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COISAS QUE VOCÊ PODE DIZER SÓ DE OLHAR PARA ELA

COISAS QUE VOCÊ PODE DIZER SÓ DE OLHAR PARA ELA (Things you can tell just by looking at her, 2000, Franchise Pictures, 109min) Direção e roteiro: Rodrigo Garcia. Fotografia: Emmanuel Lubezki. Montagem: Amy E. Duddleston. Música: Edward Shearmur. Figurino: George L. Little. Direção de arte/cenários: Jerry Fleming/Betty Berberian. Produção executiva: Elie Samaha, Andrew Stevens. Produção: Jon Avnet, Lisa Lindstrom, Marsha Oglesby. Elenco: Glenn Close, Cameron Diaz, Holly Hunter, Calista Flockhart, Kathy Baker, Ammy Brenneman, Valeria Golino, Gregory Hines, Matt Craven. Estreia: 22/01/00 (Festival de Sundance)

Filmes que tratam de mulheres interessantes e complexas são artigo raro em uma Hollywood cujos olhos estão sempre voltados para as caixas registradoras - e os dólares que as enchem com produções anabolizadas e repletas de efeitos visuais e machões dispostos a salvar o mundo de ameaças alienígenas ou terroristas. Por essa razão é um oásis encontrar uma produção como "Coisas que você pode dizer só de olhar para ela", um drama de visão essencialmente feminina que, é, surpreendentemente, escrita e dirigida por um homem, Rodrigo Garcia. Filho do grande romancista colombiano Gabriel Garcia Marquez e dono de uma sensibilidade única quando se trata da compreensão de um universo oposto ao seu, Garcia - que posteriormente exercitaria tal característica em episódios da série "A sete palmos" e no subestimado "Passageiros" (2008) - constrói, em seu primeiro filme, uma narrativa doce e compassiva que substitui o tradicional roteiro com início, meio e fim por uma composição de histórias simples e discretas que, juntas, formam uma bela paisagem, capaz de emocionar e fazer pensar.

O filme começa quando uma equipe da polícia, liderada pela detetive Kathy Faber (Amy Brenneman), encontra o corpo de uma mulher, aparentemente suicida, em uma casa do subúrbio de Los Angeles. Em seguida, o roteiro dá um pulo para apresentar a dra. Elaine Keener (Glenn Close), uma médica solteira que mora com a mãe idosa e doente e que está apaixonada - sem muitas esperanças - por um colega de trabalho. Para acalmar sua tensão quanto ao assunto, ela chama uma cartomante, a jovem Christine (Calista Flockhart), que não lhe dá as notícias que ela esperava. A história seguinte acompanha o drama de Rebecca Waynon (Holly Hunter), gerente de um banco que se descobre grávida do amante casado, Robert (Gregory Hines) e passa a questionar suas escolhas em conversas com Nancy (Penelope Allen), uma mendiga com quem encontra constantemente - dúvidas essas que a levam aos braços de Walter (Matt Craven), um colega de trabalho. Logo em seguida, o público é apresentado à Rose (Kathy Baker), uma escritora de livros infantis, separada e mãe de um adolescente, que se sente irresistivelmente atraida pelo novo vizinho, o anão Albert (Danny Woodburn), e redescobre a sensação de estar apaixonada. A cartomante do primeiro episódio, Christine, volta a aparecer quando torna-se protagonista de uma triste história de amor, que acompanha seus cuidados com a namorada, Lilly (Valeria Golino), que está em fase terminal de câncer. Elas são vizinhas de Walter, o amante ocasional de Rebecca, que, pai de uma menina cega, se envolve também com a professora dela, Carol (Cameron Diaz), que, mesmo sem enxergar, é capaz de perceber com extrema clareza a vida como ela é, dividindo suas conclusões com a irmã, a detetive Kathy da primeira cena, uma mulher que dedicou sua vida a cuidar da irmã e da carreira e que somente depois dos trinta anos começa a sentir falta de uma vida só para si.


Mesmo que distingua claramente as histórias entre si, inclusive com títulos separando-as, o roteiro de "Coisas" não se furta a continuamente fundí-las, de forma sutil ou mais explícita - caso da presença da cartomante Christine na casa da dra. Keener logo no começo do filme. Tais ligações, longe de soarem forçadas ou criadas exclusivamente para incluírem a produção na linhagem de "filmes-coral" que pipocavam à sua época - no qual o mais bem-sucedido foi o potente "Magnólia", de Paul Thomas Anderson - dão a ele uma consistência de unidade dramática bastante sólida, principalmente por sua opção em não dar necessariamente a cada um dos segmentos uma estrutura engessada que mutile do espectador a possibilidade de completar as lacunas com sua própria sensibilidade. Desse modo, é o público que, de posse das informações essenciais à cada personagem, preenche suas histórias, dando a elas o desfecho (ou até mesmo o início) mais apropriado a cada uma. Mostrando de cada uma dessas (valentes) mulheres apenas um recorte de suas vidas muitas vezes solitárias e melancólicas, o roteiro de Garcia - que homenageia o pai citando nominalmente sua obra-prima "Cem anos de solidão" em uma cena com Carol - dá a suas atrizes presentes inestimáveis, com sequências de uma beleza dolorosa e pungente onde o silêncio muitas vezes fala mais do que os diálogos.

E para defender tais mulheres - frágeis, corajosas, românticas, estoicas e assustadoramente reais - o diretor conta com um elenco em dias inspirados. Se Glenn Close e Holly Hunter não precisam provar nada para ninguém há um bom tempo - e Hunter se destaca magistralmente com uma personagem tão rica em nuances que merecia um filme só para si - é uma surpresa ver atrizes como Calista Flockhart e Cameron Diaz se distanciando tanto (e com tanto desapego) das personas que marcaram suas carreiras: Flockhart deixa de lado o jeitão moleque de sua "Ally McBeal" televisiva para criar uma jovem sofrida e apaixonada - às vésperas de perder a mulher que ama - sem os trejeitos que lhe deram notoriedade; e Diaz, famosa por suas comédias românticas e/ou pastelão, interpreta com delicadeza uma jovem cega que, a despeito do senso de humor e do defeito físico, consegue enxergar nitidamente todos os recônditos da alma humana (como deixa claro em seu discurso final, de uma poesia rara no cinema americano).

E se não bastasse tantas qualidades (o roteiro poético, a direção segura, o elenco impecável), "Coisas que você pode dizer só de olhar para ela" ainda tem um golpe de mestre quase invisível, mas intrigante e devastador, na figura da misteriosa suicida da primeira sequência: vivida sem uma linha sequer de diálogo por Elpidia Carrilo, ela atravessa todo o filme em silêncio, cruzando com as protagonistas em momentos aparentemente banais, sempre com uma atmosfera de tristeza e dor a seu redor, como que prenunciando seu triste destino. É ela, em sua mais absoluta quietude, que dá unidade ao filme, como uma espécie de aviso sobre o que pode acontecer com qualquer uma daquelas mulheres tão intensas e que escondem tal turbilhão sob um manto de placidez.

Um filme pouco conhecido e comentado, "Coisas que você pode dizer só de olhar para ela" - um título apropriado e sugestivo, ainda que pouco comercial - é uma das produções mais interessantes do final dos anos 90, e uma das investigações mais sensíveis sobre a alma feminina até o advento de "As horas", dois anos depois. Uma pérola a ser descoberta.

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