um dos coadjuvantes de "Nikita". Ainda com Oldman no elenco, ele chamou seu amigo Jean Reno - que fazia o tal personagem inspirador do protagonista no filme anterior - e escolheu a jovem Portman para viver a protagonista feminina. Com um custo consideravelmente mais baixo, sem o apoio da Columbia e com um prazo de filmagens de 90 dias, ele realizou então um dos pontos mais altos de sua filmografia - enquanto "O quinto elemento", lançado apenas quatro anos mais tarde, decepcionou a gregos e troianos.
O profissional do titulo internacional - na frança ele chamou-se apenas "Léon" - é Leone Montana, um matador de aluguel que é, segundo seu intermediário Tony (Danny Aiello), o melhor dentre todos. Vivendo sozinho em um pequeno apartamento de Nova York, ele leva uma vida simples e discreta, sem amigos, sem relacionamentos e sem vida social. Sua bolha de isolamento é rompida quando ele conhece Mathilda (Natalie Portman, esbanjando talento), uma menina de 12 anos que testemunha toda a sua família ser chacinada violentamente por Stansfield (Gary Oldman) - um policial corrupto - e seus capangas. Desesperada e sedenta de vingança, a garota se aproxima de Léon, vai morar com ele e resolve aprender a se tornar ela mesma uma assassina, para acabar com o assassino - não tanto de seu pai, com quem não mantinha a mais saudável das relações, mas principalmente de seu irmão de 4 anos.
A relação entre Léon e Mathilda é a mais interessante das camadas de "O profissional". Mesmo que o filme funcione muito bem como policial e suspense, com cenas bem construídas e uma edição impactante que remete aos melhores momentos de "Nikita", é a história de amor e amizade surgida entre duas pessoas tão diferentes e ao mesmo tempo tão semelhantes que empurra o filme pra frente. Léon, um homem sozinho e até então desprovido de maiores emoções, se vê profundamente tocado com o sofrimento e a angústia de Mathilda, a quem adota como filha. A menina, por sua vez, é uma explosão de sentimentos, chegando a confundir a gratidão e o carinho imensos que sente por seu mentor com amor e desejo. A cena em que ela se declara apaixonada é uma prova inconteste do talento já enorme de Portman em seu primeiro filme: apenas com o olhar e a voz, ela se transforma de vingadora obsessiva em uma jovem mulher, ainda que confusa em suas sensações, experimentadas pela primeira vez.
"O profissional" é um belo filme, ainda que tenha sido recebido com certa frieza da crítica quando foi lançado - em especial a imprensa se concentrava em seus diálogos, que considerou fracos. Hoje, a obra alcançou status de cult e é considerado por vários especialistas um dos filmes indispensáveis dos anos 90. Nem que seja para testemunhar o nascimento de uma estrela chamada Natalie Portman.
Alguns filmes marcam a vida do espectador por sua mensagem, outros por sua história e ainda outros pela forma narrativa que adotam. Em alguns casos, porém, o que fica na memória da plateia e faz uma produção tornar-se especial é uma característica única. É o caso de "O profissional", lançado em 1994 e que hoje é menos lembrado por sua história ou por outros detalhes narrativos e mais por ter sido o filme que lançou a carreira de uma das atrizes mais importantes de sua geração, Natalie Portman. O alvoroço em torno da estreia de Portman foi tanto e tão merecido que o principal ponto de venda da obra na época - era o primeiro trabalho do cineasta francês Luc Besson em Hollywood - ficou quase totalmente eclipsado. Não é pra menos: como uma lolita pós-moderna, decidida e vingativa (ainda que sensível nos momentos certos), a jovem que tinha apenas 11 anos quando foi escolhida pelo diretor, roubou a cena de ninguém menos que Jean Reno (astro na França e começando uma popular carreira nos EUA) e o mestre Gary Oldman.
Um dos diretores franceses mais respeitados na indústria americana - a ponto de ter recebido a discutível homenagem de ver seu sucesso de bilheteria "Nikita, criada para matar" (90) ser refilmado sob o título de "A assassina" (92), com Bridget Fonda - Besson estava com tudo pronto para fazer sua estreia em Hollywood com a superprodução "O quinto elemento", uma ficção científica cara e ambiciosa que seria estrelada por Bruce Willis e Gary Oldman para a Columbia Pictures. A agenda de Willis, sempre apertada, acabou adiando as filmagens, mas o cineasta, para não perder o ritmo criativo, escreveu, em cerca de 30 dias, o roteiro de um filme policial inspirado em um dos coadjuvantes de "Nikita". Ainda com Oldman no elenco, ele chamou seu amigo Jean Reno - que fazia o tal personagem inspirador do protagonista no filme anterior - e escolheu a jovem Portman para viver a protagonista feminina. Com um custo consideravelmente mais baixo, sem o apoio da Columbia e com um prazo de filmagens de 90 dias, ele realizou então um dos pontos mais altos de sua filmografia - enquanto "O quinto elemento", lançado apenas quatro anos mais tarde, decepcionou a gregos e troianos.
O profissional do titulo internacional - na frança ele chamou-se apenas "Léon" - é Leone Montana, um matador de aluguel que é, segundo seu intermediário Tony (Danny Aiello), o melhor dentre todos. Vivendo sozinho em um pequeno apartamento de Nova York, ele leva uma vida simples e discreta, sem amigos, sem relacionamentos e sem vida social. Sua bolha de isolamento é rompida quando ele conhece Mathilda (Natalie Portman, esbanjando talento), uma menina de 12 anos que testemunha toda a sua família ser chacinada violentamente por Stansfield (Gary Oldman) - um policial corrupto - e seus capangas. Desesperada e sedenta de vingança, a garota se aproxima de Léon, vai morar com ele e resolve aprender a se tornar ela mesma uma assassina, para acabar com o assassino - não tanto de seu pai, com quem não mantinha a mais saudável das relações, mas principalmente de seu irmão de 4 anos.
A relação entre Léon e Mathilda é a mais interessante das camadas de "O profissional". Mesmo que o filme funcione muito bem como policial e suspense, com cenas bem construídas e uma edição impactante que remete aos melhores momentos de "Nikita", é a história de amor e amizade surgida entre duas pessoas tão diferentes e ao mesmo tempo tão semelhantes que empurra o filme pra frente. Léon, um homem sozinho e até então desprovido de maiores emoções, se vê profundamente tocado com o sofrimento e a angústia de Mathilda, a quem adota como filha. A menina, por sua vez, é uma explosão de sentimentos, chegando a confundir a gratidão e o carinho imensos que sente por seu mentor com amor e desejo. A cena em que ela se declara apaixonada é uma prova inconteste do talento já enorme de Portman em seu primeiro filme: apenas com o olhar e a voz, ela se transforma de vingadora obsessiva em uma jovem mulher, ainda que confusa em suas sensações, experimentadas pela primeira vez.
"O profissional" é um belo filme, ainda que tenha sido recebido com certa frieza da crítica quando foi lançado - em especial a imprensa se concentrava em seus diálogos, que considerou fracos. Hoje, a obra alcançou status de cult e é considerado por vários especialistas um dos filmes indispensáveis dos anos 90. Nem que seja para testemunhar o nascimento de uma estrela chamada Natalie Portman.
sexta-feira
O PODER DA SEDUÇÃO
O PODER DA SEDUÇÃO (The last seduction, 1994, ITC, 110min)
Direção: John Dahl. Roteiro: Steve Barancik. Fotografia: Jeffrey Jur.
Montagem: Eric L. Beason. Música: Joseph Vitarelli. Figurino: Terry
Dresbach. Direção de arte/cenários: Linda Pearl/Kathy Lucas. Produção
executiva: W.M. Christopher Gorog. Produção: Jonathan Shestack. Elenco:
Linda Fiorentino, Bill Pullman, Peter Berg, J.T. Walsh. Estreia: 26/5/94
(Austrália)
Em 1995 a atriz Linda Fiorentino passou por uma situação bastante insólita: elogiada unanimemente pela crítica por seu desempenho como a femme fatale protagonista do filme "O poder da sedução" - a ponto de ser indicada ao BAFTA, ao prêmio da Associação de Críticos de Chicago e ficar com o segundo lugar pela Sociedade de Críticos de Boston - ela se viu impedida de receber uma indicação ao Oscar que muitos consideravam justa por causa de uma regra antiga da Academia. Como a obra de John Dahl - um policial noir despudorado e bem escrito - estreou na TV antes de passar pelos cinemas, foi considerada inelegível para suas estatuetas. Azar da Academia, uma pena para Fiorentino. Mas quem assistiu ao excelente policial de Dahl sabe que a atriz, até então uma ilustre desconhecida, é seu corpo, sua alma e seus órgãos sexuais.
À época da estreia de "O poder da sedução", a imprensa não economizou elogios: para eles, Fiorentino era "a nova Sharon Stone" - uma vez que a antiga estava passando por um período de vacas magras devido ao fiasco de "Invasão de privacidade" (93) tal afirmação até soou verdadeira - e uma atriz que finalmente tinha encontrado seu lugar ao sol. Exageros e falhas de prever o futuro à parte (sua carreira não chegou exatamente a engrenar depois do filme, acumulando escolhas erradas e fracassos de bilheteria), os entusiasmados escribas até que não estavam tão longe da verdade a eleger Linda como a mulher fatal do momento. De posse apenas de seu charme, seu sorriso, sua inteligência acima da média e de uma total e absoluta falta de pudor, sua personagem no filme de John Dahl - que depois dirigiria Matt Damon e Edward Norton no igualmente bom "Cartas na mesa" (98) - usa e abusa dos homens ao seu redor, com o firme propósito de se dar bem e ficar com uma grana preta oriunda do tráfico de drogas.
O filme começa com sua personagem, Bridget Gregory, dando um golpe no próprio marido, Clay (Bill Pullman, um tanto exagerado mas não a ponto de incomodar): enquanto ele está no banho, preparando-se para comemorar o pagamento de quase um milhão de dólares que conseguiu pela cocaína medicinal que vendeu, ela foge de Nova York, deixando-o sem esposa e sem a grana necessária para pagar um agiota a quem deve dinheiro. Foragida, ela vai parar em uma cidade do interior dos EUA, muda o nome para Wendy Kroy e seduz o caipira Mike Swale (Peter Berg), cujo casamento passageiro em outra cidade acabou por motivos misteriosos. Para não ser obrigada a dar o divórcio a Clay - o que a obrigaria a dividir o dinheiro - e nem devolver o produto de seu roubo, ela passa a manipular o apaixonado Mike para fazê-lo cometer um assassinato.
O roteiro de Steve Barancik é outra estrela de "O poder da sedução": direto, inteligente e com o equilíbrio certo entre sensualidade, violência e reviravoltas, a trama prende o espectador do início ao fim, conduzindo-o por uma teia de amoralidade guiada por uma personagem poucas vezes nas telas americanas: por mais que as femmes fatales tenham sido figuras frequentes no cinema hollywoodiano desde os anos 40, nenhuma delas era tão abertamente sexualizada quanto Bridget. Sem nenhum tipo de vergonha, ela se apresenta a Mike enfiando a mão em sua calça - para "saber se vale a pena" - e se entrega a cenas de sexo encostada em uma grade do lado de fora de um bar, dentro de um carro e, logicamente, na cama, sem a culpa que cerca a hipócrita moral ianque. Não é à toa que o público fica tão encantado por ela quanto Mike: sua atitude em relação ao corpo é, sem dúvida, sua maior arma e Linda Fiorentino a usa como ninguém até o final feliz. Um pequeno grande filme!
