INTERLÚDIO (Notorius, 1946, RKO Radio Pictures, 101min) Direção: Alfred Hitchcock. Roteiro: Ben Hecht, estória "The song of the dragon", de John Taintor Foote. Fotografia: Ted Tetzlaff. Montagem: Theron Warth. Música: Roy Webb. Direção de arte/cenários: Carroll Clark, Albert S. D'Agostino/Claude Carpenter, Darrell Silvera. Produção: Alfred Hitchcock. Elenco: Ingrid Bergman, Cary Grant, Claude Rains, Louis Calhern, Leopoldine Konstantin. Estreia: 15/8/46
2 indicações ao Oscar: Ator Coadjuvante (Claude Rains), Roteiro Original
Alfred Hitchcock sempre fez questão de deixar bem claro que, quando resolvia
transformar um livro ou peça de teatro em filme, utilizava-se apenas da parte
do material que lhe interessava, abandonando o restante e preenchendo as
lacunas da forma que melhor lhe fosse útil. Um exemplo mais do que claro de que
ele falava a verdade é “Interlúdio”, que ele lançou em 1946 e se tornou sua
segunda colaboração consecutiva com a bela Ingrid Bergman: a partir de um conto
publicado no jornal Saturday Evening Post, chamado “A canção das chamas”, o
cineasta criou uma trama de espionagem das mais brilhantes, que se aproveitava
da situação política do mundo – o recente fim da II Guerra Mundial – para
prender o espectador através de uma singela história de amor. E, ironia das
ironias, justamente por causa de suas pesquisas para o roteiro, Hitch esteve na
mira do FBI por alguns meses.
Com o país envolto em uma aura de paranoia nuclear, o FBI não gostou nem um
pouco de saber que Hitchcock havia visitado um dos maiores cientistas do país
com perguntas “suspeitas” a respeito da fabricação de uma bomba atômica – e nem
adiantou saber que tal cientista havia afirmado categoricamente que era
impossível que tal fato acontecesse. O que interessava ao diretor, no entanto,
eram apenas detalhes que pudessem servir de elemento dramático para a história
que estava então começando a conceber em sua mente – uma história que tinha
como linha de ação a ideia simples “uma moça tem que dormir com um espião para
conseguir informações para ajudar o país, mesmo apaixonada por um colega.” A
inclusão de elementos químicos e a construção de uma bomba atômica, por
incrível que pareça, apavorou o produtor David O. Selznick a tal ponto que ele
fez o que ninguém esperava: vendeu todo o pacote – diretor, Ingrid Bergman,
Cary Grant e o roteiro “improvável” – para a RKO. Endividado com o orçamento
estourado do faroeste “Duelo ao sol”, com Jennifer Jones, Selznick se livrou do
que ele considerava dois problemas ao mesmo tempo. Deixou passar um dos
melhores filmes de Hitchcock – e olha que estamos falando de um homem que tem
tantas obras-primas no currículo que fica difícil contar em uma única mão seus
melhores trabalhos.
A trama de “Interlúdio” começa quando um espião nazista é condenado à morte
por um tribunal americano. Apesar de não compactuar com as ideias do pai e
levar uma vida de liberdade e independência, sua única filha, Alice (Ingrid
Bergman) é procurada pelo envolvente T.R. Devlin (Cary Grant), agente do
governo que lhe propõe uma missão como forma de amenizar a imagem de sua
família junto aos EUA. Apaixonada por Devlin, Alice aceita participar da
aventura e parte com ele para o Rio de Janeiro, onde deverá reencontrar e
retomar contato com o nazista Alexander Sebastian (Claude Rains), amigo de seu
pai e cuja mansão serve de esconderijo para os espiões alemães vivendo no
Brasil. Para sua surpresa, Alexander não apenas se apaixona por ela como a pede
em casamento – proposta que ela se vê impelida a aceitar para dar continuidade
ao plano. Aos poucos ela e Devlin descobrem que Alexander realmente está usando
sua casa para esconder urânio – quase ao mesmo tempo em que a jovem passa a
correr sério risco de ser desmascarada pelo espião e por sua manipuladora mãe
(Leopoldine Konstantin).
Repleto de sequências brilhantes, “Interlúdio” é o que de melhor Alfred
Hitchcock tem a oferecer a seu público. Com uma trama simples que se desenrola
de forma suave e envolvente, o filme funciona tanto como romance quanto como
suspense de espionagem – com cenas geniais em ambos os gêneros. O longo beijo
entre Bergman e Cary Grant, por exemplo, trapaceia o famigerado Código Hays ao mesclar
o ato romântico a uma conversa aparentemente banal sobre comerem frango no
jantar (para desespero de um Ben Hetch nada disposto a ver seu roteiro com uma
cena do tipo) e não deixa de ser angustiante perceber o quanto Alice espera que
Devlin interceda a seu favor e a impeça de casar-se com um espião nazista
enquanto a ama. Como suspense, destacam-se a sequência em que os dois descem à
adega de Sebastian para investigar sua coleção de vinhos (uma cena cuja
consequência é vital para a trama) e os minutos finais, quando Alice passa de
heroína à vítima e tem seus problemas confundidos por Devlin como uma recaída a
seu problema com álcool. São em momentos assim que se percebe o porquê de
Hitchcock ter-se apaixonado por Ingrid: além de linda e elegante, a sueca (em
vias de envolver-se com Roberto Rosselini e um escândalo que a baniria de
Hollywood por anos) brilha em uma interpretação das mais convincentes de sua
carreira.
“Interlúdio” é, por fim, um Hitchcock da melhor safra – e um dos seus
melhores em preto-e-branco. É elegante, sutil, inteligente e com uma dupla de
atores em dias de grande inspiração. Tudo bem que a história contada por Hitch
– a de que Bergman certa vez recusava-se a sair de seu quarto até que ele
dormisse com ela – é absurda, mas o diretor sabia o que fazia. Mesmo que depois
ele tivesse que conviver com o FBI na sua cola.
Filmes, filmes e mais filmes. De todos os gêneros, países, épocas e níveis de qualidade. Afinal, a sétima arte não tem esse nome à toa.
terça-feira
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