GILDA (Gilda, 1946, Columbia Pictures Corporation, 110min) Direção: Charles Vidor. Roteiro: Marion Parsonnet, estória de E.A. Ellington, adaptação de Jo Eisinger. Fotografia: Rudolph Maté. Montagem: Charles Nelson. Música: Hugo Friedhofer. Figurino: Jean Louis. Direção de arte/cenários: Stephen Goosson/Robert Priestley. Produção: Virginia Van Upp. Elenco: Glenn Ford, Rita Hayworth, George Macready, Joseph Calleia, Steven Geray. Estreia: 14/02/46
Em 1946, o exército norte-americano fez vários testes nucleares no Atol de
Bikini. Uma das bombas, batizada de Gilda, era uma sincera homenagem à
personagem-título de um dos filmes de maior sucesso do ano e à sua intérprete,
a atriz Rita Hayworth. O que poderia ser considerado um elogio para a maioria
das mulheres ciosas de sua beleza, porém, não agradou nem um pouco à
estonteante então esposa de Orson Welles. Ofendida com o ato, Hayworth parecia
prever que a imagem transmitida pelo filme de Charles Vidor – a de uma mulher
cuja maior qualidade residia na sua capacidade de enlouquecer os homens através
da aparência – a seguiria pelo resto da vida e da carreira. A mulher que
declarou, não sem uma ponta de mágoa, que “os homens dormem com Gilda e acordam
comigo!” deve à produção de Vidor – que ela recusou, a princípio – a perenidade
de seu status de símbolo sexual. Talvez apenas Marilyn Monroe e sua saia
levantada por acidente em “O pecado mora ao lado” seja uma imagem tão excitante
na história do cinema quanto o strip-tease de Gilda. Que o diga o escritor
Stephen King, que fez com que a personagem tivesse importância crucial – ainda
que indireta – em seu conto “Rita Hayworth and the Shawshank redemption”, que
deu origem ao genial filme “Um sonho de liberdade”, dirigido por Frank Darabont
em 1994.
A trama de “Gilda” não é exatamente um primor, chegando muitas vezes ao
nível do superficial. Sorte de Vidor e da Columbia Pictures – e seu chefão
Harry Cohn – que a química entre o casal central, formado por Hayworth e o
canadense Glenn Ford, extrapolou os limites do roteiro e tornou-se a maior
força do filme, estendendo-se para a vida real e acompanhando os dois para
sempre. Quando estão juntos em cena, Hayworth e Ford suplantam o enredo pouco
criativo e justificam a aura de sensualidade que fez desse trabalho específico
de Vidor – que já havia dirigido a atriz em “Modelos” (41) e voltaria a
comandá-la em “Carmen” (48) – sua obra mais marcante. Valorizado pela
fotografia em preto-e-branco de Rudolph Mate, que usa e abusa das sombras para
sublinhar a atmosfera sexy e esfumaçada de boates, cassinos e ambientes
propensos a todo tipo de crime, “Gilda” é um filme noir que poderia tranquilamente
ter Humphrey Bogart em seu elenco. E por pouco não teve.
Convidado para interpretar o perdido Johnny Farrel, principal papel
masculino do filme, Bogart declinou da proposta afirmando – com toda a razão,
como se veria mais tarde – que sua presença ou de qualquer outro ator ao lado
de Rita Hayworth seria totalmente desnecessária, uma vez que a beleza radiante da
atriz ofuscaria tudo à sua volta. Logicamente o ator não estava tendo uma
premonição, mas basta que Hayworth apareça pela primeira vez em cena para que
realmente todo o resto torne-se menos importante do que ela. Sua entrada no filme
– em uma sequência clássica onde ela mostra o lindo rosto ao levantá-lo e jogando
os cabelos para trás – só encontra rival em outro momento fundamental do
erotismo no cinema americano: Gilda entoando “Put the blame on Mame” (dublada
por outra cantora) enquanto ensaia um strip-tease que chega apenas a uma luva e
uma gargantilha, mas deixa todos os homens da boate – e da plateia – suspirando
de paixão.
E paixão é a mola-mestra do filme – assim como o ódio e a vingança, dois de
seus efeitos colaterais mais conhecidos. Em Buenos Aires (uma mudança
surpreendente de cenários, especialmente nos anos 40 obcecados por EUA, França
e Alemanha), o jogador Johnny Farrell (Glenn Ford) passa a ser o protegido do
misterioso Bernard Mundson (George MacReady), que o contrata como gerente de um
de seus cassinos. Homem de confiança do patrão – que tem contatos no mínimo
suspeitos com um grupo de empresários ligados a minas de tungstênio – Farrell vê
sua lealdade ao novo amigo sofrer um duro golpe quando descobre que sua esposa,
a americana Gilda (Hayworth no auge da beleza), é a mesma mulher por quem ele
ainda sofre depois de uma decepção amorosa. Tanto um quanto o outro tem arestas
para aparar em relação ao fim do romance, mas tal embate ameaça sucumbir à
atração irresistível que ambos ainda sentem – até que Mundson é dado como morto
em um acidente de avião durante uma fuga. O que poderia ser a grande chance
para o reacender do antigo amor, porém, mostra-se, na prática, mais um
exercício de vingança.
E é isso. A trama, simples e direta – mas que tenta parecer intrincada com
todas as negociações de Mundson e seus sinistros sócios – é apenas moldura para
o show de química entre Hayworth e Glenn Ford. O roteiro é recheado de diálogos
de duplo sentido e não se furta a apelar até mesmo para um final ao estilo
noir, com reviravoltas e um crime redentor. A direção de Charles Vidor é elegante
e discreta. O figurino, como se poderia esperar, tornou-se ícone da moda. Mas é
Rita e sua Gilda – uma mulher como nunca mais houve outra – a verdadeira razão
de ser de um filme que, com outra intérprete, correria o risco de ser apenas
mais um no longo universo dos clássicos do cinema americano.
Filmes, filmes e mais filmes. De todos os gêneros, países, épocas e níveis de qualidade. Afinal, a sétima arte não tem esse nome à toa.
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