AZUL É A COR MAIS QUENTE (La vie d'Adèle, 2013, Wild Bunch/France 2 Cinéma/Quat'sous Films, 179min) Direção: Abdellatif Kechiche. Roteiro: Abdellatif Kechiche, Ghalia Lacroix, comic book "Le bleu est une couleur chaude", de Julie Maroh. Fotografia: Sofian El Fani. Montagem: Sophie Brunet, Ghalia Lacroix, Albertine Lastera, Jean-Marie Lengelle, Camille Toubkis. Figurino: Paloma Garcia Martens. Direção de arte/cenários: Julia Lemaire. Produção: Brahim Chioua, Abdellatif Kechiche, Vincent Maraval. Elenco: Léa Seydoux, Adèle Exarchopoulos, Salim Kechichoue, Aurélien Recoing, Catherine Salée. Estreia: 23/5/13 (Festival de Cannes)
Vencedor da Palma de Ouro/Festival de Cannes 2013
Nada como uma boa polêmica (ou mais de uma) para que um filme como "Azul
é a cor mais quente" - que de outra forma teria sua audiência restrita a
fãs de festivais de cinema e ao público alternativo de cinema de
temática gay - consiga atingir o espectador médio. Vencedora da Palma de
Ouro de Melhor Filme no Festival de Cannes de 2013 - que pela primeira
vez premiou, além do diretor, suas duas atrizes centrais - a obra de
Abdellatif Kechiche provocou controvérsias que, de certa forma,
eclipsaram suas inúmeras qualidades. Desde a forma como Kechiche tratou
suas estrelas - de forma cruel e exaustiva, segundo as próprias - até as
longas sequências de sexo - bastante gráficas e muito mais ousadas do
que o que normalmente se vê no cinema mainstream, mas muito longe de ser
pornográficas - tudo serviu para que até o mais desinformado
frequentador das salas de exibição tivesse a curiosidade aguçada. Com
esse marketing involuntário, o filme corria o sério risco de ser mais
lembrado por suas cenas eróticas do que por sua história, forte e
realista. É preciso, então, passada a tempestade de seu lançamento, separar o joio do trigo.
Logicamente muito do público que correu aos cinemas o fez principalmente para
conferir o embate carnal entre as duas atrizes, Léa Seydoux e Adéle
Exarchpoulos - cuja personagem tem seu mesmo nome para conferir mais
realismo às cenas, muitas delas registradas quando a atriz não estava agindo como a personagem, nos bastidores das filmagens. Quantas pessoas desse público, porém, terão a sensibilidade
suficiente para, por trás disso, enxergar o que realmente importa no
roteiro, baseado no romance gráfico de Julie Maroh, que tem diferenças substanciais do filme? "Azul é a cor mais
quente" é muito mais do que a história de uma adolescente descobrindo o amor através de um romance homossexual. É a história de uma mulher despertando para a
vida, desesperadamente buscando um ponto de apoio sentimental e o lugar
adequado para colocar o desejo. Ao contrário do apregoado pelos
detratores, as cenas de sexo não são gratuitas e apelativas: elas servem
perfeitamente à trama, estabelecendo desde o princípio a base carnal,
passional e telúrica do relacionamento entre as duas jovens. São longas? Sim, mais do que o normalmente exibido no cinema comercial. São desconfortáveis? Depende do grau de puritanismo do espectador.
O título original do filme - "A vida de Adèle, capítulos 1 e 2" - deixa
clara a intenção do diretor em contar, de forma simples e direta,
episódios específicos da vida de sua protagonista, como se fosse parte
de um diário. É compreensível, então, sua opção em realizar quase dois
filmes em um: a primeira metade acompanha as descobertas da adolescente
Adèle, que, encantada pela inteligência e charme de Emma (Léa Seydoux, que já havia trabalhado até com Quentin Tarantino, em "Bastardos inglórios" e Woody Allen, em "Meia-noite em Paris") - uma
estudante de Belas Artes dona de um estiloso cabelo azul - se envolve
em um relacionamento que lhe proporciona calor e prazer, ao mesmo tempo
em que a insere em um mundo muito distante do seu. O romance entre as
duas dá um salto na segunda metade, quando, morando juntas, elas
enfrentam os problemas da rotina e a decadência do desejo. Trabalhando
como professora primária, Adèle sente-se deslocada entre os amigos
artistas de Emma, o que acaba resultando em uma crise quase
incontornável - e o fato de ambas serem mulheres não as impede de passar pelos mesmos problemas de um casal heterossexual (surpresa! elas são seres humanos normais e dotados de sentimentos iguais aos de qualquer um na plateia!).
Mesclando suas cenas românticas com longos discursos sobre arte e
filosofia - nunca forçados ou exageradamente eruditos - Kechiche conta
sua história sem pressa, concentrando-se na fisionomia de Adèle
Exarchpoulos para transmitir todas as sensações que pretende. A jovem
atriz, por sua vez, não deixa a desejar, entregando um desempenho
corajoso e cru que justifica seu prêmio em Cannes - assim como Léa
Seydoux, que transmuta sua doce e sedutora Emma da primeira fase em uma
mulher pragmática e madura na segunda sem precisar utilizar mais do que
seu talento. A opção do diretor em ignorar momentos que poderiam ser
cruciais - a saída do armário de Adèle ou a maneira com que ela revida à
indiferença da parceira - fazem do filme algo ainda mais especial, por
respeitar a inteligência da plateia, fugindo do lugar-comum que faria de
sua obra apenas mais um produto a explorar a temática homossexual. A
crueza de sua filmagem - em contraponto à delicadeza dos sentimentos
expostos pelas personagens - é provavelmente o ponto alto de um filme
que, mais do que controverso, é dolorosamente real. A despeito dos métodos pouco ortodoxos do cineasta, ele conseguiu um feito e tanto - e até mesmo o conservador Steven Spielberg parece concordar com isso, já que era o Presidente do Júri que deu ao filme a Palma de Ouro.
"Azul é a cor mais quente" se presta a diversas discussões - a respeito
de sua estrutura, sobre os atos das personagens (que agem como pessoas
normais e não arquétipos baratos), sobre a ousadia de suas cenas de
sexo, sobre o retrato sem retoques do mundo gay. Mas, acima de tudo, é cinema vivo.
Chacoalha, emociona e quase incomoda. Há quanto tempo um filme não fazia
isso?
Filmes, filmes e mais filmes. De todos os gêneros, países, épocas e níveis de qualidade. Afinal, a sétima arte não tem esse nome à toa.
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Um comentário:
definitivamente amei o filme - ele fala sobre seres humanos, independente de sua orientação sexual.
lindo filme.
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