Em 1995 a atriz Linda Fiorentino passou por uma situação bastante insólita: elogiada unanimemente pela crítica por seu desempenho como a femme fatale protagonista do filme "O poder da sedução" - a ponto de ser indicada ao BAFTA, ao prêmio da Associação de Críticos de Chicago e ficar com o segundo lugar pela Sociedade de Críticos de Boston - ela se viu impedida de receber uma indicação ao Oscar que muitos consideravam justa por causa de uma regra antiga da Academia. Como a obra de John Dahl - um policial noir despudorado e bem escrito - estreou na TV antes de passar pelos cinemas, foi considerada inelegível para suas estatuetas. Azar da Academia, uma pena para Fiorentino. Mas quem assistiu ao excelente policial de Dahl sabe que a atriz, até então uma ilustre desconhecida, é seu corpo, sua alma e seus órgãos sexuais.
À época da estreia de "O poder da sedução", a imprensa não economizou elogios: para eles, Fiorentino era "a nova Sharon Stone" - uma vez que a antiga estava passando por um período de vacas magras devido ao fiasco de "Invasão de privacidade" (93) tal afirmação até soou verdadeira - e uma atriz que finalmente tinha encontrado seu lugar ao sol. Exageros e falhas de prever o futuro à parte (sua carreira não chegou exatamente a engrenar depois do filme, acumulando escolhas erradas e fracassos de bilheteria), os entusiasmados escribas até que não estavam tão longe da verdade a eleger Linda como a mulher fatal do momento. De posse apenas de seu charme, seu sorriso, sua inteligência acima da média e de uma total e absoluta falta de pudor, sua personagem no filme de John Dahl - que depois dirigiria Matt Damon e Edward Norton no igualmente bom "Cartas na mesa" (98) - usa e abusa dos homens ao seu redor, com o firme propósito de se dar bem e ficar com uma grana preta oriunda do tráfico de drogas.
O filme começa com sua personagem, Bridget Gregory, dando um golpe no próprio marido, Clay (Bill Pullman, um tanto exagerado mas não a ponto de incomodar): enquanto ele está no banho, preparando-se para comemorar o pagamento de quase um milhão de dólares que conseguiu pela cocaína medicinal que vendeu, ela foge de Nova York, deixando-o sem esposa e sem a grana necessária para pagar um agiota a quem deve dinheiro. Foragida, ela vai parar em uma cidade do interior dos EUA, muda o nome para Wendy Kroy e seduz o caipira Mike Swale (Peter Berg), cujo casamento passageiro em outra cidade acabou por motivos misteriosos. Para não ser obrigada a dar o divórcio a Clay - o que a obrigaria a dividir o dinheiro - e nem devolver o produto de seu roubo, ela passa a manipular o apaixonado Mike para fazê-lo cometer um assassinato.
O roteiro de Steve Barancik é outra estrela de "O poder da sedução": direto, inteligente e com o equilíbrio certo entre sensualidade, violência e reviravoltas, a trama prende o espectador do início ao fim, conduzindo-o por uma teia de amoralidade guiada por uma personagem poucas vezes nas telas americanas: por mais que as femmes fatales tenham sido figuras frequentes no cinema hollywoodiano desde os anos 40, nenhuma delas era tão abertamente sexualizada quanto Bridget. Sem nenhum tipo de vergonha, ela se apresenta a Mike enfiando a mão em sua calça - para "saber se vale a pena" - e se entrega a cenas de sexo encostada em uma grade do lado de fora de um bar, dentro de um carro e, logicamente, na cama, sem a culpa que cerca a hipócrita moral ianque. Não é à toa que o público fica tão encantado por ela quanto Mike: sua atitude em relação ao corpo é, sem dúvida, sua maior arma e Linda Fiorentino a usa como ninguém até o final feliz. Um pequeno grande filme!
quinta-feira
NA RODA DA FORTUNA
NA
RODA DA FORTUNA (The Hudsucker Proxy, 1994, Warner Bros, 111min)
Direção: Joel Coen. Roteiro: Ethan Coen, Joel Coen, Sam Raimi.
Fotografia: Roger Deakins. Montagem: Thom Noble. Música: Carter Burwell.
Figurino: Richard Hornung. Direção de arte/cenários: Dennis
Gassner/Nancy Haigh. Produção executiva: Tim Bevan, Eric Fellner.
Produção: Ethan Coen. Elenco: Tim Robbins, Jennifer Jason Leigh, Paul
Newman, Bruce Campbell, John Mahoney, Charles Durning, Peter Gallagher.
Estreia: 11/3/94
No cinema abertamente corporativo de Hollywood nos gananciosos anos 90, não deixa de ser surpreendente que os irmãos Coen conseguissem realizar filmes tão fora do comum quanto "Na roda da fortuna" - que se seguia aos igualmente estranhos no ninho "Um gosto de sangue" (84), "Arizona nunca mais" (87), "Ajuste final" (90) e "Barton Fink, delírios de Hollywood" (91), todos dotados de uma personalidade própria rara no cinemão mainstream. Uma espécie de sátira aos ingênuos filmes de Frank Capra com altas doses de cinismo na receita, o filme logicamente não encontrou seu público nas bilheterias - talvez porque a audiência não tenha compreendido a brincadeira, talvez porque os próprios irmãos cineastas não tivessem a intenção de agradar ninguém a não ser eles mesmos, com seu humor iconoclasta e repleto de ironia ao american way of life. O fato é que, apesar do fracasso comercial, "Na roda da fortuna" também é um dos menos lembrados filmes dos Coen, sempre relegado a uma prateleira virtual de obras menores. Injustiça pura, já que é uma comédia deliciosa, visualmente deslumbrante e protagonizada por um Tim Robbins no auge da carreira.
Imaginar como ficaria o filme com Tom Cruise no papel central - ideia sem o menor cabimento do produtor não-creditado Joel Silver - chega a soar como um pesadelo, mas felizmente Joel, o diretor, e Ethan, o produtor (ambos também são roteiristas) tem, entre várias outras qualidades artísticas, firmeza nas suas escolhas, e não abriram mão de escalar Robbins como o caipira Norville Barnes, protagonista de sua saga sobre a ambição e a força da inocência. Vindo de uma bem-sucedida estreia como diretor em "Bob Roberts" e um Golden Globe de melhor ator cômico por "O jogador", ambos lançados em 1992, o então marido de Susan Sarandon entrega mais uma performance consagradora na pele de um homem comum e sonhador que, aportando na Nova York do final de 1958, dá de cara com um mundo hostil à sua simplicidade com uma poderosa engrenagem que esmaga toda e qualquer generosidade. É claro que, em se tratando de um filme dos Coen, não existe espaço para sentimentalismo barato nessa descoberta - há até mesmo um Charles Durning de anjo da guarda, com auréola e tudo, aconselhando Barnes no final - mas sua mensagem otimista é transmitida da mesma forma, graças à formidável quantidade de acertos do produto final.
A maior de todas as qualidades é uma que acompanha os diretores desde sua estreia, com o noir "Gosto de sangue": a escalação certeira do elenco. Se Tim Robbins dá um show particular desfilando todas as nuances de seu personagem com extrema competência e naturalidade, o mesmo pode ser dito de Paul Newman, poucas vezes visto na tela se divertindo tanto: como o maquiavélico Sidney J. Mussburger, o veterano demonstra um invejável senso de humor, sempre de posse de um gigantesco e fálico charuto e disparando barbaridades a quem quiser ouvir. Quem não acerta muito o tom de sua personagem, no entanto, é Jennifer Jason Leigh - apesar de ótima atriz, ela parece exagerar na composição de sua repórter disfarçada de secretária que acaba se tornando o interesse amoroso do protagonista, emulando Carole Lombard e Claudette Colbert com uma dose a mais de histrionismo. Além disso, há os deslumbrantes cenários de Dennis Gassner, a fotografia impecável de Roger Deakins e a música imponente e debochada de Carter Burwell, que compõem um extraordinário quadro para os diálogos espertos e a trama imprevisível.
A trama, aliás, é um achado do humor sofisiticado: justamente quando suas empresas estão no auge do sucesso, o diretor das indústrias Hudsucker (vivido por um igualmente divertido Charles Durning) se joga da janela do 44º andar de seu prédio, para susto de sua diretoria. Com o objetivo de comprar suas ações a um preço acessível e tornar-se acionista majoritário da empresa, o vice-presidente Sidney J. Mussburger (Newman) tem a ideia de nomear para a presidência alguém capaz de fazer com que o preço de tais ações caiam assustadoramente e escolhe para isso o recém-contratado Norville Barnes (Robbins) - formado em Administração em sua cidade do interior, totalmente perdido na imensa Nova York e funcionário do setor de correspondência da empresa. O que Mussburger jamais poderia imaginar é que, por trás da aparente ingenuidade de Barnes existe um homem inteligente e que tem uma ideia inovadora para alavancar os lucros: o ainda inédito bambolê.
Vasto de piadas visuais, diálogos inteligentes e dotado de uma direção criativa e nada vulgar, "Na roda da fortuna" é um triunfo. Merece ser descoberto, redescoberto ou finalmente reconhecido como mais um grande trabalho dos irmãos Coen.
No cinema abertamente corporativo de Hollywood nos gananciosos anos 90, não deixa de ser surpreendente que os irmãos Coen conseguissem realizar filmes tão fora do comum quanto "Na roda da fortuna" - que se seguia aos igualmente estranhos no ninho "Um gosto de sangue" (84), "Arizona nunca mais" (87), "Ajuste final" (90) e "Barton Fink, delírios de Hollywood" (91), todos dotados de uma personalidade própria rara no cinemão mainstream. Uma espécie de sátira aos ingênuos filmes de Frank Capra com altas doses de cinismo na receita, o filme logicamente não encontrou seu público nas bilheterias - talvez porque a audiência não tenha compreendido a brincadeira, talvez porque os próprios irmãos cineastas não tivessem a intenção de agradar ninguém a não ser eles mesmos, com seu humor iconoclasta e repleto de ironia ao american way of life. O fato é que, apesar do fracasso comercial, "Na roda da fortuna" também é um dos menos lembrados filmes dos Coen, sempre relegado a uma prateleira virtual de obras menores. Injustiça pura, já que é uma comédia deliciosa, visualmente deslumbrante e protagonizada por um Tim Robbins no auge da carreira.
Imaginar como ficaria o filme com Tom Cruise no papel central - ideia sem o menor cabimento do produtor não-creditado Joel Silver - chega a soar como um pesadelo, mas felizmente Joel, o diretor, e Ethan, o produtor (ambos também são roteiristas) tem, entre várias outras qualidades artísticas, firmeza nas suas escolhas, e não abriram mão de escalar Robbins como o caipira Norville Barnes, protagonista de sua saga sobre a ambição e a força da inocência. Vindo de uma bem-sucedida estreia como diretor em "Bob Roberts" e um Golden Globe de melhor ator cômico por "O jogador", ambos lançados em 1992, o então marido de Susan Sarandon entrega mais uma performance consagradora na pele de um homem comum e sonhador que, aportando na Nova York do final de 1958, dá de cara com um mundo hostil à sua simplicidade com uma poderosa engrenagem que esmaga toda e qualquer generosidade. É claro que, em se tratando de um filme dos Coen, não existe espaço para sentimentalismo barato nessa descoberta - há até mesmo um Charles Durning de anjo da guarda, com auréola e tudo, aconselhando Barnes no final - mas sua mensagem otimista é transmitida da mesma forma, graças à formidável quantidade de acertos do produto final.
A maior de todas as qualidades é uma que acompanha os diretores desde sua estreia, com o noir "Gosto de sangue": a escalação certeira do elenco. Se Tim Robbins dá um show particular desfilando todas as nuances de seu personagem com extrema competência e naturalidade, o mesmo pode ser dito de Paul Newman, poucas vezes visto na tela se divertindo tanto: como o maquiavélico Sidney J. Mussburger, o veterano demonstra um invejável senso de humor, sempre de posse de um gigantesco e fálico charuto e disparando barbaridades a quem quiser ouvir. Quem não acerta muito o tom de sua personagem, no entanto, é Jennifer Jason Leigh - apesar de ótima atriz, ela parece exagerar na composição de sua repórter disfarçada de secretária que acaba se tornando o interesse amoroso do protagonista, emulando Carole Lombard e Claudette Colbert com uma dose a mais de histrionismo. Além disso, há os deslumbrantes cenários de Dennis Gassner, a fotografia impecável de Roger Deakins e a música imponente e debochada de Carter Burwell, que compõem um extraordinário quadro para os diálogos espertos e a trama imprevisível.
