GÊMEOS,
MÓRBIDA SEMELHANÇA (Dead ringers, 1988, Morgan Creek Productions,
116min) Direção: David Cronenberg. Roteiro: David Cronenberg, Norman
Snider, romance "Twins", de Bari Wood, Jack Geasland. Fotografia: Peter
Suschitzky. Montagem: Ronald Sanders. Música: Howard Shore. Figurino:
Denise Cronenberg. Direção de arte/cenários: Carol Spier/Elinor Rose
Galbraith. Produção executiva: Carol Baum, Sylvio Tabet. Produção: Marc
Boyman, David Cronenberg. Elenco: Jeremy Irons, Genevieve Bujold, Heide
von Palleske, Barbara Gordon, Shirley Douglas. Estreia: 08/9/88
Um
romance chamado "Twins", escrito por Barri Wood e Jack Geasland e
publicado em 1977, contava a trágica história dos irmãos Stewart e Cyril
Marcus, ocorrida no Upper East Side de Manhattan em 1975:
ginecologistas que atuavam em conjunto, os dois acabaram entrando em uma
espiral de vício em barbitúricos que acabou os levando a uma morte que
chocou a alta sociedade nova-iorquina - berço de sua fama, de seu
sucesso e de sua decadência. Os detalhes da história - como o fato de um
dos irmãos tomar o lugar do outro frente a seus pacientes quando o
vício tornou-se irreversível e as circunstâncias bizarras que cercaram
seu fim - logicamente chamou a atenção do cinema. Mais ainda, chamou a
atenção de um dos poucos cineastas que seriam capazes de contá-la sem
apelar para o suspense barato ou o dramalhão edificante: o canadense
David Cronenberg. Vindo do sucesso de bilheteria de "A mosca" (86), que
lhe deu moral em Hollywood como um diretor bancável, ele realizou
"Gêmeos, mórbida semelhança", um filme perturbador e angustiante -
características habituais em sua filmografia - amparado em uma atuação
nada menos que sublime de Jeremy Irons nos papéis centrais. Injustamente
esquecido pela Academia - que só lhe daria o Oscar dois anos mais
tarde, por "O reverso da fortuna" (90) - Irons dá um show particular,
enriquecendo ainda mais uma trama forte e intrigante - e que deixou
muitas espectadoras pouco confortáveis ao visitar seus próprios
ginecologistas por um bom tempo.
No filme de Cronenberg
os gêmeos se chamam Beverly e Elliot Mantle e, assim como aqueles que
os inspiraram, dividem bem mais do que uma mera semelhança física que
impede a todos que os diferencie com facilidade: além da sociedade em
uma clínica de ginecologia e fertilidade assistida em Toronto (Canadá),
eles também tem o hábito (desconhecido por todos, obviamente) de
compartilhar amantes. A dinâmica de sua sociedade também implica no fato
de que Beverly é bem mais tímido e retraído do que Elliott, que
responde pela agenda social do empreendimento e tem um relacionamento
mais afável com as clientes enquanto o irmão é responsável pelas
pesquisas que fazem a fama dos dois. Sua rotina quase inalterável é
bruscamente interrompida, porém, quando entra em cena a famosa atriz
Claire Niveau (Geneviève Bujold), que procura a clínica devido à sua
dificuldade de engravidar. Fascinado, Elliot descobre que a atriz tem
uma trompa trifurcada - fato clinicamente raro - e acaba passando uma
noite com ela, apenas para, logo em seguida, deixar que Beverly também o
faça. Quando Beverly se apaixona por Claire, porém, sua personalidade
afável torna-se obsessiva e autodestrutiva - o que põe em risco toda a
reputação construída por ele e por Elliot.
Premiado
como melhor ator pelas associações de críticos de Chicago e Nova York,
Jeremy Irons nunca esteve melhor - nem mesmo em sua atuação premiada com
o Oscar. Diferentemente do que acontece com frequência com atores que
interpretam gêmeos, ele não faz questão de deixar evidente para a
audiência as diferenças entre seus personagens, confundindo o público da
mesma forma como os próprios irmãos acabam confundido suas
personalidades conforme a trama vai se desenrolando. De acordo com o
roteiro e com a direção de Cronenberg, os Mantle vão, aos poucos, se
fundindo um ao outro, eliminando a tênue linha que sempre os separou.
Assim que tal linha desaparece o filme vai se afundando em cenas cada
vez mais tensas e angustiantes, que convidam o público a compartilhar
uma atmosfera de pesadelo orquestrado com uma elegância grotesca e
feérica - em cenas que ficam na memória graças a seu desenho visual,
como as cirurgias com os instrumentos bizarros criados por Beverly sendo
realizadas como se fossem um ritual pagão, com os médicos todos
vestidos de um vermelho forte sob uma luz ofuscante. Somados à imersão
de Irons em seu trabalho, tais momentos de "Gêmeos, mórbida semelhança" o
elevam a um patamar acima dos dramas de suspense convencionais,
cutucando o público a ponto de incomodá-lo.
Se em seus
trabalhos imediatamente anteriores em Hollywood o diretor David
Cronenberg deixou um pouco de lado sua tendência à violência gráfica e
ao explícito (mesmo em "A mosca" eles estavam diluídos em uma espécie de
mainstream que o tornou imensamente popular), em "Gêmeos", ele
parece ter voltado para casa, para seus tempos de "Videodrome, a
síndrome do vídeo", em que brincava com o grotesco sem medo da reação
crítica e financeira à sua obra. Em "Gêmeos", ele parece ter encontrado
um equilíbrio entre a agressão quase gratuita de seus primeiros filmes e
a elegância (se é que se pode chamar assim um filme onde, em um
pesadelo, um personagem rompe com os dentes o que o mantinha preso no
corpo do irmão) que a experiência e a maturidade lhe deram. Talvez por
isso exista, dentro desse seu grande filme, a essência de toda a sua
filmografia.
Filmes, filmes e mais filmes. De todos os gêneros, países, épocas e níveis de qualidade. Afinal, a sétima arte não tem esse nome à toa.
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