GAROTOS
DE PROGRAMA (My own private Idaho, 1991, New Line Cinema, 104min)
Direção: Gus Van Sant. Roteiro: Gus Van Sant, inspirado livremente em
"Henry IV", de William Shakespeare. Fotografia: John Campbell, Eric Alan
Edwards. Montagem: Curtiss Clayton. Música: Bill Stafford. Figurino:
Beatrix Aruna Pasztor. Direção de arte/cenários: David Brisbin/Melissa
Stewart. Produção: Laurie Parker. Elenco: River Phoenix, Keanu Reeves,
James Russo, William Richert, Chiara Caselli, Flea, Udo Kier, Grace
Zabriskie. Estreia: 12/9/91 (Festival de Toronto)
Quando
"Garotos de programa" estreou, no Festival de Toronto de 1991, o
diretor Gus Van Sant já era um queridinho do mundo do cinema
independente, graças ao sucesso de seu filme de estreia, "Drugstore
cowboy", que contava as aventuras de um grupo de jovens viciados em
drogas que repunham seu estoque assaltando farmácias. Seu filme
seguinte, que misturava três projetos que estavam em seu colo sem
conseguir levantar voo, conquistou ainda mais a crítica especializada,
levando prêmios por festivais mundo afora (Veneza, Toronto, Deauville) e
dando a River Phoenix, um de seus protagonistas, o status de grande
ator com que ele acenava desde os tempos de "Conta comigo" (86): na pele
do prostituto juvenil e narcoléptico Mike Waters, ele foi eleito o
melhor ator do Festival de Veneza e levou o prêmio da Sociedade Nacional
de Críticos de Cinema, além do Independent Spirit Award do ano. Não é
pouca coisa para quem tinha apenas 20 anos de idade durante as filmagens
- e que infelizmente morreu tragicamente aos 23 anos, vítima de
overdose.
Não é exagero afirmar que o trabalho de
Phoenix - discreto, lúdico e comovente - é a maior qualidade de "Garotos
de programa", e o que justifica todo o oba-oba em relação ao filme de
Van Sant, um retrato mezzo poetico mezzo pé no chão do
dia-a-dia de jovens que vendem o corpo para sobreviver nas ruas de
Portland, Oregon. Centrando sua trama em dois personagens com passados
bastante distintos mas com realidades muito semelhantes, o roteiro do
diretor (livremente inspirado em "Henry IV", de Shakespeare) passeia por
cenários diversos (Portland, Idaho e até Roma) para contar a história
de busca e tentativa de redenção do jovem Mike (papel de Phoenix, que,
inspirado, chegou a reescrever uma cena crucial do filme, com o apoio do
diretor), rapaz abandonado pela família, narcoléptico (tem crises
irrefreáveis de sono em momentos de stress), gay e apaixonado pelo
melhor amigo, que acredita que o reencontro com a mãe mudará seu
destino. Ele conta com o apoio de Scott Favor (Keanu Reeves), filho de
família influente que tornou-se michê como forma de afrontar ao pai -
afronta esta que tem data limite para expirar - e insiste em declarar-se
heterossexual. Os dois partem em uma odisseia passional, sem lenço nem
documento, contando apenas com sua juventude e seus corpos como forma de
ganhar dinheiro.
A
trama de "Garotos de programa" beira o melodrama barato, com filhos
abandonados pela mãe, amores impossíveis, juventude radical contra os
convencionalismos arcaicos, mas Van Sant tem o mérito de mesclar com
todos esses elementos clássicos uma forma de narrativa criativa e por
vezes desconcertante. Em seu universo, capas de revistas direcionadas ao
público gay conversam entre si nas bancas onde estão expostas, bêbados
de rua declamam Shakespeare e as cenas de sexo são estilizadas a ponto
de parecer slides ou fotografias - tanto o ménage-à-trois entre os dois
amigos e um milionário alemão vivido pelo sempre bizarro Udo Kier quanto
a cena pretensamente tórrida entre Keanu Reeves e uma jovem italiana
por quem ele se apaixona, para desespero de Mike, são propositalmente
chocantes não pelo que mostram (pouco) mas pela maneira como isso
acontece. Essa criatividade de Van Sant é enfatizada constantemente
pelos ângulos inusitados de câmera, pelas elipses narrativas que dão ao
espectador a mesma sensação de angústia de Mike e pela edição pouco
convencional, que borra as fronteiras entre o cinemão comercial
americano e o mais puro cinema independente - que pouco depois seria
desvirtuado em função de objetivos comerciais até pelo próprio diretor
(que se venderia à indústria com filmes com "Gênio indomável" (87)).
Essa importância, a de dar voz a um cinema realmente desvinculado dos
grandes estúdios americanos, ninguém pode tirar do filme, por mais que
ele possa desagradar parte da plateia.
Sem fixar-se em
assuntos polêmicos, como a prostituição masculina em si - tornada cômica
em determinadas sequências, diretas em outra, mas nunca mostrada como
uma condição degradante ou vitimizadora, o que por si só já é um mérito
inegável - "Garotos de programa" trata seus personagens com carinho,
ainda que por vezes lhes dê uma considerável carga de dramas pessoais
para carregar em suas costas frágeis. A interpretação singela de River
Phoenix, especialmente, imprime ao filme uma ternura e uma delicadeza
que tiram o peso que o tema poderia lhe infligir, carregando-o de poesia
e tristeza. O filme de Van Sant pode não ser uma unanimidade por várias
razões, mas seu tom melancólico mesmo nos momentos mais leves - somado à
atuação de Phoenix e sua coragem em romper com alguns padrões
narrativos clássicos - merece ser louvado e respeitado.
Filmes, filmes e mais filmes. De todos os gêneros, países, épocas e níveis de qualidade. Afinal, a sétima arte não tem esse nome à toa.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
JADE
JADE (Jade, 1995, Paramount Pictures, 95min) Direção: William Friedkin. Roteiro: Joe Eszterhas. Fotografia: Andrzej Bartkowiak. Montagem...
-
EVIL: RAÍZES DO MAL (Ondskan, 2003, Moviola Film, 113min) Direção: Mikael Hafstrom. Roteiro: Hans Gunnarsson, Mikael Hafstrom, Klas Osterg...
-
NÃO FALE O MAL (Speak no evil, 2022, Profile Pictures/OAK Motion Pictures/Det Danske Filminstitut, 97min) Direção: Christian Tafdrup. Roteir...
-
ACIMA DE QUALQUER SUSPEITA (Presumed innocent, 1990, Warner Bros, 127min) Direção: Alan J. Pakula. Roteiro: Frank Pierson, Alan J. Paku...
Nenhum comentário:
Postar um comentário