sexta-feira

PASSAGEM PARA A ÍNDIA

PASSAGEM PARA A ÍNDIA (A passage to India, 1984, EMI Films, 154min) Direção: David Lean. Roteiro: David Lean, romance de E.M. Forster e peça teatral de Santha Rama Rau. Fotografia: Ernest Day. Montagem: David Lean. Música: Maurice Jarre. Figurino: Judy Moorcroft. Direção de arte/cenários: John Box/Hugh Scaife. Produção: John Brabourne, Richard B. Goodwin. Elenco: Judy Davis, Victor Banerjee, Peggy Ashcroft, James Fox, Alec Guinness, Nigel Havers. Estreia: 14/12/84 

11 indicações ao Oscar: Melhor Filme, Diretor (David Lean), Atriz (Judy Davis), Atriz Coadjuvante (Peggy Ashcroft), Roteiro Adaptado, Fotografia, Montagem, Trilha Sonora Original, Figurino, Direção de Arte/Cenários, Som
Vencedor de 2 Oscar: Atriz Coadjuvante (Peggy Ashcroft), Trilha Sonora Original
Vencedor de 3 Golden Globes: Melhor Filme Estrangeiro, Atriz Coadjuvante (Peggy Ashcroft), Trilha Sonora Original 

Quatorze anos separam "A filha de Ryan" e "Passagem para a Índia". Nesse meio tempo, o cineasta David Lean, consagrado por filmes épicos como "A ponte do Rio Kwai" (57), "Lawrence da Arábia" (62) e "Doutor Jivago" (65) ficou longe das telas, decepcionado com a recepção fria da crítica e do público a seu último trabalho - e cogitou inclusive abandonar de vez a carreira de diretor. Seu retorno, porém, mostrou que a distância da indústria não lhe tirou a sensibilidade e tampouco o olhar apurado para encontrar o drama psicológico de personagens escondidos em vastas paisagens. Escrito durante o ano de 1982, entre Nova Déli e Zurique, o roteiro de "Passagem para a Índia" abandona a peça teatral escrita por Santha Rama Rau (cujo texto não valorizava as vastas possibilidades visuais da trama, justamente pelas limitações de um palco) e se concentra na sutileza da construção dos protagonistas criados pelo romancista E.M. Forster e mergulha sem medo no embate entre as culturas indiana e britânica - sem poupar a plateia de suas características mais marcantes: a fotografia impecável, a reconstituição de época caprichada e uma inspirada trilha sonora (que deu a Maurice Jarre um merecido prêmio da Academia).

Mesmo sem a opulência dos trabalhos mais conhecidos de Lean, "Passagem para a Índia" brinda o espectador com belos momentos - cortesia da fotografia de Ernest Day - e atuações precisas de um elenco homogêneo, que inclui desde uma  jovem Judy Davis até os veteranos Alec Guinness e Peggy Ashcroft (vencedora do Oscar de coadjuvante) e o ator indiano Victor Banerjee, uma opção mais do que acertada do cineasta, uma vez que o tema principal do filme é o embate entre duas culturas conflitantes e, paradoxalmente, complementares. O resultado, belo e interessante, não reflete, nas telas, o clima pouco amistoso dos bastidores, onde o veterano diretor se via em constante atrito com a equipe e com o elenco. Com Judy Davis a briga era por discordâncias em relação à personagem; com Victor Banerjee o problema era o sotaque; Peggy Ashcroft reclamava das alterações do roteiro em relação ao romance e da falta de respeito com os colegas; e com Alec Guinness o problema foi tão grande que, após as filmagens (e depois que o ator viu que grande parte de suas cenas foram cortadas na edição final), os dois nunca mais se falaram. Com tantas situações desagradáveis por trás das câmeras, é surpreendente, porém, como "Passagem para a Índia" funciona diante dos olhos da plateia.


Tudo bem que a trama em si demora a engrenar, confirmando a tendência de Lean em estender suas cenas de modo a proporcionar ao espectador uma submersão total no universo retratado - no caso, a Índia do período colonial, ou seja, no início dos anos 1920. É para lá que vão Adela Quested (Judy Davis) e a espiritualizada Sra. Moore (Peggy Ashcroft), mãe de seu futuro noivo, o magistrado Ronny Heaslop (Nigel Havers). O desejo de ambas é conhecer a fundo a cultura do país, mas não demora para que percebam que sua viagem não será tão produtiva nesse aspecto: não há interação social entre britânicos e ingleses, e até mesmo pessoas de alto nível intelectual, como o médico Aziz Ahmed (Victor Banerjee), são tratados com uma relativa distância pela sociedade formada pelos colonizadores (da qual faz parte inclusive Ronny). A única exceção entre tais conterrâneos é o professor Richard Fielding (Edward Fox), cuja mente mais aberta aproxima as duas turistas do doutor, um viúvo querido pela comunidade, mas um tanto ingênuo em relação às coisas do mundo. Quando Aziz organiza um piquenique nas cavernas mais famosas do local, um incidente acaba levando todos ao tribunal, com Adela o acusando de abuso sexual.

No fundo, a trama de "Passagem para a Índia" é apenas um pretexto para o olhar arguto do escritor E.M. Forster em relação a temas como preconceito racial, diferença de classes e repressão sexual. David Lean, deixa claro, através de sequências belamente filmadas e de interpretações preciosas, que entendeu o âmago do romance - e aproveita ao máximo o rico cenário para contar sua história sem pressa e com delicadeza. O ritmo pode incomodar aos mais impacientes (em especial no início, quando o roteiro se concentra em longos planos e diálogos), mas o resultado final é digno de figurar na filmografia do diretor, um dos maiores do cinema inglês. Judy Davis brilha com uma personagem dúbia e complexa, mas foi Peggy Ashcroft quem levou o Oscar de coadjuvante, por um desempenho caloroso e sensível que faz a ponte entre dois mundos extremamente distintos mas intrinsecamente ligados. Um filme para públicos especiais, que apreciam uma boa história contada através de imagens caprichadas e delicadeza acima de qualquer crítica. Um belo canto do cisne para um homem que encantou gerações com seu bom gosto e inteligência.

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