RELÍQUIA MACABRA (The maltese falcon, 1941, Warner Bros, 100min) Direção: John Huston. Roteiro: John Huston, romance de Dashiel Hammett. Fotografia: Arthur Edeson. Montagem: Thomas Richars. Música: Adolph Deutsch. Figurino: Orry-Kelly. Direção de arte: Robert Haas. Produção executiva: Hal B. Wallis. Elenco: Humphrey Bogart, Mary Astor, Peter Lorre, Gladys George, Lee Patrick, Sydney Greenstreet. Estreia: 03/10/41
3 indicações ao Oscar: Melhor Filme, Ator Coadjuvante (Sydney Greenstreet), Roteiro
Uma das mais frequentes críticas feitas às transposições de livros para o
cinema é a falta de fidelidade ao material original, independente se tal
material é um clássico absoluto ou o mais efêmero best-seller. Tal reclamação,
no entanto, jamais poderá ser feito a respeito de “Relíquia macabra”, terceira
adaptação do romance de Dashiell Hammet para as telas: apaixonado pela obra e
por seu estilo seco e direto, o roteirista tornado diretor John Huston manteve,
com fidelidade canina, a estrutura e os diálogos do livro original, um policial
noir que não apenas estabeleceu os paradigmas do gênero como marcou a estreia
de Huston como diretor e Humphrey Bogart como astro. Normalmente relegado a
papéis de vilões ou gângsteres, Bogart tirou a sorte grande ao ser escalado
para viver o detetive particular Sam Spade, criado por Hammett em 1930 e para o
qual a Warner havia pensado seriamente em Edward G. Robinson. Cínico, quase
amargo e insensível a ponto de não deixar que o amor atrapalhe qualquer um de
seus negócios, Spade é uma espécie de pai de todos os detetives da ficção
policial, nascido da experiência do próprio escritor na função. E ao lhe dar
carne e osso, o ator – dois anos antes de assumir seu lado romântico em outro
produto icônico do estúdio, “Casablanca”, de Michel Curtiz – forjou seu nome a
ferro e fogo no ideário popular com um personagem que tornou-se, para o bem ou
para o mal, a essência de sua carreira.
Suspenso pela Warner por ter se recusado a participar de “Três homens maus”
(41), Bogart acabou sendo o escolhido pelo estúdio para viver o protagonista da
nova versão do romance de Hammett – as duas primeiras, “O falcão maltês” (31) e
“Satã encontrou uma dama” (43) não haviam sido exatamente sucessos comerciais
nem tampouco haviam mudado a história do cinema. John Huston, porém, ainda não era
o diretor do filme, cujo comando estava nas mãos de Jean Negulesco (que iria
dirigir “Como agarrar um milionário”, com Marilyn Monroe e Lauren Bacall doze
anos depois). Foi somente com a demissão de Negulesco que Huston, até então
apenas roteirista, pegou sua chance com unhas e dentes: com um orçamento
pequeno de 300 mil dólares e um elenco sem grandes astros, o cineasta de
primeira viagem filmou o livro de Hammett em ordem cronológica e, aproveitando
ao máximo do talento de cada membro da equipe, criou uma obra-prima que lhe
colocou, de cara, no rol dos imortais da sétima arte.
Primeiro a fotografia em preto-e-branco de Arthur Edeson: fazendo uso
exemplar do jogo de luz e sombra que se tornaria característica marcante do
gênero nos anos 40, Edeson criou uma atmosfera envolvente de tensão e perigo,
como se a cada esquina e atrás de cada porta houvesse a chance de uma violência
inesperada e sádica – culminando com a sequência final, onde as sombras em
forma de cela sugerem o destino de um dos vilões da trama. Depois, a trilha
sonora de Adolph Deutsch, pouco intrusiva mas incisiva, comentando a ação sem
jamais roubar a atenção para si mesma. E por fim, além da ambientação simples
mas eficiente em sublinhar a temática da ambição desmedida e da traição, o
elenco de encher os olhos. Se Bogart rouba a cena com seu imortal Sam Spade, os
coadjuvantes não ficam atrás. Talvez Mary Astor não tenha exatamente o tipo
físico de uma femme fatale – ela ficou com um papel para o qual foram consideradas
Rita Hayworth, Ingrid Bergman e Olivia de Havilland - mas não deixa que isso
atrapalhe sua composição da ambígua Brigid O’Shaughnessy, uma misteriosa mulher
que adentra o escritório do protagonista para contratar seus serviços e o leva
a uma espiral de morte e violência.
Tudo começa quando o sócio de Spade, Miles Archer (Jerome Cowan) é enviado
pelo companheiro para vigiar o desconhecido Floyd Thursby, a pedido da própria
Brigid. Quando ambos são mortos, cabe ao detetive buscar na misteriosa dama
algumas respostas – principalmente porque a polícia já está no seu calcanhar. É
então que entram no jogo novas peças, que levam a todos para um caminho
completamente diferente. Um deles é o inglês Kasper Gutman (o ótimo Sidney
Greenstreet, estreando no cinema aos 62 anos de idade e concorrendo ao Oscar de
coadjuvante). O outro é o aparentemente delicado mas extremamente traiçoeiro
Joel Cairo (Peter Lorre, o vampiro de Dusseldorf em pessoa). Ambos revelam que
tudo gira em torno de um artefato histório, um falcão oriundo da ilha de Malta,
incrustado de joias, que é o objeto do desejo de todos eles – e cuja posse os
faz abdicar dos mais óbvios sentimentos humanos.
Uma fábula sobre amoralidade e ambição, “Relíquia macabra” é, também, um dos
maiores filmes policiais da história por não ter medo em abraçar seus temas
controversos ou criar personagens que fogem do padrão habitual do cinema
comercial – em especial durante a vigência do famigerado Código Hays, que
implicava com qualquer coisa que fugisse do convencional. Além disso, oferece
um roteiro brilhante e repleto de cenas antológicas e diálogos inteligentes,
que permite a seus atores demonstrarem um perfeito domínio de sua arte. Não é à
toa que se mantém, mesmo com mais de sessenta anos, tão fresco quanto à época
de seu lançamento.
Filmes, filmes e mais filmes. De todos os gêneros, países, épocas e níveis de qualidade. Afinal, a sétima arte não tem esse nome à toa.
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