Não exatamente um gênero cinematográfico, mas frequentemente tratado como tal, o melodrama é, também, alvo de constantes críticas e desdém. Desprezado pelos fãs mais intelectualizados da sétima arte - normalmente por apelar para temas românticos e dramáticos que se assemelham às telenovelas, por sua vez também vítimas de pouco caso por parte dos espectadores - o gênero que tanto encanta cineastas consagrados como Pedro Almodóvar poucas vezes viu um exemplar tão perfeitamente adequado às suas características quanto "Carta de uma desconhecida", dirigido pelo alemão Max Ophuls. Sem abrir mão de tudo que o gênero pede - lágrimas, reviravoltas, amores impossíveis e mortes dramáticas - o filme acabou por ser considerado um clássico absoluto do melhor cinema dramático feito em Hollywood na década de 40 e ainda hoje faz parte da lista dos favoritos de boa parte da crítica.
A história tem pedigree - é baseada em um livro de Stefan Zweig, escritor austríaco que chegou a morar no Brasil - e a sofisticação de Ophuls em transformar as palavras do romance de Zweig e do roteiro de Howard Koch faz com que a sensibilidade e a dramaticidade da trama desfilem diante da plateia como um balé bem orquestrado, suave como a protagonista Lisa Brendl (Joan Fontaine, então casada com o produtor William Dozier, cuja companhia, a Rampart Productions, bancou o projeto). Mesmo já com 30 anos de idade, Fontaine - cuja inimizade com a irmã, Olivia de Havilland, era notória em Hollywood - convence plenamente como a adolescente de 16 anos que dá início a uma trama de amor platônico e dor que irá atravessar anos e uma série de autossacrifícios. Uma atriz de grande capacidade dramática, Fontaine considerava "Carta de uma desconhecida" seu melhor filme - e vale lembrar que em seu currículo inclui-se trabalhos como "Rebecca, a mulher inesquecível" (40) e "Suspeita" (41), ambos dirigidos por Alfred Hitchcock.
O cenário é Viena e tudo começa - ou termina, dependendo do ponto de vista - no início do século XX, quando o outrora famoso pianista Stefan Brand (Louis Jordan), já sem a mesma alegria de viver da juventude, prepara-se para participar de um duelo. Antes que isso aconteça, porém, ele recebe de seu criado uma carta escrita por uma mulher de cuja existência ele nem sabia (ou lembrava) existir. As primeiras palavras da carta - "Quando você estiver lendo essa carta eu já estarei morta!" - imediatamente capturam a sua atenção e, a partir daí, tanto ele quanto a plateia estarão fisgadas por uma história absolutamente simples, mas totalmente devastadora. A autora da carta, Lisa Brendl, era uma jovem de 16 anos quando ouviu pela primeira vez Stefan - seu vizinho - tocar piano. A paixão à primeira vista a impede de sequer tentar levar uma vida adolescente normal, mas sua rotina é abalada quando se vê obrigada a mudar-se, com a mãe e o padrasto, para o interior. Depois que a desajeitada corte de um outro rapaz a faz finalmente voltar à Viena, finalmente ela já é adulta e pode viver sua história de amor. Mas é aí que tudo realmente começa a dar errado na mesma medida em que ela acredita estar a um passo da felicidade.
Não há dúvidas de que a trama de "Carta de uma desconhecida" é digna do maior novelão mexicano - especialmente quando o roteiro apela para tragédias e um sentimento de culpa de que só atrizes da competência de Fontaine são capazes sem parecerem ridículas. É certo também que sua Lisa é de uma ingenuidade e altruísmo quase inverossímeis - mesmo que se leve em conta que a história se passa na Europa do início do século XX. Mas a encenação de Max Ophuls suplanta toda a alta dose de açúcar do roteiro, protegendo seus personagens e sua trama com carinho e elegância. Encontrando soluções visuais brilhantes para enfatizar a passagem de tempo e ao mesmo tempo sublinhar o quanto algumas coisas permanecem inalteradas, Ophuls encarrega-se também de dar credibilidade e seriedade a um romance que, em mãos menos capazes, poderia descambar para um dramalhão piegas e cafona. Graças à sua assinatura, "Carta de uma desconhecida" pode ser visto como um dos mais importantes filmes de sua época - e um catalisador de emoções ainda bastante potente para os mais sensíveis. Grande cinema, a despeito de qualquer preconceito de que possa ser vítima.
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