Quando surgiu no mundo do cinema, em
1989, com seu independente “sexo, mentiras e videotape” – que ganhou a Palma de
Ouro em Cannes e foi indicado ao Oscar de roteiro original – o cineasta Steven
Soderbergh foi louvado como um gênio que poderia renovar o sangue do cinema
americano. Com o tempo, ele tanto deu com os burros n’água com produções
pretensiosas – “Kafka” (91), por exemplo – como assinou sucessos de bilheteria
apenas divertidos – “Onze homens e um segredo” (01) e suas continuações, “Erin
Brockovich: uma mulher de talento” (00), que deu o Oscar à Julia Roberts e
“Magic Mike” (02), que apesar do êxito comercial é indigno de seu talento. No
meio do caminho, filmes muito bons, como “Irresistível paixão” (98) e “Traffic”
(00), que lhe rendeu uma estatueta de melhor diretor. Em uma carreira de altos
e baixos constantes, “Contágio” fica no meio-termo: não é um filme marcante ou
memorável nem tampouco um desastre completo. É um competente thriller médico
cuja eficiência se escora mais no elenco multi-estelar do que exatamente em
suas qualidades narrativas.
Na tradição de filmes que se
utilizam de alguma epidemia para retratar o pânico da população, a ganância da
indústria farmacêutica, o descaso das autoridades e o suspense inerente a tantos
elementos, Soderbergh criou um produto que mantém a atenção da plateia do
primeiro ao último minuto – quando enfim completa o quebra-cabeças cuja
primeira peça é lançada na cena inicial – fazendo a intersecção de diversas
histórias paralelas ao redor do mundo. Mal comparando, é um “Babel”, de
Alejandro González Iñarrítu, mas com viés científico e um elenco tão repleto de
estrelas que faz lembrar os filmes-catástrofes dos anos 70, como “Inferno na
torre” (74) e “O destino do Poseidon” (75). A vantagem é que Soderbergh, apesar
dos tropeços, é um diretor bem mais competente que a média mesmo em produções
mais comerciais e menos autorais. Assim como fez em “Traffic” – que também
levou as estatuetas de roteiro adaptado, montagem e ator coadjuvante (Benicio Del
Toro) – ele demonstra um soberbo senso de ritmo e grande segurança na condução
de seus atores, o que faz da missão de se assistir à “Contágio” um prazer mesmo
que a história não seja das mais animadoras.
A trama começa em Hong Kong,
mostrando os últimos momentos da executiva norte-americana Beth Emhoff (Gwyneth
Paltrow) antes de sua volta para casa, depois de uma viagem profissional que
lhe deu a oportunidade inclusive de reencontrar um antigo romance. Antes mesmo
que ela chegue em Minneapolis, sua cidade natal, o filme já mostra o que vem
pela frente: um grupo de pessoas, em países diferentes (Inglaterra, Japão, EUA,
China), se torna vítima de uma doença desconhecida, com sintomas de gripe
comum, que leva à morte em poucas horas. Não demora para que a própria Beth –
assim como seu filho de seis anos de idade - entre para as estatísticas, para
desespero de seu marido, Mitch (Matt Damon). Sem querer alarmar a população,
organizações médicas começam a investigar a origem da doença, com profissionais
de várias partes do mundo buscando encontrar formas de prevenção e respostas
imediatas, como modos de contágio e tempo de encubação. Enquanto correm contra
o relógio, o blogueiro Alan Krumwiede (Jude Law), de São Francisco alerta seus
leitores para uma provável conspiração do governo para impedir que a população
saiba do que realmente está por trás da trágica epidemia.
O tema principal de “Contágio” é a
busca desesperada da comunidade médica pelas respostas cada vez mais fugidias a
respeito do vírus – o que não impede o roteiro de tocar em temas como a
irresponsabilidade da mídia, o declínio da civilidade diante de uma crise e a
desigualdade social e econômica. Porém, peca por não desenvolver a contento
nenhum desses pontos da trama, preferindo ater-se a um suspense que nem sempre
funciona, ainda que disfarçado por uma fotografia inteligente (em tons
amarelados na trama médica e em tonalidades frias quando retrata as
consequências cada vez mais tenebrosas da doença). A edição do veterano Stephen
Mirrione – premiado por “Traffic”, também um filme calcado em tramas paralelas
– dá espaço igual a todos os personagens, mas mesmo assim por vezes é
impossível à plateia realmente se conectar com eles devido à agilidade um tanto
exagerada da narrativa. Assim, o drama de Mitch e sua filha adolescente –
surpreendentemente imunes ao vírus, mas impedidos de travar qualquer tipo de
contato normal com o restante da população – acaba por se tornar, em muitos
momentos, muito mais interessante do que as investigações promovidas pelas
médicas Leonora Orantes (Marion Cottilard) – que viaja à Ásia representando a
OMS e acaba pega como refém por um grupo popular desesperado por uma vacina – e
Erin Mears (Kate Winslet) – que segue os passos de Beth Emhoff em busca da origem
de tudo. Cottilard e Winslet são atrizes espetaculares e quando entram em cena
engolem tudo à sua volta, mas não são capazes de desenvolver a contento seus
papéis, graças principalmente ao roteiro superficial.
O roteiro é culpado, também, de não
dar a Jude Law e seu personagem um espaço maior: a trama do blogueiro que tenta
alertar a população a respeito do descaso do governo em relação às vacinas
experimentais e sobre a ganância das indústrias farmacêuticas é empolgante, mas
intercalada com as demais ramificações da história, perde o pique e o ritmo,
tornando-se apenas uma série de conversas e discussões éticas e morais – seja
com o médico Ellis Cheever (Laurence Fishburne) ou com o cientista Ian Sussman
(Elliot Gould), que ignora ordens superiores para abandonar as pesquisas e se
torna, juntamente com a dra. Ally Hextall (Jennifer Ehle), um dos principais
responsáveis pelos avanços rumo à cura. Enquanto Law surge como o olhar
questionador do caos, Matt Damon representa o público comum, jogado no meio de
um tornado sem ter respostas ou orientações. Fatalista como os bons filmes do
gênero, “Contágio” ainda arruma espaço, em seus minutos finais, para culpar o
ser humano por toda a situação – um recado que não apenas faz sentido em um
período tão ecologicamente alerta quanto imprime ao filme um tom ainda mais
dramático e assustador, apropriado ao tema e coerente com o discurso
desenvolvido pelo roteiro – que, sem diálogos, encerra o filme deixando o
espectador com uma sensação desconfortável. Um tiro certeiro que torna perdoáveis
seus pequenos pecados narrativos.
No final das contas, “Contágio”
cumpre o que promete: é um suspense médico eficiente na tensão e apresenta um
elenco de cair o queixo, que inclui também os indicados ao Oscar John Hawkes e
Bryan Cranston (de “Breaking bad”). É um filme de primeira linha, realizado por
um cineasta de comprovada competência e com uma história aterrorizante que,
apesar do tema pouco atraente, cativa a plateia até o seu desfecho. Soderbergh
já fez melhor, mas não deixa de ser um programa acima da média.
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