A trama, aliás, é um achado do humor sofisiticado: justamente quando suas empresas estão no auge do sucesso, o diretor das indústrias Hudsucker (vivido por um igualmente divertido Charles Durning) se joga da janela do 44º andar de seu prédio, para susto de sua diretoria. Com o objetivo de comprar suas ações a um preço acessível e tornar-se acionista majoritário da empresa, o vice-presidente Sidney J. Mussburger (Newman) tem a ideia de nomear para a presidência alguém capaz de fazer com que o preço de tais ações caiam assustadoramente e escolhe para isso o recém-contratado Norville Barnes (Robbins) - formado em Administração em sua cidade do interior, totalmente perdido na imensa Nova York e funcionário do setor de correspondência da empresa. O que Mussburger jamais poderia imaginar é que, por trás da aparente ingenuidade de Barnes existe um homem inteligente e que tem uma ideia inovadora para alavancar os lucros: o ainda inédito bambolê.
Vasto de piadas visuais, diálogos inteligentes e dotado de uma direção criativa e nada vulgar, "Na roda da fortuna" é um triunfo. Merece ser descoberto, redescoberto ou finalmente reconhecido como mais um grande trabalho dos irmãos Coen.
quarta-feira
O ÁRBITRO
O
ÁRBITRO (The ref, 1994, Touchstone Pictures, 93min) Direção: Ted Demme.
Roteiro: Richard LaGravenese, Marie Weiss, estória de Marie Weiss.
Fotografia: Adam Kimmel. Montagem: Jeffrey Wolf. Música: David A.
Stewart. Figurino: Juddiana Makovsky. Direção de arte/cenários: Dan
Davis/Jaro Dick. Produção executiva: Jerry Bruckheimer, Don Simpson.
Produção: Ronald M. Bozman, Richard LaGravenese, Jeff Weiss. Elenco:
Denis Leary, Judy Davis, Kevin Spacey, Robert J. Steinmiller Jr., Glynis
Johns, Christine Baranski, Raymond J. Barry, J.K. Simmons, BD Wong.
Estreia: 09/3/94
Aclamado como um dos maiores atores de sua geração depois de seu segundo Oscar - e primeiro na categoria principal - por sua atuação em "Beleza americana" (99), Kevin Spacey tem, em seu currículo prévio, alguns filmes pouco vistos pelo público e que, no entanto, já demonstravam sua enorme capacidade de interpretar homens comuns em circunstâncias corriqueiras. Aliás, um de seus últimos filmes antes da explosão que seguiu-se a "Seven, os sete crimes capitais" e "Os suspeitos" - ambos de 1995 - pode ser considerado um ensaio para o elogiado drama de Sam Mendes que lhe rendeu a estatueta da Academia em 2000: na comédia de humor negro "O árbitro", lançada em 1993 e pouco vista pelo público em geral, ele vive com sua naturalidade característica, uma das partes de um casal em crise que se vê obrigado a enfrentar seus problemas conjugais quando é capturado como refém de um assaltante em fuga.
Dirigido por Ted Demme - sobrinho de Jonathan que morreu de overdose em 2002, pouco depois de ter dirigido "Profissão de risco", um filme sobre o tráfico de drogas estrelado por Johnny Depp e Penelope Cruz - "O árbitro" é uma comédia natalina atípica, que brinca com os elementos do gênero - como "A felicidade não se compra" (46), de Frank Capra, o filme-símbolo do período - enquanto devassa o american way of life de maneira menos cáustica e trágica de "Beleza americana", mas ainda assim com uma dose generosa de humor ácido e ironia. Se na obra-prima de Sam Mendes a hipocrisia e o adultério levavam ao crime e ao cinismo melancólico, no filme de Demme a coisa é bem menos séria, até porque leva o selo da Touchstone Pictures, braço da Disney para filmes direcionados ao público adulto - o que já sinaliza tratar-se de um produto para a família, ou seja, sem excesso de nenhuma espécie. Ainda assim - e apesar de um roteiro irregular - tudo funciona a contento, desde que não se exija muito.
Duas situações distintas - que convergem para uma terceira - abrem o filme: em uma o casal Caroline e Lloyd Chasseur (a ótima Judy Davis e Spacey) discutem seu falido relacionamento, prejudicado por uma pulada de cerca dela, com um terapeuta de casais. Em outra, o ladrão de joias Gus (Denis Leary) é surpreendido pelo alarme de uma residência que estava invadindo e foge antes de conseguir entrar em contato com seu cúmplice. Sem ter para onde escapar antes do previsto, o gatuno entra no carro do magoado casal e os leva como reféns para sua sofisticada casa - que espera convidados para a ceia de Natal. O que ele jamais poderia esperar é que, diante de tanto desprezo recíproco mantido pelos discretos Chasseur, ele fosse acabar se tornando uma espécie de juiz de suas discussões - que vão desde o adultério de Caroline até a dificuldade de Lloyd em se impor diante de sua mãe (Glynis Johns) autoritária e espaçosa. Quando o restante da família chega para o jantar - e isso inclui a mãe, o irmão, a cunhada e os sobrinhos de Lloyd - o circo fica ainda maior, com acusações sendo jogadas de um lado para outro na mesa natalina. E para piorar, o filho do casal, o adolescente Jesse (Robert J. Steinmiller Jr.), está sendo procurado pela polícia por viver de chantagem - e pode ser desmascarado na mesma noite.
Mesmo que muitas vezes perca o foco em sua narrativa - com desnecessários minutos dedicados aos policiais que estão caçando Gus - e demore para realmente engrenar, o que só acontece quando a ceia de Natal mostra a que veio na dinâmica familiar dos Chasseur, "O árbitro" funciona como uma comédia despretensiosa e de inteligência acima da média. Com um texto afiado e uma segura direção de atores, ele ainda tem o privilégio enorme de contar com dois grandes protagonistas, capazes de tirar leite de pedra se necessário. Judy Davis não é uma das atrizes preferidas de Woody Allen à toa - consegue como poucas equilibrar neurose e sentimento. E Kevin Spacey, às vésperas de sua consagração como o psicopata John Doe de "Seven", deita e rola com um personagem repleto de cinismo e ironia, uma de suas maiores especialidades. Diversão leve e sem contra-indicações, mas nada muito além disso.
Aclamado como um dos maiores atores de sua geração depois de seu segundo Oscar - e primeiro na categoria principal - por sua atuação em "Beleza americana" (99), Kevin Spacey tem, em seu currículo prévio, alguns filmes pouco vistos pelo público e que, no entanto, já demonstravam sua enorme capacidade de interpretar homens comuns em circunstâncias corriqueiras. Aliás, um de seus últimos filmes antes da explosão que seguiu-se a "Seven, os sete crimes capitais" e "Os suspeitos" - ambos de 1995 - pode ser considerado um ensaio para o elogiado drama de Sam Mendes que lhe rendeu a estatueta da Academia em 2000: na comédia de humor negro "O árbitro", lançada em 1993 e pouco vista pelo público em geral, ele vive com sua naturalidade característica, uma das partes de um casal em crise que se vê obrigado a enfrentar seus problemas conjugais quando é capturado como refém de um assaltante em fuga.
Dirigido por Ted Demme - sobrinho de Jonathan que morreu de overdose em 2002, pouco depois de ter dirigido "Profissão de risco", um filme sobre o tráfico de drogas estrelado por Johnny Depp e Penelope Cruz - "O árbitro" é uma comédia natalina atípica, que brinca com os elementos do gênero - como "A felicidade não se compra" (46), de Frank Capra, o filme-símbolo do período - enquanto devassa o american way of life de maneira menos cáustica e trágica de "Beleza americana", mas ainda assim com uma dose generosa de humor ácido e ironia. Se na obra-prima de Sam Mendes a hipocrisia e o adultério levavam ao crime e ao cinismo melancólico, no filme de Demme a coisa é bem menos séria, até porque leva o selo da Touchstone Pictures, braço da Disney para filmes direcionados ao público adulto - o que já sinaliza tratar-se de um produto para a família, ou seja, sem excesso de nenhuma espécie. Ainda assim - e apesar de um roteiro irregular - tudo funciona a contento, desde que não se exija muito.
Duas situações distintas - que convergem para uma terceira - abrem o filme: em uma o casal Caroline e Lloyd Chasseur (a ótima Judy Davis e Spacey) discutem seu falido relacionamento, prejudicado por uma pulada de cerca dela, com um terapeuta de casais. Em outra, o ladrão de joias Gus (Denis Leary) é surpreendido pelo alarme de uma residência que estava invadindo e foge antes de conseguir entrar em contato com seu cúmplice. Sem ter para onde escapar antes do previsto, o gatuno entra no carro do magoado casal e os leva como reféns para sua sofisticada casa - que espera convidados para a ceia de Natal. O que ele jamais poderia esperar é que, diante de tanto desprezo recíproco mantido pelos discretos Chasseur, ele fosse acabar se tornando uma espécie de juiz de suas discussões - que vão desde o adultério de Caroline até a dificuldade de Lloyd em se impor diante de sua mãe (Glynis Johns) autoritária e espaçosa. Quando o restante da família chega para o jantar - e isso inclui a mãe, o irmão, a cunhada e os sobrinhos de Lloyd - o circo fica ainda maior, com acusações sendo jogadas de um lado para outro na mesa natalina. E para piorar, o filho do casal, o adolescente Jesse (Robert J. Steinmiller Jr.), está sendo procurado pela polícia por viver de chantagem - e pode ser desmascarado na mesma noite.
Mesmo que muitas vezes perca o foco em sua narrativa - com desnecessários minutos dedicados aos policiais que estão caçando Gus - e demore para realmente engrenar, o que só acontece quando a ceia de Natal mostra a que veio na dinâmica familiar dos Chasseur, "O árbitro" funciona como uma comédia despretensiosa e de inteligência acima da média. Com um texto afiado e uma segura direção de atores, ele ainda tem o privilégio enorme de contar com dois grandes protagonistas, capazes de tirar leite de pedra se necessário. Judy Davis não é uma das atrizes preferidas de Woody Allen à toa - consegue como poucas equilibrar neurose e sentimento. E Kevin Spacey, às vésperas de sua consagração como o psicopata John Doe de "Seven", deita e rola com um personagem repleto de cinismo e ironia, uma de suas maiores especialidades. Diversão leve e sem contra-indicações, mas nada muito além disso.
terça-feira
O DOSSIÊ PELICANO
O
DOSSIÊ PELICANO (The Pelican Brief, 1993, Warner Bros, 141min) Direção:
Alan J. Pakula. Roteiro: Alan J. Pakula, romance de John Grisham.
