Roman Polanski dirigindo uma
comédia? Baseada em texto teatral? Estrelado por Jodie Foster e Kate Winslet?
Antes que o estranhamento que tais questões possam suscitar, é bom lembrar que
nada disso é exatamente novo. Polanski assinou, no final dos anos 60, o
escrachado “A dança dos vampiros”, um quase clássico camp que tinha no elenco,
além dele mesmo, aquela que seria sua esposa e morreria assassinada a mando de
Charles Manson em agosto de 1969 – e que prova sem contestação que ele sabe ser
engraçado. Também assinou a direção de “A morte e a donzela”, peça escrita pelo
chileno Ariel Dorfman – o que não faz dele um estreante em transpor teatro para
as telas. E Jodie Foster e Kate Winslet não são novatas em fazer rir – Jodie
fez um hilariante par com Mel Gibson em “Maverick” (94) e Winslet demonstrou
bom timing cômico em “Brilho eterno
de uma mente sem lembranças” (04), que não era comédia mas tinha lá seus
momentos de graça. Sendo assim, “O deus da carnificina”, adaptado com extrema
fidelidade da peça da francesa Yasmina Reza não deve ser visto como um terreno
novo a ser desbravado pelo cineasta polonês – mesmo porque a quase
claustrofobia do filme remete a algumas das mais célebres obras de sua
carreira, como “O inquilino”, “Repulsa ao sexo” e “O bebê de Rosemary” (68),
não à toa parte da chamada “trilogia do apartamento” – na qual o texto de Reza
poderia tranquilamente ser inserida, não fosse o tom bem menos sóbrio e mais
leve. Uma comédia muito mais afeita a sorrisos do que gargalhadas, “O deus da
carnificina” também é coerente com a forma quase pessimista de Polanski
enxergar o mundo e o ser humano. Não é à toa que seus personagens vão
demonstrando, com o passar das horas, lados pouco louváveis de suas
personalidades anteriormente tão polidas pelo verniz da sociedade.
O estopim da trama é simples e
eficiente: um menino de onze anos, depois de uma discussão, agride com
violência um colega da mesma idade. Cientes de sua superioridade enquanto
adultos e civilizados, os pais de ambos se reúnem em uma tarde para conversar e
tomar as devidas providências. No apartamento classe média de Michael e
Penelope Longstreet (John C. Reilly e Jodie Foster) – os pais da vítima – os
quatro aparentemente chegam rápido à conclusão de que as crianças devem se
encontrar e que o agressor deve pedir desculpas ao agredido. Tudo perfeito,
simples e ágil como convém. Porém, o que parecia já resolvido começa a dar
sinais de problema quando outros assuntos, aparentemente não-relacionados à
principal questão, vêm à tona. A princípio com ironias e gradualmente se
tornando cada vez mais beligerante e agressiva, a conversa se transforma em um
ringue, onde os dois casais partem para a briga – uns contra os outros e,
conforme outros questionamentos surgem, com alianças inesperadas. Nesse
meio-tempo, Alan e Nancy Cowan (Christoph Waltz e Kate Winslet) descem do seu
pedestal de superioridade e encaram a face mais atávica e competitiva da
humanidade.
A ousadia de Polanski em restringir
sua narrativa em apenas um pequeno apartamento nova-iorquino (com uma ou outra
cena de transição no corredor diante de sua porta) é a maior qualidade da
versão cinematográfica de “O deus da carnificina”. Enquanto outros cineastas
tentariam disfarçar as origens de seu material com subterfúgios artificiais e
ineficientes, ele assume sem medo o tom verborrágico da trama, mas consegue,
graças a seu talento e a seus anos de estrada, transformar em trunfo o que
poderia ser um problema: frequentemente usando distorções nas lentes da câmera
(cortesia de seu habitual colaborador Pawel Edelman) como forma de enfatizar o
quase pesadelo surreal que se torna o que deveria ser uma simples tarde entre
adultos, Polanski sublinha o tema principal da história, desnudando sem dó nem
piedade os reais sentimentos e pensamentos da classe média, protegida por sua
capa de respeitabilidade até que as coisas fujam de seu controle. Ao escalar
para seus protagonistas um time de atores com imagens absolutamente
respeitáveis e sérias, o diretor também critica, através de uma brilhante
metáfora interna, a grande diferença entre o “parecer” e o “ser”. Ninguém fica
impune ao deus da carnificina citado por Alan em um momento do texto e que é
representado pela força bruta ao invés da inteligência – nem mesmo as belas
tulipas com que Penelope enfeita sua mesa de centro para receber suas visitas.
