Quem teve a oportunidade de assistir
ao devastador “Fome” (09) – estreia do artista plástico Steve McQueen como
cineasta – sabe do que ele é capaz com sua fé inabalável no poder da imagem em
detrimento das palavras. Construindo um filme calcado basicamente no visual
(mas com um longo diálogo de 12 minutos filmado em plano-sequência), McQueen –
homônimo do ator norte-americano famoso por filmes como “Papillon” e “Inferno
na torre” – contou a trágica história do irlandês Bobby Sands, que, lutando pelo
direito de ser tratado como preso político na Inglaterra dos anos 80, morreu em
consequência de uma greve de fome logo depois de eleito deputado. O segundo
filme do diretor, “Shame”, não foge muito de sua cartilha que prega a imagem
como principal ponto de referência do cinema, construindo toda a tensão de sua
trama – assim como seus desdobramentos e subtextos – sobre um poderoso alicerce
compartilhado de “Fome”: o extraordinário ator Michael Fassbender.
É o alemão Fassbender, com seu imenso
talento, que sustenta a ousadia formal de McQueen em contar sua história com o
mínimo possível de diálogos, privilegiando enquadramentos, luzes e a edição –
em suma, tudo aquilo que faz do cinema uma arte diferente do teatro e da
literatura. Não que os personagens de “Shame” não falem, mas sempre que isso
acontece o diretor parece fazer questão de mostrar que o mais importante é o
que está por trás do que é dito, escondido no que não é falado, disfarçado
tanto na polidez de encontros sociais quanto na violência verbal de discussões
familiares. “Shame” é um filme de olhares, de sensações, de silêncios – mas ao
mesmo tempo, é uma obra avassaladora em sua elegância calculada, que retrata,
como poucos filmes contemporâneos, o estado de espírito de sua época – o
famigerado zeitgeist. Quem espera
encontrar nele uma trama ágil e repleta de reviravoltas dramáticas certamente
irá se decepcionar – seu ritmo é muito mais europeu do que hollywoodiano – mas
aqueles que buscam no cinema um convite à reflexão e ao raciocínio não terão do
que reclamar.
Fassbender – no mesmo ano em que
viveu Carl Jung em “Um método perigoso”, de David Cronenberg e um androide em
“Prometheus”, de Ridley Scott, com a mesma desenvoltura – interpreta Brandon,
um homem bonito, bem-sucedido, charmoso e inteligente que circula em uma Nova
York igualmente fotogênica e glamourosa. Por trás de sua aparência tranquila,
porém, existe um turbilhão aparentemente incessante: ele é viciado em sexo. Não
satisfeito em dormir com qualquer mulher que cruze seu caminho, ele paga
prostitutas, tem uma coleção de vídeos eróticos e nem mesmo seu computador no
ambiente de trabalho é livre de todo tipo de material sensual. Entre sessões
contínuas de masturbação e um desfile de mulheres por sua cama – todas
sistematicamente afastadas de qualquer vínculo emocional que possam querer ter
– Brandon tenta esconder até de si mesmo um vazio existencial que ele sublima
com uma quantidade acima do normal de sexo. Esse vazio existencial – muito bem
enterrado sob toneladas de amor-próprio – acaba vindo à tona quando chega à
cidade sua irmã caçula, a cantora Sissy (Carey Mulligan), também portadora de uma
saudável dose de problemas psicológicos. A relação entre os dois – traumática?
incestuosa? puramente fraternal? – acaba por ser o catalisador de uma profunda
viagem de Brandon a seu mundo íntimo.
E essa justamente essa viagem de
Brandon ao âmago de sua personalidade que interessa a McQueen: dando ênfase a
inúmeros closes dos olhos azuis e inquietos de Michael Fassbender, o cineasta
os utiliza como guia a uma angustiante jornada dentro da mente de um homem
acostumado a ter o controle absoluto de sua vida (através do sexo casual e
insaciável) quando se vê diante do imponderável poder de uma mulher cujo
passado – e aí está outro grande acerto do filme – nunca é oferecido ao
espectador. O roteiro, do diretor e de Abi Morgan foge do óbvio e do corriqueiro ao negar ao público
informações essenciais de seus personagens, mostrando apenas o que a bela fotografia
alcança. Há algo de muito doloroso no passado de Brandon e Sissy – a inesquecível
sequência em que ela canta “New York, New York” e o leva às lágrimas deixa isso
bem claro – mas somente eles dois sabem e continuarão sabendo: não interessa a
McQueen o que aconteceu, e sim as consequências disso na existência de ambos.
Contrariando as regras, o diretor não hesita em filmar um diálogo importante
pelas costas de seus atores – deixando que suas entonações e vozes comandem as
emoções – e tampouco deixa que o puritanismo do cinema americano fique em seu
caminho: apesar de ser um filme calcado basicamente em sexo, as cenas eróticas
de “Shame” surgem mais como ilustração da busca desesperada do protagonista por
algo que nem ele mesmo sabe exatamente o que é do que como alavanca para
fantasias sexuais da plateia. E se Fassbender surpreende em cenas de nudez
frontal – o terror dos grandes estúdios – é porque sua confiança no diretor e
em suas ideias é total (não à toa eles voltariam a trabalhar juntos em “12 anos
de escravidão”, que deu ao ator sua primeira indicação ao Oscar, como
coadjuvante).
“Shame” não é um filme de fácil
leitura ou de absorção imediata. Steve McQueen é um diretor que mais pergunta
do que responde, que provoca discussões, que toca em feridas e tabus
inacreditáveis em pleno século XXI. Autor de soluções visuais extasiantes e
dono de pleno domínio da câmera – que soa por vezes intrusiva e por outras mera
testemunha neutra – ele convida a plateia a mergulhar em um universo
aparentemente familiar (afinal é Nova York, a capital do mundo) para logo em
seguida enfatizar, através da música e da fotografia, uma solidão dolorida e
que não demonstra intenção de ir embora. Por esse ângulo, o final em aberto é
extremamente coerente, deixando no espectador um sentimento de desconforto que
apenas coroa o belíssimo trabalho do diretor. “Shame” é, com certeza, um dos
filmes fundamentais de sua época.
Um comentário:
Esse filme é sensacional!
Belo texto sobre a obra!
att,
André Betioli
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