Fotografia: Stephen Golblatt. Montagem: Tom Rolf, Trudy Ship. Música:
James Horner. Figurino: Albert Wolsky. Direção de arte/cenários: Philip
Rosenberg/Lisa Fischer, Rick Simpson. Produção: Pieter Jan Brugge, Alan
J. Pakula. Elenco: Julia Roberts, Denzel Washington, Sam Shepard, John
Heard, Tony Goldwin, James B. Sikking, Stanley Tucci, Hume Cronyn, John
Lithgow, Anthony Heald, Cynthia Nixon. Estreia: 17/12/93
Depois de tornar-se a maior estrela surgida em Hollywood no início da década de 90 - e ter sido indicada duas vezes consecutivas ao Oscar - Julia Roberts achou que era hora de dar uma parada: presente mais nas páginas de tabloides sensacionalistas (graças a seu casamento com Kiefer Sutherland desmarcado em cima da hora, seu romance com o ator Jason Patric e posteriormente seu casamento-surpresa com o cantor country Lyle Lovett) do que nos sets de filmagens, a linda mulher que havia encantado os homens e inspirado as mulheres de plateias do mundo inteiro tentava colocar ordem na vida pessoal. Questão resolvida, era hora, então, de voltar ao batente, e para isso nada melhor do que um papel escrito especialmente para ela por um autor em vias de tornar-se o nome mais quente da terra do cinema: John Grisham. Autor do best-seller que deu origem ao filme "A firma" (93), estrelado por Tom Cruise, Grisham criou a protagonista de seu livro seguinte, "O dossiê Pelicano" com Roberts como modelo - não foi preciso muito para que a atriz, lisonjeada, topasse o desafio de encarná-la em seu retorno às telas sem nem mesmo ler a adaptação do romance.
Especializado em uma literatura digestiva, fluente e de pegada fácil, Grisham conquistou milhares de leitores com seus protagonistas, invariavelmente advogados ou estudantes de Direito que se veem forçados a lidar com a ganância e a corrupção do meio em que se instruem. No caso de "O dossiê Pelicano" a bola da vez é Darby Shaw (Julia Roberts, linda e carismática como sempre), uma jovem estudante que, apesar de manter um romance secreto com Thomas Callahan (Sam Shepard) - seu professor e mentor - é dedicada e inteligente o bastante para, sozinha, encontrar o fio da meada de uma conspiração gigantesca (e que envolve membros da Casa Branca) na morte de dois juízes da Suprema Corte. O dossiê que ela escreve apontando os possíveis responsáveis - e que leva o nome de pelicano por causa da ave ameaçada de extinção graças à exploração criminosa de petróleo feita pelos culpados - acaba chegando ao FBI e, consequentemente, ela se vê perseguida e ameaçada de morte. Cercada de violência - que vitima seu amante e qualquer pessoa de quem ela se aproxima - ela recorre a Gray Grantham (Denzel Washington), repórter político em quem ela passa a confiar cegamente.
Acostumado a assinar filmes que tratam de conspirações - são dele "Todos os homens do presidente" (76) e "A trama" - o diretor Alan J. Pakula foi a escolha certa para conduzir "O dossiê Pelicano". Cineasta sóbrio e inteligente, ele consegue extrair sempre o melhor de seu elenco e escolher ângulos improváveis para suas cenas, sejam elas longos diálogos explanativos ou empolgantes correrias dentro de um estacionamento coberto. Mesmo que seu filme seja um tanto longo demais para os padrões comerciais hollywoodianos - quase duas horas e meia de pouca ação e muito papo - ele consegue manter o interesse da plateia graças à tensão construída pela trilha sonora adequada de James Horner, pela fotografia claustrofóbica de Stephen Goldblatt e principalmente pela química entre Julia e Denzel - que foi convencido pela atriz a tomar parte no projeto. É uma bênção, também, que não exista um interesse romântico entre os protagonistas - o que diminuiria o impacto da trama central - e que o final não apele para o clichê da luta corporal entre mocinhos e bandidos. Além disso, Pakula cria alguns momentos brilhantes - como a morte de um dos vilões em pleno parque de diversões e a tentativa de matar Gray e Darby em um carro armado com uma bomba - que amenizam o tom quase morno da narrativa.
Quem está acostumado aos thrillers americanos leva um choque ao assistir a "O dossiê Pelicano": o ritmo é mais lento, o desenvolvimento é menos atropelado e as reações dos personagens são mais críveis do que na maioria dos filmes do mainstream. Ao mesmo tempo que isso qualifica o filme de Pakula como um produto mais inteligente que a média, afasta a plateia que busca adrenalina e a catarse que normalmente acompanha o gênero. Pakula era um diretor elegante, que fugia da violência gratuita, e isso está claro em cada fotograma de seu filme. A história pode não empolgar, mas a qualidade da narrativa é impecável.
Depois de tornar-se a maior estrela surgida em Hollywood no início da década de 90 - e ter sido indicada duas vezes consecutivas ao Oscar - Julia Roberts achou que era hora de dar uma parada: presente mais nas páginas de tabloides sensacionalistas (graças a seu casamento com Kiefer Sutherland desmarcado em cima da hora, seu romance com o ator Jason Patric e posteriormente seu casamento-surpresa com o cantor country Lyle Lovett) do que nos sets de filmagens, a linda mulher que havia encantado os homens e inspirado as mulheres de plateias do mundo inteiro tentava colocar ordem na vida pessoal. Questão resolvida, era hora, então, de voltar ao batente, e para isso nada melhor do que um papel escrito especialmente para ela por um autor em vias de tornar-se o nome mais quente da terra do cinema: John Grisham. Autor do best-seller que deu origem ao filme "A firma" (93), estrelado por Tom Cruise, Grisham criou a protagonista de seu livro seguinte, "O dossiê Pelicano" com Roberts como modelo - não foi preciso muito para que a atriz, lisonjeada, topasse o desafio de encarná-la em seu retorno às telas sem nem mesmo ler a adaptação do romance.
Especializado em uma literatura digestiva, fluente e de pegada fácil, Grisham conquistou milhares de leitores com seus protagonistas, invariavelmente advogados ou estudantes de Direito que se veem forçados a lidar com a ganância e a corrupção do meio em que se instruem. No caso de "O dossiê Pelicano" a bola da vez é Darby Shaw (Julia Roberts, linda e carismática como sempre), uma jovem estudante que, apesar de manter um romance secreto com Thomas Callahan (Sam Shepard) - seu professor e mentor - é dedicada e inteligente o bastante para, sozinha, encontrar o fio da meada de uma conspiração gigantesca (e que envolve membros da Casa Branca) na morte de dois juízes da Suprema Corte. O dossiê que ela escreve apontando os possíveis responsáveis - e que leva o nome de pelicano por causa da ave ameaçada de extinção graças à exploração criminosa de petróleo feita pelos culpados - acaba chegando ao FBI e, consequentemente, ela se vê perseguida e ameaçada de morte. Cercada de violência - que vitima seu amante e qualquer pessoa de quem ela se aproxima - ela recorre a Gray Grantham (Denzel Washington), repórter político em quem ela passa a confiar cegamente.
Acostumado a assinar filmes que tratam de conspirações - são dele "Todos os homens do presidente" (76) e "A trama" - o diretor Alan J. Pakula foi a escolha certa para conduzir "O dossiê Pelicano". Cineasta sóbrio e inteligente, ele consegue extrair sempre o melhor de seu elenco e escolher ângulos improváveis para suas cenas, sejam elas longos diálogos explanativos ou empolgantes correrias dentro de um estacionamento coberto. Mesmo que seu filme seja um tanto longo demais para os padrões comerciais hollywoodianos - quase duas horas e meia de pouca ação e muito papo - ele consegue manter o interesse da plateia graças à tensão construída pela trilha sonora adequada de James Horner, pela fotografia claustrofóbica de Stephen Goldblatt e principalmente pela química entre Julia e Denzel - que foi convencido pela atriz a tomar parte no projeto. É uma bênção, também, que não exista um interesse romântico entre os protagonistas - o que diminuiria o impacto da trama central - e que o final não apele para o clichê da luta corporal entre mocinhos e bandidos. Além disso, Pakula cria alguns momentos brilhantes - como a morte de um dos vilões em pleno parque de diversões e a tentativa de matar Gray e Darby em um carro armado com uma bomba - que amenizam o tom quase morno da narrativa.
Quem está acostumado aos thrillers americanos leva um choque ao assistir a "O dossiê Pelicano": o ritmo é mais lento, o desenvolvimento é menos atropelado e as reações dos personagens são mais críveis do que na maioria dos filmes do mainstream. Ao mesmo tempo que isso qualifica o filme de Pakula como um produto mais inteligente que a média, afasta a plateia que busca adrenalina e a catarse que normalmente acompanha o gênero. Pakula era um diretor elegante, que fugia da violência gratuita, e isso está claro em cada fotograma de seu filme. A história pode não empolgar, mas a qualidade da narrativa é impecável.
segunda-feira
SEIS GRAUS DE SEPARAÇÃO
SEIS
GRAUS DE SEPARAÇÃO (Six degrees of separation, 1993, MGM Productions,
112min) Direção: Fred Schepisi. Roteiro: John Guare, peça teatral de sua
autoria. Fotografia: Ian Baker. Montagem: Peter Honess. Música: Jerry
Goldsmith. Figurino: Juddiana Makovsky. Direção de arte/cenários: Dennis
Bradford/Gretchen Rau. Produção executiva: Ric Kidney. Produção: Arnon
Milchan, Fred Schepisi. Elenco: Donald Sutherland, Stockard Channing,
Will Smith, Ian McKellen, Mary Beth Hurt, Bruce Davison, Richard Masur,
Heather Graham, Anthony Michael Hall. Estreia: 08/12/93
Indicado ao Oscar de Melhor Atriz (Stockard Channing)
Em 1983, um jovem negro de 19 anos de idade chamado David Hampton penetrou na alta sociedade de Manhattan e, se fazendo passar por filho do ator Sidney Poitier, conseguiu ludibriar personalidades como Melanie Griffith, Gary Sinise e Calvin Klein e gente da alta sociedade nova-iorquina, como o reitor de uma faculdade de jornalismo e um famoso urologista. Alegando ser amigo de seus filhos que estavam na universidade, ter sido assaltado ou ter perdido a bagagem em voo de avião, ele se hospedava nos apartamentos de suas vítimas e, uma vez tendo-as conquistado, até conseguia que lhes emprestassem dinheiro. Farsa descoberta, o rapaz foi preso e banido de Nova York - até morrer, vítima de complicações relacionadas ao vírus da AIDS, em 2013. Sua história - quase absurda demais para ser verdade - chegou aos ouvidos do dramaturgo John Guare, que não resistiu à tentação de levá-la para os palcos. A peça "Seis graus de separação" estreou em novembro de 1990, foi indicada ao Tony de melhor espetáculo do ano e, pouco menos de três anos depois, chegava também às telas de cinema, adaptada pelo próprio Guare, dirigida por Fred Schepisi e estrelada pela mesma atriz que lhe deu vida na Broadway, Stockard Channing, que acabou indicada ao Golden Globe e ao Oscar por sua interpretação.
Mais conhecida como a encrenqueira Rizzo de "Grease, nos tempos da brilhantina" (78), Channing está brilhante no papel de Ouisa Kittredge, uma sofisticada e quase fútil socialite nova-iorquina que trabalha, ao lado do marido, Flan (Donald Sutherland) negociando valiosas obras de arte para colecionadores que dispensam o intermédio de galerias. Com os três filhos na universidade, eles vivem em um mundo de luxo e conforto - ainda que também se utilizem dos privilégios da aparência social - cuja rotina de jantares e festas é quebrado uma noite com a chegada em sua casa de Paul (Will Smith em seu primeiro papel de destaque em Hollywood), um jovem que, alegando ter sido assaltado em frente a seu prédio, apresenta-se como amigo de seus filhos. Enquanto é auxiliado pelo casal - e por um convidado sul-africano que está de passagem pela cidade, o milionário Geoffrey Miller (Ian McKellen) - Paul conta a eles sua história de vida, terminando por afirmar-lhes ser filho do primeiro casamento de Poitier. Fascinados com a situação - e com a possibilidade de fazerem parte de uma possível filmagem do musical "Cats" que está presumivelmente sendo produzida pelo ator - os Kittredge se deixam envolver com a lábia e a simpatia do rapaz, a ponto de convidá-lo a passar a noite em sua casa. Depois que a noite acaba mal, porém, eles chegam à conclusão de que Paul não é exatamente quem eles pensavam.
