STROMBOLI (Stromboli, 1949, Berit Films/RKO Radio Pictures, 107min) Direção: Roberto Rosselini. Roteiro: Félix Morlión, estória de Roberto Rosselini, colaboração de Sergio Amedei, G.P. Callegari, Art Cohn, Renzo Cesana. Fotografia: Otello Martelli. Montagem: Roland Gross. Música: Renzo Rossellini. Produção: Roberto Rossellini. Elenco: Ingrid Bergman, Mario Vitale, Renzo Cesana, Mario Sponzo. Estreia: 15/02/49
Reza a lenda que, depois de assistir ao magnífico “Roma, cidade aberta”, de
Roberto Rossellini, a sueca Ingrid Bergman declarou a quem quisesse ouvir que
tinha intenções de trabalhar com o diretor. Logicamente, essa afirmação tinha
mais a ver com os dotes de Rossellini como cineasta – e um dos criadores do
neorrealismo italiano – do que com qualquer outra coisa, mas nem mesmo a bela
atriz poderia imaginar que, a partir dessa inocente vontade profissional, surgiria
um dos mais badalados escândalos que Hollywood já viu em sua história. É certo
que o resultado de tal polêmica – o pungente filme “Stromboli”, lançado em 1949
– é mais um trabalho de mestre do diretor italiano e um dos pontos altos da
carreira de Bergman, mas muita gente lembra dele menos por suas (muitas)
qualidades e mais pelas consequências que acarretou na carreira de uma das
estrelas preferidas de Alfred Hitchcock.
Depois de anunciar sua vontade de ser dirigida por Rossellini, Ingrid
Bergman teve seus desejos atendidos. Foi de mala e cuia para a Itália e assumiu
o papel principal de um filme que já estava em produção, substituindo a atriz
original, Anna Magnani – não por coincidência, a estrela de “Roma, cidade
aberta”. Os produtores do filme se opuseram às mudanças e, como resposta a
Rossellini e sua nova contratada, resolveram filmar uma trama semelhante em
cenários similares e próximos (com Magnani como protagonista, obviamente). O
filme, “Volcano”, não teve a mesma repercussão por motivos óbvios, mas já era
uma pista que as coisas não seriam fáceis para Bergman, então casada com outro homem.
Durante as filmagens, em uma localidade inóspita e com vários extras
selecionados no próprio local (uma das características do neorrealismo), o
inesperado aconteceu: Bergman e Rossellini se apaixonaram, iniciaram um romance
passional e ficaram grávidos. Foi o que bastou para que, antes mesmo de sua
estreia, “Stromboli” chegasse às manchetes mundiais. Os puritanos
norte-americanos de então (não muito diferentes dos de hoje em dia) deixaram
claro sua repulsa ao comportamento da atriz e, com o apoio de políticos,
autoridades religiosas e da própria Hollywood, viraram as costas para uma de
suas maiores estrelas. Bergman foi banida do cinema americano por quase uma
década – até retornar em grande estilo, ganhando seu segundo Oscar de melhor
atriz, pelo filme “Anastasia, a princesa esquecida”, em 1956.
De certa forma, a história de amor entre Ingrid e seu diretor refletia, fora
das telas, o que acontecia diante delas – fato que Howard Hughes, que
distribuiu o filme nos EUA, logo percebeu, para seu deleite financeiro: a
controvérsia em torno do filme, envolvendo Igreja, política e os setores mais
conservadores do país serviu para que a obra rendesse perto de 1 milhão de
dólares somente em seu primeiro dia de exibição. No filme de Rossellini,
realizado sem um roteiro no sentido estrito da palavra (o cineasta trabalhava
com anotações e incentivava a improvisação de seus atores), a personagem de
Bergman também era vítima da hipocrisia alheia graças a seu comportamento
anti-convencional, e assim como na tela, seu destino também é traçado pela
coragem de romper com as instituições e as regras pré-estabelecidas. A
diferença é que, em Hollywood, é fácil perdoar o passado e os “erros”, mas em
Stromboli – a pequena cidade onde Karen, a protagonista do filme, vai parar –
as coisas são bem mais complicadas.
Karen, interpretada com alma e angústia por Bergman, é uma lituana que
chegou à Itália foragida depois da morte do pai e da invasão alemã a seu país.
Vivendo em um alojamento para refugiados, ela vê negado seu pedido de exílio em
Buenos Aires e, para sobreviver, aceita o pedido de casamento feito pelo jovem
soldado Antonio´(Mario Vitale), que descreve sua cidade natal como um pedaço de paraíso na
Terra. A realidade logo mostra as caras à Karen, que chega à minúscula
Stromboli e encontra um vilarejo em ruínas pela ação de um vulcão em constante
atividade e um elenco de moradores (em especial as mulheres) pouco
hospitaleiros. Desesperada com a diferença cruel entre suas esperanças e a vida
difícil e monótona que se abre à sua frente, ela encontra suporte nos braços do rapaz que cuida do farol da cidade. É o que basta para que o estigma de
ser uma estrangeira seja deflagrado, e ela passa a ser perseguida pelos
conterrâneos do marido.
Como era costume do neorrealismo italiano, Roberto Rossellini explora ao
máximo os cenários naturais que cercam seus personagens, imprimindo ao filme um
tom semidocumental ampliado pela participação de não-atores e pela ênfase em
rotinas locais, como a pesca e as serenatas. O ritmo quase modorrento e
claustrofóbico que ele apresenta – em contraste com a vastidão do mar que cerca
a cidade litorânea de Stromboli – sublinha o sentimento de desespero de Karen,
presa em uma existência sem sentido e perspectivas que ela tenta, sem sucesso,
modificar para seu prazer. Quando seu marido despreza as mudanças feitas por
ela em sua casa e faz com que tudo volte a ser como era antes (feio, brutal e
sem graça), é difícil não compreender a sensação de sufocamento da personagem,
potencializada pela atuação exemplar de Bergman, uma atriz superlativa que
valoriza cada momento da trama. Portanto, quando ela vê em ... uma chance de
escapar de um destino infeliz, não há quem possa julgá-la. E é aí que a vida
começou a imitar a arte.
Por mais que tente se assistir a “Stromboli” sem fazer paralelos com o que
se desenrolava em seus bastidores, é impossível não perceber nos dramas da
protagonista ecos do que ainda iria acontecer com sua intérprete. Assim como no
filme de Rossellini a bela Karen procura ajuda no líder religioso local, o
padre interpretado por Mario Sponzo , e acaba tendo as portas fechadas, também Ingrid
Bergman sofreu com a intolerância da Igreja Católica, que deixou clara sua
posição contra seu romance e influenciou no desfecho da história em território
americano. Mas se Karen vê em sua gravidez um agravante à sua situação caótica,
ao menos Bergman teve mais sorte na vida real, com o nascimento de três filhos
frutos de seu relacionamento com o diretor italiano – incluindo a futura atriz
Isabella Rossellini. Se o preço de um período de felicidade e realização foi o
desprezo da comunidade cinematográfica norte-americana (e de parte do público),
ela parece ter passado por isso com a elegância de sempre. O filme que deu
origem a tal situação é um excelente exemplo do cinema italiano de sua época e
menos de dez anos depois ela mostrava que seu talento era maior do que qualquer
polêmica – o que um terceiro Oscar, dessa vez como coadjuvante por “Assassinato
no Expresso do Oriente” (74), deixou ainda mais claro e evidente. Não é para
qualquer uma.
Filmes, filmes e mais filmes. De todos os gêneros, países, épocas e níveis de qualidade. Afinal, a sétima arte não tem esse nome à toa.
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