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O QUE EU FIZ PARA MERECER ISSO?

O QUE EU FIZ PARA MERECER ISSO? (Une heure de tranquillité, 2014, TF1 Films Production/Wild Bunch/Fidélité Films, 79min) Direção: Patrice Leconte. Roteiro: Florian Zeller, peça teatral de Florian Zeller, Simon Gray. Fotografia: Jean-Marie Dreujou. Montagem: Joelle Hache. Música: Éric Neveux. Direção de arte: Ivan Maussion. Produção: Olivier Delbosc. Elenco: Christian Clavier, Carole Bouquet, Valérie Bonneton, Rossy de Palma, Stéphanie de Groodt, Sébastien Castro, Christian Charmetant. Estreia: 31/12/14

O título em português é semelhante ao clássico oitentista de Pedro Almodóvar, mas "O que eu fiz para merecer isso?" não tem, rigorosamente, nada a ver com a comédia surrealista do cineasta espanhol - a não ser que se conte a participação de Rossy de Palma, colaboradora célebre do oscarizado diretor de "Fale com ela" (2002) e "Tudo sobre minha mãe" (1999). Baseado em uma peça de teatro escrita pelo roteirista Florian Zeller em parceria com Simon Gray, o filme do veterano Patrice Leconte é um típico produto francês: verborrágico, autocrítico e com um humor bem mais sofisticado que a média. Para sorte do espectador, porém, essa sofisticação não o impede de ser um passatempo divertido e rápido (pouco menos de uma hora e meia), capaz de fazer rir graças a suas inusitadas situações e personagens bem delineados e interpretados por um belo elenco - liderado pelo sensacional Christian Clavier, conhecido do grande público por seu trabalho como Asterix, nas adaptações cinematográficas dos famosos quadrinhos de René Goscinny e Alberto Uderzo.

Especialista em interpretar pais de família à beira de um ataque de nervos (para novamente citar Almodóvar), Clavier mais uma vez demonstra um timing cômico impecável na pele de Michel Leproux, o protagonista do filme de Leconte. Odontologista consagrado e bem estabelecido em um belo e amplo apartamento de Paris, Michel encontra, em um de seus passeios pelos mercados de pulga da cidade, um vinil raro de jazz, o qual procurava há décadas. Sabendo que seu melhor amigo, Pierre (Christian Charmetant), irá visitá-lo logo mais, ele corre até seu doce lar com o objetivo claro e simples de ter uma simples hora de tranquilidade (a hora do título original em francês) e deleitar-se com sua música preferida. Como planos nunca costumam dar certo - especialmente em comédias -, tudo parece conspirar contra o momento de paz de Michel. Sua mulher, Nathalie (Carole Bouquet), está decidida a revelar um segredo do passado, incentivada por seu terapeuta; sua amante, Elsa (Valérie Bonneton), melhor amiga de sua mulher, quer expor o relacionamento extraconjugal, movida por um intenso sentimento de culpa; seu filho, Sébastien (Sébastien Castro) está hospedando uma família de imigrantes filipinos no apartamento exatamente acima dos pais; e, se não bastasse, uma dupla de estrangeiros está cuidando da reforma do banheiro (leia-se demolindo ruidosamente as paredes).


Desesperado pela série de situações que o rodeiam e o impedem de ser feliz por alguns minutos, Michel ainda precisa lidar com o vizinho, Pavel (Stéphane de Groodt) - que sofre com o vazamento do banheiro do andar de cima e está preparando cuidadosamente uma festa para todos os moradores do prédio - e a voluntariosa empregada doméstica, Maria (Rossy de Palma). Quando percebe que definitivamente sua esperança está destruída, novos problemas surgem no horizonte - e revelações bombásticas transformam uma banal tarde de sábado em um pesadelo kafkiano, em que imigrantes, pedreiros, vizinhos desconhecidos e amantes secretos se tornam parte do mesmo universo. Essa estrutura teatral é muito bem conduzida por Leconte, em um trabalho discreto, quase minimalista em termos de produção. Praticamente sem tomadas externas e desenvolvido dentro de um período de tempo bem definido, "O que eu fiz para merecer isso?" não nega suas origens teatrais, mas jamais se prende às limitações que elas poderiam lhe impor, dado o frescor de seu texto e do talento de seu elenco: seguros e com excelente química, eles transformam a experiência em diversão pura.

Conhecido por filmes densos, como "Um homem meio esquisito" (1989), "O marido da cabeleireira" (1990) e "Caindo no ridículo" (1996), indicado ao Oscar, Leconte mais uma vez encontra no humor a forma ideal de criticar o moralismo e a hipocrisia da sociedade. O desfile de personagens inusitados - mas aparentemente normais - que surge diante dos olhos de Michel (e do espectador) é um retrato de uma Europa tanto cosmopolita quanto fechada. A luta ideológica de Sébastien em defender imigrantes enquanto pedreiros estrangeiros batalham por dinheiro em um emprego insalubre no apartamento de seu pai, por exemplo, é sintomático dessa esquizofrenia que se estende pelo mundo inteiro - assim como a indignação do protagonista ao descobrir segredos da esposa enquanto ele mesmo tem seus mistérios a encobrir. A reunião forçada de vizinhos, a solidão e a falta de comunicação também estão entre os temas discutidos no texto - em maior ou menor grau de clareza e obviedade. Inteligente e sarcástico, "O que eu fiz para merecer isso?" é uma delícia, ainda que nem todo mundo vá perceber toda a extensão de sua crítica.

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