Em um encontro com um casal de amigos, os também ricaços Kitty (Mary Beth Hurt) e Larkin (Bruce Davison), os Kittredge ficam abismados quando descobrem que o mesmo golpe foi aplicado em seus amigos e resolvem ir à polícia. Para sua surpresa, o caso não é novo, e um médico da cidade, Dr. Fine (Richard Masur) surge para comprovar a afirmação. Com um misto de curiosidade/preocupação/senso de aventura, o grupo de "vítimas" resolve investigar a fundo e tentar descobrir a origem de Paul, seus objetivos em penetrar na alta sociedade e seu paradeiro. Para isso, contam com a ajuda - a princípio contrafeita - dos filhos e de Trent (Anthony Michael Hall), um antigo amigo dos jovens, que parece ter sido o ponto de partida da farsa, que chega a um patamar ainda maior quando ele ressurge espalhando por Manhattan que é um filho rejeitado de Flan Kittredge.
Escrito com um sarcástico senso de humor mergulhado em uma tocante melancolia e uma feroz crítica à futilidade da refinada sociedade de Manhattan - e do mundo todo, de uma maneira ou outra - "Seis graus de separação" consegue manter um equilíbrio perfeito entre o humor sutil e o drama delicado, sem jamais pesar a mão para nenhum lado. Ao narrar sua história como uma anedota inconsequente do jet-set nova-iorquino (o que dá vazão a uma memorável explosão final de Ouisa em um jantar chique), Guare enfatiza toda a diferença cultural que afasta os bem-nascidos como os Kittredge dos renegados como Paul, que anseiam desesperadamente por um mundo de luxo, arte, conforto e atenção. Para isso é fundamental, portanto, a atuação madura de Will Smith, brindando a plateia com um personagem que, à parte o carisma de sempre, em nada lembra seus papéis posteriores. Com um misto de desamparo, ginga e obsessão, ele constroi um Paul sempre surpreendente, que vai revelando camada por camada conforme a trama se desenvolve - também é notável o trabalho de edição de Peter Honess, que mantém a atenção do público sempre constante.
"Seis graus de separação" é um filme que cativa aos poucos, se revelando, em seu final, uma produção muito mais inteligente e instigante do que parecia em seus primeiros minutos. Uma pérola pouco conhecida capaz de conquistar o mais exigente espectador.
Indicado ao Oscar de Melhor Atriz (Stockard Channing)
Em 1983, um jovem negro de 19 anos de idade chamado David Hampton penetrou na alta sociedade de Manhattan e, se fazendo passar por filho do ator Sidney Poitier, conseguiu ludibriar personalidades como Melanie Griffith, Gary Sinise e Calvin Klein e gente da alta sociedade nova-iorquina, como o reitor de uma faculdade de jornalismo e um famoso urologista. Alegando ser amigo de seus filhos que estavam na universidade, ter sido assaltado ou ter perdido a bagagem em voo de avião, ele se hospedava nos apartamentos de suas vítimas e, uma vez tendo-as conquistado, até conseguia que lhes emprestassem dinheiro. Farsa descoberta, o rapaz foi preso e banido de Nova York - até morrer, vítima de complicações relacionadas ao vírus da AIDS, em 2013. Sua história - quase absurda demais para ser verdade - chegou aos ouvidos do dramaturgo John Guare, que não resistiu à tentação de levá-la para os palcos. A peça "Seis graus de separação" estreou em novembro de 1990, foi indicada ao Tony de melhor espetáculo do ano e, pouco menos de três anos depois, chegava também às telas de cinema, adaptada pelo próprio Guare, dirigida por Fred Schepisi e estrelada pela mesma atriz que lhe deu vida na Broadway, Stockard Channing, que acabou indicada ao Golden Globe e ao Oscar por sua interpretação.
Mais conhecida como a encrenqueira Rizzo de "Grease, nos tempos da brilhantina" (78), Channing está brilhante no papel de Ouisa Kittredge, uma sofisticada e quase fútil socialite nova-iorquina que trabalha, ao lado do marido, Flan (Donald Sutherland) negociando valiosas obras de arte para colecionadores que dispensam o intermédio de galerias. Com os três filhos na universidade, eles vivem em um mundo de luxo e conforto - ainda que também se utilizem dos privilégios da aparência social - cuja rotina de jantares e festas é quebrado uma noite com a chegada em sua casa de Paul (Will Smith em seu primeiro papel de destaque em Hollywood), um jovem que, alegando ter sido assaltado em frente a seu prédio, apresenta-se como amigo de seus filhos. Enquanto é auxiliado pelo casal - e por um convidado sul-africano que está de passagem pela cidade, o milionário Geoffrey Miller (Ian McKellen) - Paul conta a eles sua história de vida, terminando por afirmar-lhes ser filho do primeiro casamento de Poitier. Fascinados com a situação - e com a possibilidade de fazerem parte de uma possível filmagem do musical "Cats" que está presumivelmente sendo produzida pelo ator - os Kittredge se deixam envolver com a lábia e a simpatia do rapaz, a ponto de convidá-lo a passar a noite em sua casa. Depois que a noite acaba mal, porém, eles chegam à conclusão de que Paul não é exatamente quem eles pensavam.
Em um encontro com um casal de amigos, os também ricaços Kitty (Mary Beth Hurt) e Larkin (Bruce Davison), os Kittredge ficam abismados quando descobrem que o mesmo golpe foi aplicado em seus amigos e resolvem ir à polícia. Para sua surpresa, o caso não é novo, e um médico da cidade, Dr. Fine (Richard Masur) surge para comprovar a afirmação. Com um misto de curiosidade/preocupação/senso de aventura, o grupo de "vítimas" resolve investigar a fundo e tentar descobrir a origem de Paul, seus objetivos em penetrar na alta sociedade e seu paradeiro. Para isso, contam com a ajuda - a princípio contrafeita - dos filhos e de Trent (Anthony Michael Hall), um antigo amigo dos jovens, que parece ter sido o ponto de partida da farsa, que chega a um patamar ainda maior quando ele ressurge espalhando por Manhattan que é um filho rejeitado de Flan Kittredge.
Escrito com um sarcástico senso de humor mergulhado em uma tocante melancolia e uma feroz crítica à futilidade da refinada sociedade de Manhattan - e do mundo todo, de uma maneira ou outra - "Seis graus de separação" consegue manter um equilíbrio perfeito entre o humor sutil e o drama delicado, sem jamais pesar a mão para nenhum lado. Ao narrar sua história como uma anedota inconsequente do jet-set nova-iorquino (o que dá vazão a uma memorável explosão final de Ouisa em um jantar chique), Guare enfatiza toda a diferença cultural que afasta os bem-nascidos como os Kittredge dos renegados como Paul, que anseiam desesperadamente por um mundo de luxo, arte, conforto e atenção. Para isso é fundamental, portanto, a atuação madura de Will Smith, brindando a plateia com um personagem que, à parte o carisma de sempre, em nada lembra seus papéis posteriores. Com um misto de desamparo, ginga e obsessão, ele constroi um Paul sempre surpreendente, que vai revelando camada por camada conforme a trama se desenvolve - também é notável o trabalho de edição de Peter Honess, que mantém a atenção do público sempre constante.
"Seis graus de separação" é um filme que cativa aos poucos, se revelando, em seu final, uma produção muito mais inteligente e instigante do que parecia em seus primeiros minutos. Uma pérola pouco conhecida capaz de conquistar o mais exigente espectador.
domingo
UM MUNDO PERFEITO
UM
MUNDO PERFEITO (A perfect world, 1993, Warner Bros, 138min) Direção:
Clint Eastwood. Roteiro: John Lee Hancock. Fotografia: Jack N. Green.
Montagem: Joel Cox, Ron Spang. Música: Lennie Niehaus. Figurino: Erica
Edell Phillips. Direção de arte/cenários: Henry Bumstead/Alan Hicks.
Produção: Clint Eastwood, Mark Johnson, David Valdes. Elenco: Clint
Eastwood, Kevin Costner, Laura Dern, T.J. Lowther, Keith Szarabajka, Leo
Burmester, Bradley Whitford, Jennifer Griffin. Estreia: 24/11/93
Em 1990, Kevin Costner fez sua estreia na direção com "Dança com lobos", um western revisionista e plácido que conquistou multidões e a Academia de Hollywood, que o premiou com sete Oscar (boa parte deles de merecimento duvidoso, frente a concorrentes como "Os bons companheiros", de Martin Scorsese e "O poderoso chefão, parte 3", de Francis Ford Coppola). Dois anos depois, o veterano Clint Eastwood repetiu o feito com "Os imperdoáveis", um faroeste melancólico que levou 4 Oscar (dessa vez com pleno merecimento). Uma reunião dos dois vencedores só poderia, então, resultar em um sucesso arrasador, especialmente se rompesse com a imagem de bom moço cultivada com tanto cuidado por Costner em sua carreira. O fato de "Um mundo perfeito" ter arrecadado pouco mais de 30 milhões de dólares no território americano, no entanto, mostrou que, das duas uma: ou o público não estava preparado para essa mudança na persona artística do ator ou o filme - no qual Eastwood acumulava as funções de ator, diretor e produtor - não era exatamente grande coisa. Na verdade, é um pouco das duas coisas: nem Kevin Costner é um ator de grande alcance dramático e nem a escolha de Clint de dirigir um filme moralmente dúbio foi acertada.
"Um mundo perfeito" está longe de ser um filme ruim e o fato de fugir do maniqueísmo reinante das produções made in Hollywood já seria motivo o bastante para ter todos os seus pecados perdoados. Seu problema é justamente oferecer a Kevin Costner, um ator limitado e que construiu sua trajetória com base em personagens de moral ilibada e de identificação imediata com o americano médio - ou seja, nada desafiadores - um papel complexo, repleto de aparentes incoerências e que não faz concessões ao romantismo do público feminino. Seu Butch Haynes até deixa vislumbrar uma certa hombridade em algumas atitudes, mas no final das contas, mesmo que mostre um lado mais ameno em determinados momentos, ele é um fora-da-lei, alguém que, sob o ponto de vista puramente moral, é o cara mau da história - como deixa bem claro o rastro de cadáveres que vai deixando para trás. Esse lado sombrio do ator não parece ter agradado à audiência, como mostrou a bilheteria escassa do filme, mas fica a dúvida sobre qual teria sido o resultado (ao menos em termos de crítica) se o ator central fosse alguém mais competente.
A direção de Eastwood para "Um mundo perfeito" segue seu padrão sóbrio, direto e simples. Sem firulas ou brincadeiras com a câmera, o eterno Dirty Harry conduz a trama sem sobressaltos, com sua tranquilidade habitual. Essa calma - uma característica quase imutável de seu trabalho como cineasta - de certa forma atrapalha o desenvolvimento da história, que pede um calor e uma tensão quase inexistentes em sua forma quase acadêmica. O estilo cool de Eastwood talvez não tenha sido o mais apropriado para mostrar o relacionamento entre um perigoso fugitivo e seu refém, um menino de oito anos de idade sem uma imagem paterna na qual se mirar. A emoção e o calor necessários para envolver o público inexistem e a frieza com que a corrida do chefe de polícia atrás dos dois é explorada são, certamente, a maior causa da indiferença com que o filme foi recebido, apesar de suas qualidades.
E qualidades não faltam: a bela fotografia de Jack N. Green é exemplar e o roteiro de John Lee Hancock - que surpreendentemente anos depois cometeria "Um sonho possível" (09), um amontoado dos mais constrangedores clichês dramáticos do cinema - é inteligente ao eleger como herói um homem repleto de falhas e crimes. Até mesmo o plot central (um foragido sequestra um menino, filho de uma testemunha de Jeová que até então o privava de todos os prazeres mundanos permitidos a qualquer criança, e forja com ele uma amizade inusitada enquanto é perseguido pela polícia, ansiosa em fazê-lo voltar para trás das grades) funciona, principalmente por causa da atuação espontânea e encantadora do novato T.J. Lowther. Mas é decepcionante que um filme com tantas possibilidades tenha se transformado em apenas mais um filme comum. De Eastwood sempre se espera mais.
