DONA FLOR E SEUS DOIS MARIDOS (Dona Flor e seus dois maridos, 1976, LC Barreto Produções, 110min) Direção: Bruno Barreto. Roteiro: Bruno Barreto, Eduardo Coutinho, Leopoldo Serran, romance de Jorge Amado. Fotografia: Murilo Salles. Montagem: Raimundo Higino. Música: Chico Buarque, Francis Hime. Figurino: Anísio Medeiros. Direção de arte: Anisio Medeiros. Produção: Luiz Carlos Barreto, Newton Rique. Elenco: Sônia Braga, José Wilker, Mauro Mendonça, Nelson Xavier, Nelson Dantas, Dinorah Brillanti, Francisco Dantas, Hélio Ary. Estreia: 22/11/76
Não há melhor palavra para descrever "Dona Flor e seus dois maridos", a adaptação do romance de Jorge Amado para as telas de cinema, lançada em 1976, do que fenômeno: estrelado por Sônia Braga no auge da beleza e sensualidade, o filme estabeleceu de cara dois recordes que só foram quebrados décadas mais tarde. Não foi apenas a produção nacional mais vista no país por mais de trinta anos - suplantada apenas por "Tropa de elite 2" (2010) - como também foi, por mais de vinte anos, o maior sucesso de público entre os espectadores brasileiros - só perdeu o posto quando "Titanic", de James Cameron, atracou nas salas de exibição em 1998. Não bastasse o indiscutível sucesso popular, o filme de Bruno Barreto (que tinha inacreditáveis 19 anos de idade durante as filmagens e já estava em seu terceiro longa) conquistou também a crítica internacional - concorreu ao Golden Globe de melhor filme estrangeiro e deu à Sônia uma indicação ao BAFTA de revelação do ano - a crítica brasileira - levou dois prêmios no Festival de Gramado - e os produtores de Hollywood - que seis anos mais tarde lançaram um remake pouco inspirado, chamado "Meu adorável fantasma", estrelado por Sally Field, James Caan e Jeff Bridges. Sua permanência no inconsciente coletivo nacional é tão notável que nem a adaptação em forma de minissérie, com Giulia Gam, Edson Celulari e Marco Nanini, ou a refilmagem, com Juliana Paes, Marcelo Faria e Leandro Hassum, conseguiram apagar da memória do público algumas das cenas mais marcantes do cinema nacional.
A figura de Sônia Braga saindo da missa dominical de braços dados com os dois maridos (um deles nu em pelo) é, sem favor, uma das sequências mais inesquecíveis produzidas pelos cineastas brasileiros - talvez não tão poderosa quanto aquelas concebidas por Glauber Rocha em "Deus e o Diabo na Terra do Sol", mas igualmente icônica. O irônico é que, durante as filmagens, ninguém poderia imaginar o quão longe o filme iria em sua trajetória - uma trajetória fundamental para fortalecer o nome de Sônia Braga e Bruno Barreto no exterior. Sônia, que acabava de fazer outra heroína de Jorge Amado na televisão - a Gabriela Cravo e Canela que ela voltaria a encarnar no cinema, ao lado de Marcello Mastroianni e novamente dirigida por Barreto -, em poucos anos deixaria o Brasil para tentar uma carreira internacional, enquanto o cineasta também buscaria o reconhecimento mundial e se casaria com a atriz Amy Irving - ex de ninguém menos que Steven Spielberg. Lançado quase uma década depois da publicação do romance original, que já havia sido traduzido para o mercado norte-americano em 1969, "Dona Flor e seus dois maridos" pegava carona na estética das pornochanchadas que mantinham o público do cinema brasileiro, mas apresentava uma sofisticação inédita: o roteiro bem-humorado e sensual de Leopoldo Serran e do documentarista Eduardo Coutinho, a música de Chico Buarque e Francis Hime (cantada por Simone, em início de carreira), as caracterizações detalhistas e o trabalho primoroso de direção imediatamente o colocava muitos níveis acima do que era feito no país, à época. E, de carona com o carisma radiante de Sônia, o produtor Luiz Carlos Barreto entrou para a história da cultura tupiniquim.
Se é que alguém ainda não conhece a trama, ela se passa na Salvador dos anos 40, e é protagonizada pela jovem Flor (Sônia Braga), uma professora de culinária que vive um casamento atribulado com o mulherengo e irresponsável Vadinho (José Wilker) - ele não apenas não trabalha como ainda tira dinheiro da mulher para apostar e pagar farras homéricas com os amigos e prostitutas. Apesar disso, e de sofrer violência física do marido, Flor é apaixonada por ele, com quem vive uma história de muita paixão e desejo físico. De repente, de uma hora para outra, Vadinho morre do coração durante o Carnaval, deixando sua viúva inconsolável, seus amigos devastados e o mulherio baiano de luto. Alguns anos depois, Flor passa a ser cortejada por Teodoro (Mauro Mendonça), um farmacêutico respeitado, financeiramente estabilizado e dono de uma maturidade a qualquer prova. Incentivada pela mãe, Flor aceita se casar novamente, mas não demora para perceber que, apesar de lhe oferecer uma vida pacata e sem sobressaltos, Teodoro é incapaz de lhe prover o fogo com que Vadinho sempre a preencheu. Um tanto desiludida com essa conclusão, Flor passa a suspirar de saudades do falecido marido - que, para sua surpresa, volta a lhe aparecer como fantasma e exigir seus direitos matrimoniais.
Contada em tom de humor debochado e brejeiro, a história de "Dona Flor e seus dois maridos" encontra os intérpretes ideais em Sônia, Wilker e Mauro Mendonça. Como os dois lados da mesma moeda, os homens da relação oferecem à protagonista feminina (e, até por um lado, feminista, ao não abrir mão do que deseja) a estabilidade e a paixão, o apolíneo e o dionisíaco, o céu e o inferno. Lançado em meio à ditadura militar, o filme obviamente teve cenas cortadas em seu lançamento, mas isso não o impediu de ganhar o apoio massivo do público e transformar um projeto ambicioso (o mais caro até então em produção nacional) em um êxito indiscutível. Visto com olhos atuais, tem alguns pequenos problemas (o visual datado, o ritmo claudicante em determinado momento), mas, no geral, é um filme que merece o sucesso que fez - e ainda faz. Ilustrado pela belíssima música de Chico Buarque, é um marco indelével na cultura popular brasileira - e o trabalho definitivo de Sônia Braga em seu caminho ao sucesso mundial.
Filmes, filmes e mais filmes. De todos os gêneros, países, épocas e níveis de qualidade. Afinal, a sétima arte não tem esse nome à toa.
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