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SHAME

SHAME (Shame, 2011, See-Saw Films/Film4/UK Council, 101min) Direção: Steve McQueen. Roteiro: Steve McQueen, Abi Morgan. Fotografia: Sean Bobbitt. Montagem: Joe Walker. Música: Harry Escott. Figurino: David Robinson. Direção de arte/cenários: Judy Becker/Heather Loeffler. Produção executiva: Peter Hampden, Tim Haslam, Tessa Ross, Robert Walak. Produção: Iain Canning, Emile Sherman. Elenco: Michael Fassbender, Carey Mulligan, James Badge Dale. Estreia: 04/9/11 (Festival de Veneza)


Quem teve a oportunidade de assistir ao devastador “Fome” (09) – estreia do artista plástico Steve McQueen como cineasta – sabe do que ele é capaz com sua fé inabalável no poder da imagem em detrimento das palavras. Construindo um filme calcado basicamente no visual (mas com um longo diálogo de 12 minutos filmado em plano-sequência), McQueen – homônimo do ator norte-americano famoso por filmes como “Papillon” e “Inferno na torre” – contou a trágica história do irlandês Bobby Sands, que, lutando pelo direito de ser tratado como preso político na Inglaterra dos anos 80, morreu em consequência de uma greve de fome logo depois de eleito deputado. O segundo filme do diretor, “Shame”, não foge muito de sua cartilha que prega a imagem como principal ponto de referência do cinema, construindo toda a tensão de sua trama – assim como seus desdobramentos e subtextos – sobre um poderoso alicerce compartilhado de “Fome”: o extraordinário ator Michael Fassbender.
É o alemão Fassbender, com seu imenso talento, que sustenta a ousadia formal de McQueen em contar sua história com o mínimo possível de diálogos, privilegiando enquadramentos, luzes e a edição – em suma, tudo aquilo que faz do cinema uma arte diferente do teatro e da literatura. Não que os personagens de “Shame” não falem, mas sempre que isso acontece o diretor parece fazer questão de mostrar que o mais importante é o que está por trás do que é dito, escondido no que não é falado, disfarçado tanto na polidez de encontros sociais quanto na violência verbal de discussões familiares. “Shame” é um filme de olhares, de sensações, de silêncios – mas ao mesmo tempo, é uma obra avassaladora em sua elegância calculada, que retrata, como poucos filmes contemporâneos, o estado de espírito de sua época – o famigerado zeitgeist. Quem espera encontrar nele uma trama ágil e repleta de reviravoltas dramáticas certamente irá se decepcionar – seu ritmo é muito mais europeu do que hollywoodiano – mas aqueles que buscam no cinema um convite à reflexão e ao raciocínio não terão do que reclamar.



Fassbender – no mesmo ano em que viveu Carl Jung em “Um método perigoso”, de David Cronenberg e um androide em “Prometheus”, de Ridley Scott, com a mesma desenvoltura – interpreta Brandon, um homem bonito, bem-sucedido, charmoso e inteligente que circula em uma Nova York igualmente fotogênica e glamourosa. Por trás de sua aparência tranquila, porém, existe um turbilhão aparentemente incessante: ele é viciado em sexo. Não satisfeito em dormir com qualquer mulher que cruze seu caminho, ele paga prostitutas, tem uma coleção de vídeos eróticos e nem mesmo seu computador no ambiente de trabalho é livre de todo tipo de material sensual. Entre sessões contínuas de masturbação e um desfile de mulheres por sua cama – todas sistematicamente afastadas de qualquer vínculo emocional que possam querer ter – Brandon tenta esconder até de si mesmo um vazio existencial que ele sublima com uma quantidade acima do normal de sexo. Esse vazio existencial – muito bem enterrado sob toneladas de amor-próprio – acaba vindo à tona quando chega à cidade sua irmã caçula, a cantora Sissy (Carey Mulligan), também portadora de uma saudável dose de problemas psicológicos. A relação entre os dois – traumática? incestuosa? puramente fraternal? – acaba por ser o catalisador de uma profunda viagem de Brandon a seu mundo íntimo.
E essa justamente essa viagem de Brandon ao âmago de sua personalidade que interessa a McQueen: dando ênfase a inúmeros closes dos olhos azuis e inquietos de Michael Fassbender, o cineasta os utiliza como guia a uma angustiante jornada dentro da mente de um homem acostumado a ter o controle absoluto de sua vida (através do sexo casual e insaciável) quando se vê diante do imponderável poder de uma mulher cujo passado – e aí está outro grande acerto do filme – nunca é oferecido ao espectador. O roteiro, do diretor e de Abi Morgan foge do óbvio e do corriqueiro ao negar ao público informações essenciais de seus personagens, mostrando apenas o que a bela fotografia alcança. Há algo de muito doloroso no passado de Brandon e Sissy – a inesquecível sequência em que ela canta “New York, New York” e o leva às lágrimas deixa isso bem claro – mas somente eles dois sabem e continuarão sabendo: não interessa a McQueen o que aconteceu, e sim as consequências disso na existência de ambos. Contrariando as regras, o diretor não hesita em filmar um diálogo importante pelas costas de seus atores – deixando que suas entonações e vozes comandem as emoções – e tampouco deixa que o puritanismo do cinema americano fique em seu caminho: apesar de ser um filme calcado basicamente em sexo, as cenas eróticas de “Shame” surgem mais como ilustração da busca desesperada do protagonista por algo que nem ele mesmo sabe exatamente o que é do que como alavanca para fantasias sexuais da plateia. E se Fassbender surpreende em cenas de nudez frontal – o terror dos grandes estúdios – é porque sua confiança no diretor e em suas ideias é total (não à toa eles voltariam a trabalhar juntos em “12 anos de escravidão”, que deu ao ator sua primeira indicação ao Oscar, como coadjuvante). 

“Shame” não é um filme de fácil leitura ou de absorção imediata. Steve McQueen é um diretor que mais pergunta do que responde, que provoca discussões, que toca em feridas e tabus inacreditáveis em pleno século XXI. Autor de soluções visuais extasiantes e dono de pleno domínio da câmera – que soa por vezes intrusiva e por outras mera testemunha neutra – ele convida a plateia a mergulhar em um universo aparentemente familiar (afinal é Nova York, a capital do mundo) para logo em seguida enfatizar, através da música e da fotografia, uma solidão dolorida e que não demonstra intenção de ir embora. Por esse ângulo, o final em aberto é extremamente coerente, deixando no espectador um sentimento de desconforto que apenas coroa o belíssimo trabalho do diretor. “Shame” é, com certeza, um dos filmes fundamentais de sua época.

Um comentário:

Unknown disse...

Esse filme é sensacional!

Belo texto sobre a obra!

att,

André Betioli

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