Em 1990, Kevin Costner fez sua estreia na direção com "Dança com lobos", um western revisionista e plácido que conquistou multidões e a Academia de Hollywood, que o premiou com sete Oscar (boa parte deles de merecimento duvidoso, frente a concorrentes como "Os bons companheiros", de Martin Scorsese e "O poderoso chefão, parte 3", de Francis Ford Coppola). Dois anos depois, o veterano Clint Eastwood repetiu o feito com "Os imperdoáveis", um faroeste melancólico que levou 4 Oscar (dessa vez com pleno merecimento). Uma reunião dos dois vencedores só poderia, então, resultar em um sucesso arrasador, especialmente se rompesse com a imagem de bom moço cultivada com tanto cuidado por Costner em sua carreira. O fato de "Um mundo perfeito" ter arrecadado pouco mais de 30 milhões de dólares no território americano, no entanto, mostrou que, das duas uma: ou o público não estava preparado para essa mudança na persona artística do ator ou o filme - no qual Eastwood acumulava as funções de ator, diretor e produtor - não era exatamente grande coisa. Na verdade, é um pouco das duas coisas: nem Kevin Costner é um ator de grande alcance dramático e nem a escolha de Clint de dirigir um filme moralmente dúbio foi acertada.
"Um mundo perfeito" está longe de ser um filme ruim e o fato de fugir do maniqueísmo reinante das produções made in Hollywood já seria motivo o bastante para ter todos os seus pecados perdoados. Seu problema é justamente oferecer a Kevin Costner, um ator limitado e que construiu sua trajetória com base em personagens de moral ilibada e de identificação imediata com o americano médio - ou seja, nada desafiadores - um papel complexo, repleto de aparentes incoerências e que não faz concessões ao romantismo do público feminino. Seu Butch Haynes até deixa vislumbrar uma certa hombridade em algumas atitudes, mas no final das contas, mesmo que mostre um lado mais ameno em determinados momentos, ele é um fora-da-lei, alguém que, sob o ponto de vista puramente moral, é o cara mau da história - como deixa bem claro o rastro de cadáveres que vai deixando para trás. Esse lado sombrio do ator não parece ter agradado à audiência, como mostrou a bilheteria escassa do filme, mas fica a dúvida sobre qual teria sido o resultado (ao menos em termos de crítica) se o ator central fosse alguém mais competente.
A direção de Eastwood para "Um mundo perfeito" segue seu padrão sóbrio, direto e simples. Sem firulas ou brincadeiras com a câmera, o eterno Dirty Harry conduz a trama sem sobressaltos, com sua tranquilidade habitual. Essa calma - uma característica quase imutável de seu trabalho como cineasta - de certa forma atrapalha o desenvolvimento da história, que pede um calor e uma tensão quase inexistentes em sua forma quase acadêmica. O estilo cool de Eastwood talvez não tenha sido o mais apropriado para mostrar o relacionamento entre um perigoso fugitivo e seu refém, um menino de oito anos de idade sem uma imagem paterna na qual se mirar. A emoção e o calor necessários para envolver o público inexistem e a frieza com que a corrida do chefe de polícia atrás dos dois é explorada são, certamente, a maior causa da indiferença com que o filme foi recebido, apesar de suas qualidades.
E qualidades não faltam: a bela fotografia de Jack N. Green é exemplar e o roteiro de John Lee Hancock - que surpreendentemente anos depois cometeria "Um sonho possível" (09), um amontoado dos mais constrangedores clichês dramáticos do cinema - é inteligente ao eleger como herói um homem repleto de falhas e crimes. Até mesmo o plot central (um foragido sequestra um menino, filho de uma testemunha de Jeová que até então o privava de todos os prazeres mundanos permitidos a qualquer criança, e forja com ele uma amizade inusitada enquanto é perseguido pela polícia, ansiosa em fazê-lo voltar para trás das grades) funciona, principalmente por causa da atuação espontânea e encantadora do novato T.J. Lowther. Mas é decepcionante que um filme com tantas possibilidades tenha se transformado em apenas mais um filme comum. De Eastwood sempre se espera mais.
sábado
UMA BABÁ QUASE PERFEITA
UMA
BABÁ QUASE PERFEITA (Mrs. Doubtfire, 1993, 20th Century Fox, 125min)
Direção: Chris Columbus. Roteiro: Randi Mayem Singer, Leslie Dixon,
romance "Alias Madame Doubtfire", de Anne Fine. Fotografia: Donald
McAlpine. Montagem: Raja Gosnell. Música: Howard Shore. Figurino: Marit
Allen. Direção de arte/cenários: Angelo Graham/Garrett Lewis. Produção
executiva: Matthew Rushton. Produção: Mark Radcliffe, Robin Williams.
Elenco: Robin Williams, Sally Field, Pierce Brosnan, Harvey Fierstein,
Lisa Jakub, Matthew Lawrence, Mara Wilson, Robert Prosky. Estreia:
24/11/93
Vencedor do Oscar de Melhor Maquiagem
Vencedor de 2 Golden Globes: Melhor Filme Comédia/Musical, Melhor Ator Comédia/Musical (Robin Williams)
Em 1992, o ator Robin Williams foi do céu ao inferno em termos de bilheteria: enquanto a anti-belicista comédia "Toys, a revolta dos brinquedos", de Barry Levinson não despertou o interesse de ninguém da plateia e saiu de cartaz como se nunca tivesse existido, a animação "Aladim" se tornou um dos maiores sucessos comerciais do ano e lhe rendeu um Golden Globe especial pela dublagem do gênio da lâmpada, uma dos maiores (senão a maior) qualidade da produção. Esse seu talento para a improvisação e para o humor escrachado já havia sido o maior responsável por sua primeira indicação ao Oscar, em 1987, por "Bom dia, Vietnã", do mesmo Levinson, mas parecia ter sumido em seus trabalhos seguintes no cinema, onde explorou (muito bem) seu lado de ator dramático. Indicado outras duas vezes ao Oscar de melhor ator - pelo inesquecível "Sociedade dos poetas mortos" (90) e pelo lúdico "O pescador de ilusões" (91) - Williams devia a seu público uma comédia que lhe devolvesse o status de humorista que havia conquistado nos palcos americanos. Foi então que ele apareceu com "Uma babá quase perfeita", um filme pequeno (25 milhões de dólares de orçamento) que acabou sua carreira nos cinemas americanos com mais de 200 milhões arrecadados e dois Golden Globes na prateleira: melhor comédia e melhor ator em comédia/musical.
Dirigido por Chris Columbus - um especialista em filmes para a família que tinha entre seus êxitos o mastodôntico sucesso "Esqueceram de mim" (90) - "Uma babá quase perfeita" tem como objetivo puro e único o entretenimento, sem ambições outras que não fazer a plateia rir do começo ao fim. Com Williams em cena, isso não é nada difícil. Dotado de um histrionismo nato e um timing cômico impecável, ele deita e rola na pele de Daniel Hillard, um ator desempregado que passa pelo pior período de sua vida: não apenas ele está sem trabalhar no que ama (e é obrigado a um serviço pouco empolgante nos bastidores de uma emissora de TV local) como acaba de se divorciar da esposa, Miranda (Sally Field), uma bem-sucedida arquiteta que cansou-se sua pretensa irresponsabilidade. Inconformado com a determinação judicial que lhe permite ver seus três filhos apenas uma vez por semana, Daniel tem uma ideia maquiavélica: sabendo que Miranda está à procura de uma governanta que fique com as crianças no período pós-escola, ele cria, com a ajuda de seu irmão maquiador e seu talento para a atuação, a babá perfeita: Mrs. Doubtfire, uma inglesa sessentona, de modos rígidos e dona de um currículo invejável. Obviamente Miranda cai de amores pela nova empregada - e Daniel aproveita a situação para colocar areia no novo interesse romântico da ex-mulher, o antigo namorado Stuart (Pierce Brosnan).
Desvencilhando-se facilmente do estigma de ser um filme de uma piada só, "Uma babá quase perfeita" consegue, ao mesmo tempo, ser uma comédia pastelão da melhor estirpe - com Williams vendo seus seios de mentira pegando fogo, sua máscara voando pela janela e sua dentadura caindo dentro de um copo de vinho no meio de um jantar - e um sofisticado manancial de citações culturais contemporâneas vindas da metralhadora giratória que é o ator - são lembrados, visual ou verbalmente, Barbra Streisand, "Psicose", "Crepúsculo dos deuses" e "Dança com lobos", entre outros. Essa mescla de humor popular com a sutileza da comédia referencial talvez tenha sido, ao lado do talento de seu protagonista, o responsável pelo filme ter agradado tanto e à tanta gente. É difícil escapar das risadas em "Uma babá quase perfeita", seja das palhaçadas visuais criadas por Columbus e Williams ou pelo crescendo de situações embaraçosas que o roteiro vai criando crescentemente até o clímax - engraçadíssimo - em um restaurante sofisticado, onde Daniel (e Mrs. Doubtfire) estão presentes ao mesmo tempo. Só vendo para entender.
Contando ainda com a simpatia natural de Sally Field como Miranda Hillard e o futuro 007 Pierce Brosnan como o rival do protagonista - além de uma maquiagem extraordinária que levou o Oscar da categoria - "Uma babá quase perfeita" ainda arruma espaço para a emoção: dificilmente filhos de pais separados conseguem segurar as lágrimas em seus momentos finais, repletos de uma sinceridade ímpar que conquistaram milhares de espectadores pelo mundo. Uma feliz reunião de ingenuidade, bom humor e o talento único de Robin Williams em fazer rir e chorar, é um filme sem contra-indicações, capaz de agradar aos pais, aos filhos e aos mau-humorados de plantão. Um triunfo do humor.
Vencedor do Oscar de Melhor Maquiagem
Vencedor de 2 Golden Globes: Melhor Filme Comédia/Musical, Melhor Ator Comédia/Musical (Robin Williams)
Em 1992, o ator Robin Williams foi do céu ao inferno em termos de bilheteria: enquanto a anti-belicista comédia "Toys, a revolta dos brinquedos", de Barry Levinson não despertou o interesse de ninguém da plateia e saiu de cartaz como se nunca tivesse existido, a animação "Aladim" se tornou um dos maiores sucessos comerciais do ano e lhe rendeu um Golden Globe especial pela dublagem do gênio da lâmpada, uma dos maiores (senão a maior) qualidade da produção. Esse seu talento para a improvisação e para o humor escrachado já havia sido o maior responsável por sua primeira indicação ao Oscar, em 1987, por "Bom dia, Vietnã", do mesmo Levinson, mas parecia ter sumido em seus trabalhos seguintes no cinema, onde explorou (muito bem) seu lado de ator dramático. Indicado outras duas vezes ao Oscar de melhor ator - pelo inesquecível "Sociedade dos poetas mortos" (90) e pelo lúdico "O pescador de ilusões" (91) - Williams devia a seu público uma comédia que lhe devolvesse o status de humorista que havia conquistado nos palcos americanos. Foi então que ele apareceu com "Uma babá quase perfeita", um filme pequeno (25 milhões de dólares de orçamento) que acabou sua carreira nos cinemas americanos com mais de 200 milhões arrecadados e dois Golden Globes na prateleira: melhor comédia e melhor ator em comédia/musical.