Como em qualquer bom texto teatral,
os personagens de “O deus da carnificina” vão se revelando aos poucos, dando a
seus intérpretes (todos atores excepcionais) a chance de mostrar diversas
facetas de seus talentos. O Michael de John C. Reilly (único dentre os atores a
ainda não ter ganho um Oscar) é, aparentemente, um homem de boa paz, um
vendedor de utensílios domésticos que tenta resolver tudo na base da conversa e
da sociabilidade extrema – mas que não hesita em abandonar o hamster da filha
pequena no esgoto da cidade ou vangloriar-se de ter sido líder de uma gangue
quando criança. Sua esposa, Penelope (Jodie Foster em uma atuação que vai
crescendo diante do espectador até explodir na reta final) é uma escritora
especializada em Arte e História da África a quem a civilidade é primordial nos
relacionamentos interpessoais – ao menos até que seu modo de lidar com a
família e o casamento sejam postos em xeque. Alan (Christoph Waltz finalmente
deixando um pouco de lado os trejeitos que repete constantemente) é o típico
homem que dedica seus dias na luta por mais e mais dinheiro – é advogado de uma
empresa farmacêutica em vias de enfrentar uma ação penal – e vê o valor das
pessoas baseado em suas contas bancárias e seu sucesso profissional. E Nancy
(Kate Winslet, a melhor em cena) é uma corretora de investimentos chique,
discreta e delicada que perde as estribeiras quando deixa que o álcool lhe tire
todos os filtros de polidez e escrúpulos morais e éticos.
A dinâmica de “O deus da
carnificina” é a desculpa perfeita para Roman Polanski exercitar seu cinema
simples e direto. Em menos de uma hora e meia de projeção, ele destrói o muro
de convenções sociais que possibilita a convivência entre os seres humanos,
usando para isso não um grupo de homens pré-históricos ou soldados em plena
batalha. A maior ironia (e o maior acerto) de Yasmina Reza em seu trabalho é
deixar que pessoas bem-nascidas, bem-resolvidas e bem-educadas sejam o objeto
de sua tese (pessimista? realista? exagerada?) de que sem o verniz de uma
organização social e comunitária os homens que se gabam de utilizar-se da mais
alta tecnologia, de conhecer a fundo obras de arte e de saber frequentar as
mais altas rodas da sociedade não passam, no fundo, de homens das cavernas,
predispostos a, em qualquer momento, apelar para a violência e a agressão como
forma de fazer prevalecer seu ponto de vista. E Polanski, em um toque de gênio,
acrescenta à peça de Reza um epílogo silencioso e quase imperceptível que
mostra que, ao mesmo tempo em que a civilização como a conhecemos tem a
fragilidade de uma flor, ainda existe esperança onde menos se espera – e da
forma mais simples possível. Mais do que mostrar-se otimista, o vencedor do Oscar
por “O pianista” mostra-se de uma ironia sofisticada e contundente. O inferno
são os outros.
Um comentário:
Eu estava assistindo esse filme em DVD, infelizmente o mesmo travava e não passava de determinada parte, seu texto muito bem escrito serviu de incentivo e referência para eu assisti-lo e escrever sobre no meu blog.
Força e honra.
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