DE
SALTO ALTO (Tacones lejanos, 1991, El Deseo S/A, 112min) Direção e
roteiro: Pedro Almodovar. Fotografia: Alfredo Mayo. Montagem: José
Salcedo. Música: Ryuichi Sakamoto. Figurino: José Maria de Cossío.
Direção de arte/cenários: Pierre Thevenet/Julian Mateos. Produção
executiva: Agustin Almodovar. Elenco: Victoria Abril, Marisa Paredes,
Miguel Bosé, Ana Lizaran, Feodor Atkine. Estreia: 23/10/91
Quando
estava na fase final de filmagens de "Ata-me" (90), filme seguinte ao
imenso sucesso de "Mulheres à beira de um ataque de nervos" (88), que
chegou a lhe dar uma inédita indicação ao Oscar de melhor produção
estrangeira, o espanhol Pedro Almodovar já tinha em mente o argumento de
seu novo projeto. A trama, que contaria a estória de duas irmãs
precisando lidar com o reaparecimento de sua mãe tida como morta, acabou
não vingando - pelo menos até 2006 quando o cineasta retomou o tema de
forma mais burilada no excelente "Volver" - mas o diretor manteve na
cabeça a ideia de falar sobre o relacionamento entre mãe e filha, assim
como utilizar uma cena que adorava, onde uma apresentadora de telejornal
confessava um crime em rede nacional. Surgia assim, a partir de uma
ideia vaga e uma cena aparentemente aleatória, o roteiro de "De salto
alto", o primeiro de seus filmes a mergulhar sem medo no melodrama
rasgado - gênero com que ele ainda flertaria em "A flor do meu segredo"
(96) e que lhe daria a consagração mundial com "Tudo sobre minha mãe"
(99).
Quem estava acostumado com o estilo iconoclasta
de Almodovar - e com seu humor todo particular - deve ter levado um
susto ao deparar-se com seu novo filme, uma história de amor e solidão
com tom sério e pouco afeito a brincadeiras (e mesmo quando elas
aparecem soam dotadas de um cinismo que somente ele poderia apresentar
sem parecer amargurado). Mesmo que mantenha algumas de suas maiores
características bem explícitas - a desinibida cena de sexo entre
Victoria Abril e Miguel Bosé é um exemplo, assim como o uso exemplar das
cores e da trilha sonora - o diretor não hesita em conduzir o
espectador a um outro nível emocional e sensorial, que superficialmente
lembra a estrutura de uma telenovela mas que, em suas diversas camdas,
fica entre a profundidade psicológica de Ingmar Bergman (citado em um
belo diálogo) e a exuberância visual de Douglas Sirk (referência maior
do diretor quando se fala em melodrama).
A
protagonista de "De salto alto" é Becky Del Páramo (Marisa Paredes),
cantora pop do passado e hoje grande dama da canção espanhola, cujo
retorno a Madri depois de quinze anos serve como catalisador de
profundas transformações na vida de sua filha única, Rebeca (Victoria
Abril), a quem não vê desde criança, quando mudou-se para o México em
busca de novos desafios profissionais. O relacionamento distante entre
as duas está ainda mais complicado desde que Rebeca, apresentadora de um
popular telejornal do país, casou-se com Manuel (Feodor Atkine), antigo
amante de sua mãe. O casamento entre eles vai de mal a pior,
principalmente porque Manuel ainda sente-se atraído por Becky - uma
situação que acaba, mesmo sem querer, aproximando a jovem de Hugo
(Miguel Bosé), um conhecido que faz shows vestido como uma drag queen em
que imita sua mãe. O imbroglio familiar fica ainda mais complicado,
porém, quando Manuel é assassinado com um tiro, o juiz encarregado do
caso descobre que ele ainda mantinha um caso com a famosa cantora - e
Rebeca assume a autoria do crime em rede nacional.
Desafiando
as convenções do gênero policial - o "quem matou" acaba sendo um tema
apenas incidental da narrativa - em favor de um viés melodramático,
Pedro Almodovar costura sua trama através de dolorosas reminiscências
familiares (através de flashbacks que elucidam a dúbia relação entre mãe
e filha) que resultam em um presente opressivo e conflituoso. Poucas
vezes até então seu cinema se permitiu mergulhar tão fundo na psicologia
de seus personagens, seja através de diálogos brilhantes (recitados por
Victoria Abril e Marisa Paredes em momento fundamental de suas
carreiras), do figurino caprichado (que se utiliza da sofisticação das
roupas Chanel para comentar a personalidade das protagonistas) e da
música, escolhida a dedo - apesar da trilha sonora ter sido composta
pelo veterano Ryuchi Sakamoto, o diretor optou por coalhar a estória com
canções populares regravadas especialmente para o filme, como forma de
sublinhar as emoções da trama. Até mesmo algumas ousadias como usar o
mesmo ator - Miguel Bosé - para interpretar dois personagens (ou três,
dependendo do ponto de vista) soa, mais do que um artíficio, como um
golpe de mestre do cineasta, que embaralha suas cartas de forma a
surpreender a plateia - coisa que também faz em um momento inusitado no
meio do filme, quando um grupo de presidiárias, do nada, começa uma
coreografia.
"De salto alto" foi, sem dúvida, o
primeiro grande passo de Pedro Almodovar rumo à sofisticação narrativa
com a qual seria reconhecido mundialmente em poucos anos. Substituindo o
humor corrosivo e absurdo com que salpicava suas obras por um tom menos
debochado mas ainda assim não totalmente desprovido de ironia e
sarcasmo (mesmo que bem disfarçado por metáforas visuais e conceituais),
o cineasta provou que tinha talento de sobra para sair de sua zona de
conforto e buscar mais alcance com as estórias recheadas de personagens
deliciosos que habitavam sua mente. O resultado dividiu a crítica, mas
hoje, mais de duas décadas depois de seu lançamento, pode ser
considerado, sem dúvida, um de seus filmes mais importantes.
Filmes, filmes e mais filmes. De todos os gêneros, países, épocas e níveis de qualidade. Afinal, a sétima arte não tem esse nome à toa.
terça-feira
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