Dirigido por Chris Columbus - um especialista em filmes para a família que tinha entre seus êxitos o mastodôntico sucesso "Esqueceram de mim" (90) - "Uma babá quase perfeita" tem como objetivo puro e único o entretenimento, sem ambições outras que não fazer a plateia rir do começo ao fim. Com Williams em cena, isso não é nada difícil. Dotado de um histrionismo nato e um timing cômico impecável, ele deita e rola na pele de Daniel Hillard, um ator desempregado que passa pelo pior período de sua vida: não apenas ele está sem trabalhar no que ama (e é obrigado a um serviço pouco empolgante nos bastidores de uma emissora de TV local) como acaba de se divorciar da esposa, Miranda (Sally Field), uma bem-sucedida arquiteta que cansou-se sua pretensa irresponsabilidade. Inconformado com a determinação judicial que lhe permite ver seus três filhos apenas uma vez por semana, Daniel tem uma ideia maquiavélica: sabendo que Miranda está à procura de uma governanta que fique com as crianças no período pós-escola, ele cria, com a ajuda de seu irmão maquiador e seu talento para a atuação, a babá perfeita: Mrs. Doubtfire, uma inglesa sessentona, de modos rígidos e dona de um currículo invejável. Obviamente Miranda cai de amores pela nova empregada - e Daniel aproveita a situação para colocar areia no novo interesse romântico da ex-mulher, o antigo namorado Stuart (Pierce Brosnan).
Desvencilhando-se facilmente do estigma de ser um filme de uma piada só, "Uma babá quase perfeita" consegue, ao mesmo tempo, ser uma comédia pastelão da melhor estirpe - com Williams vendo seus seios de mentira pegando fogo, sua máscara voando pela janela e sua dentadura caindo dentro de um copo de vinho no meio de um jantar - e um sofisticado manancial de citações culturais contemporâneas vindas da metralhadora giratória que é o ator - são lembrados, visual ou verbalmente, Barbra Streisand, "Psicose", "Crepúsculo dos deuses" e "Dança com lobos", entre outros. Essa mescla de humor popular com a sutileza da comédia referencial talvez tenha sido, ao lado do talento de seu protagonista, o responsável pelo filme ter agradado tanto e à tanta gente. É difícil escapar das risadas em "Uma babá quase perfeita", seja das palhaçadas visuais criadas por Columbus e Williams ou pelo crescendo de situações embaraçosas que o roteiro vai criando crescentemente até o clímax - engraçadíssimo - em um restaurante sofisticado, onde Daniel (e Mrs. Doubtfire) estão presentes ao mesmo tempo. Só vendo para entender.
Contando ainda com a simpatia natural de Sally Field como Miranda Hillard e o futuro 007 Pierce Brosnan como o rival do protagonista - além de uma maquiagem extraordinária que levou o Oscar da categoria - "Uma babá quase perfeita" ainda arruma espaço para a emoção: dificilmente filhos de pais separados conseguem segurar as lágrimas em seus momentos finais, repletos de uma sinceridade ímpar que conquistaram milhares de espectadores pelo mundo. Uma feliz reunião de ingenuidade, bom humor e o talento único de Robin Williams em fazer rir e chorar, é um filme sem contra-indicações, capaz de agradar aos pais, aos filhos e aos mau-humorados de plantão. Um triunfo do humor.
sexta-feira
VESTÍGIOS DO DIA
VESTÍGIOS
DO DIA (The remains of the day, 1993, Merchant Ivory
Productions/Columbia Pictures Corporation, 134min) Direção: James Ivory.
Roteiro: Ruth Prawer Jhabvala, romance
de Kazuo Ishiguro. Fotografia: Tony Pierce-Roberts. Montagem: Andrew
Marcus. Música: Richard Robbins Figurino: Jenny Beavan, John Bright.
Direção de arte/cenários: Luciana Arrighi/Ian Whittaker. Produção
executiva: Paul Bradley. Produção: John Calley, Ismail Merchant, Mike
Nichols. Elenco: Anthony Hopkins, Emma Thompson, Christopher Reeve,
James Fox, Ben Chaplin, Hugh Grant. Estreia: 05/11/93
8 indicações ao Oscar: Melhor Filme, Diretor (James Ivory), Ator (Anthony Hopkins), Atriz (Emma Thompson), Roteiro Adaptado, Trilha Sonora Original, Figurino, Direção de Arte/Cenários
Em 1992, o diretor James Ivory e os atores Anthony Hopkins e Emma Thompson trabalharam juntos em "Retorno a Howard's End", adaptação do romance de E.M. Forster que, a despeito dos elogios entusiasmados da crítica, dos inúmeros prêmios e do Oscar de melhor atriz, beirava a chatice extrema (uma verdade que os fãs do cineasta jamais irão reconhecer). Quando eles anunciaram que iriam se reencontrar nas telas em uma versão do livro "Vestígios do dia", de Kazuo Ishiguro, todo mundo ficou esperando mais do mesmo: um longo e entediante drama sobre a Inglaterra do passado feito para encantar a Academia mas capaz de causar irreparável sono na plateia. Ledo engano. Um avassalador estudo sobre paixões reprimidas, a dedicação obsessiva a um ofício, as transformações políticas de um mundo pré-guerra e um delicado romance platônico, o filme não só arrebatou oito merecidas indicações ao Oscar - saiu de mãos vazias da cerimônia porque bateu de frente com Steven Spielberg e seu "A lista de Schindler" - como derreteu o coração dos espectadores com sua maturidade e sutileza.
Tendo silêncios eloquentes, lágrimas contidas e suspiros abafados como coadjuvantes de uma história de amor reprimido, "Vestígios do dia" acompanha com delicadeza o nunca consumado amor entre dois leais e dedicados serviçais de um aristocrata britânico em um país em vias de embarcar na II Guerra Mundial. Mesclando com rara inteligência comentários políticos que indicam claramente as inclinações nazistas que levaram Lord Darlington (James Fox, ótimo) à decadência moral pós-conflito e o romance devastador entre os protagonistas, o roteiro de Ruth Prawer Jhabvala - colaboradora habitual do diretor - oferece material de sobra para o show de Hopkins e Thompson, em atuações cujo minimalismo é a principal qualidade. Não é preciso muito para que, juntos em cena, os dois atores transmitam uma imensidade de sentimentos apenas com o olhar. Ao público, resta se emocionar e aplaudir, se envolvendo sem reservas com dois personagens tão distantes e ao mesmo tempo tão próximos.
Narrado em flashback, "Vestígios do dia" começa na década de 50, décadas depois do auge da mansão Darlington Hall, de propriedade de um aristocrata inglês que viu nascer, em sua propriedade, a aliança europeia que apoiaria o social-nacionalismo alemão. Trabalhando para um milionário americano (Christopher Reeve), o copeiro Mr. Stevens (Anthony Hopkins) recebe uma carta escrita por uma antiga colega, Mrs. Kenton (Emma Thompson), que trabalhava como governanta e abandonou o emprego para casar-se. No caminho para reencontrar-se com ela, o dedicado empregado relembra sua trajetória profissional e sua dedicação cega a seu patrão - uma lealdade e uma seriedade auto-imposta que o impediu até mesmo de chorar devidamente a morte de seu pai, com quem compartilhava a seriedade. Extremamente rígido em relação a seus deveres, Stevens presencia as mudanças políticas de seu país com a mesma atenção que dispensa à limpeza da prataria e à disposição correta dos talheres à mesa. Tal comportamento o impede de declarar o amor que sente por Kenton, também apaixonada, mas presa às convenções sociais. O amor platônico entre os dois é responsável por cenas de apertar o coração, como a famosa sequência em que a governanta descobre, através de um livro de poesias, que existe um coração por trás da séria fachada do mordomo.
Centrado basicamente nas emoções contidas de seus dois protagonistas - e tendo o período político anterior à II Guerra como um poderoso e apropriado pano de fundo - o melhor filme de James Ivory também se beneficia de uma produção caprichada, que emoldura com perfeição os dolorosos momentos por que passam os personagens. A reconstituição de época - tanto a direção de arte quanto o figurino também concorrem à estatueta dourada - e a trilha sonora adequada são elementos utilizados com extrema sobriedade pelo cineasta, ilustrando a passagem de tempo e as dores de um amor não consumado como poucas produções de sua época. "Retorno a Howard's End" continua sendo uma chatice. Mas "Vestígios do dia" compensa - e muito - todos os pecados anteriores de seu criador.
8 indicações ao Oscar: Melhor Filme, Diretor (James Ivory), Ator (Anthony Hopkins), Atriz (Emma Thompson), Roteiro Adaptado, Trilha Sonora Original, Figurino, Direção de Arte/Cenários
Em 1992, o diretor James Ivory e os atores Anthony Hopkins e Emma Thompson trabalharam juntos em "Retorno a Howard's End", adaptação do romance de E.M. Forster que, a despeito dos elogios entusiasmados da crítica, dos inúmeros prêmios e do Oscar de melhor atriz, beirava a chatice extrema (uma verdade que os fãs do cineasta jamais irão reconhecer). Quando eles anunciaram que iriam se reencontrar nas telas em uma versão do livro "Vestígios do dia", de Kazuo Ishiguro, todo mundo ficou esperando mais do mesmo: um longo e entediante drama sobre a Inglaterra do passado feito para encantar a Academia mas capaz de causar irreparável sono na plateia. Ledo engano. Um avassalador estudo sobre paixões reprimidas, a dedicação obsessiva a um ofício, as transformações políticas de um mundo pré-guerra e um delicado romance platônico, o filme não só arrebatou oito merecidas indicações ao Oscar - saiu de mãos vazias da cerimônia porque bateu de frente com Steven Spielberg e seu "A lista de Schindler" - como derreteu o coração dos espectadores com sua maturidade e sutileza.
Tendo silêncios eloquentes, lágrimas contidas e suspiros abafados como coadjuvantes de uma história de amor reprimido, "Vestígios do dia" acompanha com delicadeza o nunca consumado amor entre dois leais e dedicados serviçais de um aristocrata britânico em um país em vias de embarcar na II Guerra Mundial. Mesclando com rara inteligência comentários políticos que indicam claramente as inclinações nazistas que levaram Lord Darlington (James Fox, ótimo) à decadência moral pós-conflito e o romance devastador entre os protagonistas, o roteiro de Ruth Prawer Jhabvala - colaboradora habitual do diretor - oferece material de sobra para o show de Hopkins e Thompson, em atuações cujo minimalismo é a principal qualidade. Não é preciso muito para que, juntos em cena, os dois atores transmitam uma imensidade de sentimentos apenas com o olhar. Ao público, resta se emocionar e aplaudir, se envolvendo sem reservas com dois personagens tão distantes e ao mesmo tempo tão próximos.
Narrado em flashback, "Vestígios do dia" começa na década de 50, décadas depois do auge da mansão Darlington Hall, de propriedade de um aristocrata inglês que viu nascer, em sua propriedade, a aliança europeia que apoiaria o social-nacionalismo alemão. Trabalhando para um milionário americano (Christopher Reeve), o copeiro Mr. Stevens (Anthony Hopkins) recebe uma carta escrita por uma antiga colega, Mrs. Kenton (Emma Thompson), que trabalhava como governanta e abandonou o emprego para casar-se. No caminho para reencontrar-se com ela, o dedicado empregado relembra sua trajetória profissional e sua dedicação cega a seu patrão - uma lealdade e uma seriedade auto-imposta que o impediu até mesmo de chorar devidamente a morte de seu pai, com quem compartilhava a seriedade. Extremamente rígido em relação a seus deveres, Stevens presencia as mudanças políticas de seu país com a mesma atenção que dispensa à limpeza da prataria e à disposição correta dos talheres à mesa. Tal comportamento o impede de declarar o amor que sente por Kenton, também apaixonada, mas presa às convenções sociais. O amor platônico entre os dois é responsável por cenas de apertar o coração, como a famosa sequência em que a governanta descobre, através de um livro de poesias, que existe um coração por trás da séria fachada do mordomo.
Centrado basicamente nas emoções contidas de seus dois protagonistas - e tendo o período político anterior à II Guerra como um poderoso e apropriado pano de fundo - o melhor filme de James Ivory também se beneficia de uma produção caprichada, que emoldura com perfeição os dolorosos momentos por que passam os personagens. A reconstituição de época - tanto a direção de arte quanto o figurino também concorrem à estatueta dourada - e a trilha sonora adequada são elementos utilizados com extrema sobriedade pelo cineasta, ilustrando a passagem de tempo e as dores de um amor não consumado como poucas produções de sua época. "Retorno a Howard's End" continua sendo uma chatice. Mas "Vestígios do dia" compensa - e muito - todos os pecados anteriores de seu criador.
quinta-feira
AMOR À QUEIMA-ROUPA
AMOR
À QUEIMA-ROUPA (True romance, 1993, Morgan Creek Productions, 120min)
Direção: Tony Scott. Roteiro: Quentin Tarantino. Fotografia: Jeffrey L.
Kimball. Montagem: Michael Tronick, Christian Wagner. Música: Hans
Zimmer. Figurino: Susan Becker. Direção de arte/cenários: Benjamín
Fernández/Thomas L. Roysden. Produção executiva: James G. Robinson, Bob
Weinstein, Harvey Weinstein. Produção: Gary Barber, Samuel Hadida, Steve
Perry, Bill Unger. Elenco: Christian Slater, Patricia Arquette, Gary
Oldman, Christopher Walken, Dennis Hopper, Brad Pitt, Saul Rubinek,
Michael Rapaport, James Gandolfini, Samuel L. Jackson, Val Kilmer,
Bronson Pinchot, Chris Penn, Tom Sizemore, Maria Pitillo. Estreia:
10/9/93
Antes de tornar-se febre e ser considerado o "novo Martin Scorsese" graças ao sucesso imediato de seu violento "Cães de aluguel" (92), Quentin Tarantino trabalhava como gerente de uma video-locadora, como qualquer fã de cinema bem informado sabe. O que talvez pouca gente saiba é que, durante esse período, ele e seu colega Roger Avary trabalharam em uma gigantesca história com mais de 500 páginas recheada de todas as características que posteriormente marcariam a obra do mais venerado cineasta da década de 90. Logicamente um roteiro de 500 páginas jamais seria produzido, nem mesmo pelo mais alucinado estúdio de Hollywood e a trama acabou sendo dividida em dois filmes que aparentemente nada tem em comum: o primeiro, "Assassinos por natureza", acabou se transformando em um gigantesco manifesto anti-violência dirigido por Oliver Stone e anabolizado com um excesso de efeitos de filmagem que descaracterizou o texto de Tarantino e provocou duras críticas de seu autor (apesar de ser um grande filme ainda não devidamente reconhecido por todo mundo). O segundo, com narrativa mais tradicional - mas ainda assim extremamente violento - é "Amor à queima-roupa", vendido por meros 50 mil dólares e dirigido pelo inglês Tony Scott, irmão de Ridley e mais conhecido como o autor de filmes bem-sucedidos comercialmente mas ocos em conteúdo, como "Top Gun, ases indomáveis" (86) e "Um tira da pesada II" (87). De posse do roteiro ágil e sem melindres de Tarantino - e com um grande elenco em dias pra lá de inspirados - Scott conseguiu assinar o melhor filme de sua carreira, tragicamente encerrada em agosto de 2012 com um suicídio que abalou Hollywood.
Apesar de parecer estranha a afirmação, "Amor à queima-roupa" é, como diz o título, uma história de amor, ainda que revestida de todas as obsessões e neuroses da década de 90 - bem com de suas referências à cultura contemporânea e às cenas de sexo bem fotografadas e quentes na medida certa. A fotogênica (ainda que um tanto canastrona) dupla central serve perfeitamente às intenções da trama, rocambolesca, exagerada e extremamente divertida. Clarence (Christian Slater no melhor papel de sua carreira) é um jovem atendente de uma loja de quadrinhos raros (referência autobiográfica de Tarantino) que sofre com sua falta de aptidões sociais. Na noite de seu aniversário, ele vai ao cinema assistir a uma sessão tripla de filmes de kung-fu e conhece a doce Alabama (Patricia Arquette), com quem sente uma identificação imediata. Os dois passam a noite juntos, se apaixonam e a verdade cai sobre eles como um balde de água fria: ela é prostituta e foi contratada pelo chefe do rapaz como presente de aniversário. Ao invés de ficar arrasado e sentir-se traído, Clarence sente na confissão da moça uma prova de sinceridade e a pede em casamento. Para que possam viver sua vida em paz, porém, eles precisam se livrar do cafetão de Alabama, o bizarro Drexl (Gary Oldman). E é aí que os problemas realmente começam.
Depois de um confronto com Drexl, em que tanto o cafetão quanto todos os seus comparsas são mortos, Clarence fica de posse de uma mala com 500 mil dólares em cocaína. Vendo nessa trágica circunstância a chance de ficar rico e poder viver ao lado da amada Alabama, eles viajam até Hollywood para vender a droga ao produtor de cinema (Saul Rubinek), mas não sabem que atrás deles está o verdadeiro dono da mercadoria - um mafioso pouco dado a sutilezas que não hesita em matar quem atrapalhe seu caminho - e a polícia de Los Angeles, disposta a tudo para desbaratar a quadrilha de traficantes. O resultado, como se poderia esperar, é um daqueles massacres que só Hollywood sabe orquestrar sem ofender a suscetibilidade da plateia. Exercitando a violência como poucas vezes em sua filmografia, Scott deita e rola em sequências feitas para o delírio dos fãs do gênero - em especial a luta entre Alabama e o capanga vivido pelo saudoso James Gandolfini, em que até mesmo um saca-rolhas serve de arma. É para nenhum fã de sangue botar defeito.
Mas, por trás da violência, das sacadas pop de Quentin Tarantino e do elenco cool, "Amor à queima-roupa" é um bom filme? Sem dúvida. Apesar de nunca ter conseguido realizar antes um filme que combinasse o visual apurado de suas produções com um conteúdo digno de tanto capricho, aqui ele tem a chance de explorar tanto a direção de atores - o que não é difícil quando se tem em cena dois monstros como Christopher Walken e Dennis Hopper, por exemplo - quanto o desenvolvimento de uma trama que, apesar dos clichês (utilizados com destreza ímpar), é inteligente e bem construída. O ritmo imposto a partir da morte de Drexl é alucinado, equilibrado com doses de humor negro e participações especiais que vão desde um Brad Pitt chapado em todas as cenas até a um Val Kilmer que não mostra o rosto como o fantasma de Elvis Presley que aconselha Clarence em suas aventuras. É uma história de amor ao gosto de Quentin Tarantino, com tudo que faz do seu cinema bom ou ruim, dependendo do ponto de vista. É pegar ou largar.
Antes de tornar-se febre e ser considerado o "novo Martin Scorsese" graças ao sucesso imediato de seu violento "Cães de aluguel" (92), Quentin Tarantino trabalhava como gerente de uma video-locadora, como qualquer fã de cinema bem informado sabe. O que talvez pouca gente saiba é que, durante esse período, ele e seu colega Roger Avary trabalharam em uma gigantesca história com mais de 500 páginas recheada de todas as características que posteriormente marcariam a obra do mais venerado cineasta da década de 90. Logicamente um roteiro de 500 páginas jamais seria produzido, nem mesmo pelo mais alucinado estúdio de Hollywood e a trama acabou sendo dividida em dois filmes que aparentemente nada tem em comum: o primeiro, "Assassinos por natureza", acabou se transformando em um gigantesco manifesto anti-violência dirigido por Oliver Stone e anabolizado com um excesso de efeitos de filmagem que descaracterizou o texto de Tarantino e provocou duras críticas de seu autor (apesar de ser um grande filme ainda não devidamente reconhecido por todo mundo). O segundo, com narrativa mais tradicional - mas ainda assim extremamente violento - é "Amor à queima-roupa", vendido por meros 50 mil dólares e dirigido pelo inglês Tony Scott, irmão de Ridley e mais conhecido como o autor de filmes bem-sucedidos comercialmente mas ocos em conteúdo, como "Top Gun, ases indomáveis" (86) e "Um tira da pesada II" (87). De posse do roteiro ágil e sem melindres de Tarantino - e com um grande elenco em dias pra lá de inspirados - Scott conseguiu assinar o melhor filme de sua carreira, tragicamente encerrada em agosto de 2012 com um suicídio que abalou Hollywood.
Apesar de parecer estranha a afirmação, "Amor à queima-roupa" é, como diz o título, uma história de amor, ainda que revestida de todas as obsessões e neuroses da década de 90 - bem com de suas referências à cultura contemporânea e às cenas de sexo bem fotografadas e quentes na medida certa. A fotogênica (ainda que um tanto canastrona) dupla central serve perfeitamente às intenções da trama, rocambolesca, exagerada e extremamente divertida. Clarence (Christian Slater no melhor papel de sua carreira) é um jovem atendente de uma loja de quadrinhos raros (referência autobiográfica de Tarantino) que sofre com sua falta de aptidões sociais. Na noite de seu aniversário, ele vai ao cinema assistir a uma sessão tripla de filmes de kung-fu e conhece a doce Alabama (Patricia Arquette), com quem sente uma identificação imediata. Os dois passam a noite juntos, se apaixonam e a verdade cai sobre eles como um balde de água fria: ela é prostituta e foi contratada pelo chefe do rapaz como presente de aniversário. Ao invés de ficar arrasado e sentir-se traído, Clarence sente na confissão da moça uma prova de sinceridade e a pede em casamento. Para que possam viver sua vida em paz, porém, eles precisam se livrar do cafetão de Alabama, o bizarro Drexl (Gary Oldman). E é aí que os problemas realmente começam.
Depois de um confronto com Drexl, em que tanto o cafetão quanto todos os seus comparsas são mortos, Clarence fica de posse de uma mala com 500 mil dólares em cocaína. Vendo nessa trágica circunstância a chance de ficar rico e poder viver ao lado da amada Alabama, eles viajam até Hollywood para vender a droga ao produtor de cinema (Saul Rubinek), mas não sabem que atrás deles está o verdadeiro dono da mercadoria - um mafioso pouco dado a sutilezas que não hesita em matar quem atrapalhe seu caminho - e a polícia de Los Angeles, disposta a tudo para desbaratar a quadrilha de traficantes. O resultado, como se poderia esperar, é um daqueles massacres que só Hollywood sabe orquestrar sem ofender a suscetibilidade da plateia. Exercitando a violência como poucas vezes em sua filmografia, Scott deita e rola em sequências feitas para o delírio dos fãs do gênero - em especial a luta entre Alabama e o capanga vivido pelo saudoso James Gandolfini, em que até mesmo um saca-rolhas serve de arma. É para nenhum fã de sangue botar defeito.
Mas, por trás da violência, das sacadas pop de Quentin Tarantino e do elenco cool, "Amor à queima-roupa" é um bom filme? Sem dúvida. Apesar de nunca ter conseguido realizar antes um filme que combinasse o visual apurado de suas produções com um conteúdo digno de tanto capricho, aqui ele tem a chance de explorar tanto a direção de atores - o que não é difícil quando se tem em cena dois monstros como Christopher Walken e Dennis Hopper, por exemplo - quanto o desenvolvimento de uma trama que, apesar dos clichês (utilizados com destreza ímpar), é inteligente e bem construída. O ritmo imposto a partir da morte de Drexl é alucinado, equilibrado com doses de humor negro e participações especiais que vão desde um Brad Pitt chapado em todas as cenas até a um Val Kilmer que não mostra o rosto como o fantasma de Elvis Presley que aconselha Clarence em suas aventuras. É uma história de amor ao gosto de Quentin Tarantino, com tudo que faz do seu cinema bom ou ruim, dependendo do ponto de vista. É pegar ou largar.
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